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Igreja artística ou culto à estética? Uma terceira via para a relação entre igreja e arte

Escrito por Darli Nuza, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2022


Observando o decorrer da história, vemos que a relação entre a arte e a igreja se deu em diversos momentos, com gradações e intensidades diferentes. Contemporaneamente, quando abordamos este tema, ouvimos perguntas que exigem das artes uma lista do que “pode ou não pode” ser feito na esfera eclesiástica. Muitas vezes, nos perdemos nessa “cortina de fumaça” e alimentamos da lógica do “exclui ou inclui”, nos afastando da avaliação dos pressupostos e motivações. Logo, eis o nosso primeiro problema: focar, demasiadamente, na superfície sem exercitar uma leitura honesta e profunda dessas esferas e suas distinções.

Desse modo, é possível observar que o mesmo acontece com a comunidade artística externa. A hostilidade do mundo da arte à crença religiosa traz sérios danos, em especial, ao diálogo entre o sistema artístico e os artistas cristãos. Temos, então, no que tange à comunicação, amiúde: 1) uma igreja abordando as artes com interlocução rudimentar, 2) o sistema da arte com seus receios, fechando o diálogo, enquanto 3) ambas as estruturas seguem consumindo a arte e o sagrado (desarmonicamente). 

 Assim, com a estetização da vida e espetacularização da arte1, vemos, também, fusões eclesial-artísticas danosas na mesma medida que os conflitos. Isso porque esses extremos quebram a premissa de que arte e igreja pertencem a esferas diferentes e possuem aspectos distintos. Logo, se as fusões ou conflitos dessas áreas geram danos a ambas, qual via recorrer? Pensando sobre isso, este artigo visa apontar fricções entre arte e igreja, bem como apresentar alternativas, contribuindo com a reflexão, o diálogo e cultivo nesses campos.

Para cada cultivo, suas normas

Arte e a igreja são duas esferas diferentes que possuem solos em comum. Contudo, suas normas são díspares. Em sua obra Filosofia e estética, Hans Rookmaaker traz aspectos fundantes da filosofia cosmonômica, apontando que “cada uma dessas esferas de lei goza de uma soberania de esfera, o que quer dizer que as leis válidas dentro daquela esfera não são válidas em outra” (ROOKMAAKER, 2018, p. 22). Claro que elas não são independentes umas das outras, pois dialogam entre si com suas respectivas autonomias e as leis de uma podem aparecer na outra. Todavia, recebem, então, um significado completamente novo. 

Cada esfera é guiada por suas devidas normas. Por exemplo, numa obra de arte, tudo é dirigido e guiado pela função estética. Neste livro, Rookmaaker descreve e exemplifica a disfunção que pode acontecer quando essa premissa é quebrada:

Imagine, por exemplo, que uma igreja, enquanto igreja, inventasse de imiscuir-se na vida artística. A igreja jamais poderia aplicar as normas, tais como elas existem, à arte, mas sempre teria de atentar às normas específicas da denominação. Se a igreja não o fizesse, estaria agindo como uma “Sociedade para a promoção da arte cristã” ou algo similar, porém não mais como igreja. Se realmente agisse como igreja, significaria a morte da arte (ROOKMAAKER, 2018, p. 32).

Pensando, então, sobre a autonomia e limites desses âmbitos, as esferas eclesiástica e estética não carecem do enclausuramento advindo das sínteses ou dos conflitos. Logo, se essas vias extremas colocam em risco a vitalidade das áreas e geram danos, pensemos aqui noutros caminhos que apontam os percalços, como também propostas de uma relação salutar para esses aspectos.

Ferramentas de cultivo: respeito e diálogo

O respeito às distinções e o diálogo entres os diferentes campos é um fator base e não estamos alheios a essa realidade nas artes. Logo, cultuar a estética, demonizar as artes ou transformar a igreja em uma comunidade artística nos distanciam dessas premissas e não resolvem as demandas criadas pela má abordagem dessas esferas. No livro Contemporary Art and the Church: A Conversation Between Two Worlds, o artista e pesquisador Wayne Roosa corrobora a necessidade de respeito e diálogo, dizendo: 

Arte e igreja são esferas diferentes com papéis diferentes, embora se cruzem profundamente. Quero que minha igreja seja uma comunidade de fé, adoração e serviço. Quero que respeite e valorize a arte, mas não quero que seja uma comunidade artística. Seus eleitorados e empregos são muito diversos. Por sua vez, quero que minha comunidade artística respeite e valorize o espiritual e o teológico, mas não quero que seja uma igreja substituta ou um culto à estética (ROOSA, 2017, p. 12). 

Para buscarmos uma comunidade artística que respeite o espiritual e o teológico, precisamos de cristãos teologicamente maduros e dispostos a estar em contato com as pessoas no campo das artes. Junto a isso, o interesse salutar dos cristãos em apreciar, valorizar e examinar as artes reverberará em uma comunidade de fé que se comunica com os artistas. A disposição amorosa precede o diálogo e uma teologia apropriada tecerá a comunicação. Nesse sentido, encorajando-nos a fazer uma boa teologia pública, Kevin Vanhoozer nos lembra que “Paulo menciona as duas imagens uma ao lado da outra em I Coríntios 3.9: ‘Vocês são o campo de Deus, o edifício de Deus’” (VANHOOZER, 2016, p. 233). Ele explica que, como cristãos e líderes, somos lavradores e construtores da igreja. Esta é constituída por pessoas que, no que lhes concernem, são artesãos na casa de Deus. Isso se dá quando a igreja não reduz sua presença ao conhecimento propositivo, mas considera toda a construção: a percepção, a beleza, a volição, os afetos e o pensamento como um conjunto, advindo do Criador.

Cavando mais fundo: avaliação dos pressupostos

O respeito e o diálogo são importantes para um vínculo salutar entre arte e igreja, mas, sozinhas, não efetuam o cultivo. Em meio à comunicação entre esses campos, precisaremos cavar mais fundo e expor os pressupostos de cada esfera e seus temas. Assim, uma comunicação madura observa, respeitosamente, os pressupostos, o contexto e as normas estabelecidas, permitindo discordâncias e consensos.

Perguntas honestas feitas com moderação auxiliam nos apontamentos e revisitam perspectivas para ambos os aspectos, como, por exemplo: “Quais as responsabilidades que o artista e a igreja têm com as artes? Há, de fato, ausência de arte na igreja? Qual a qualidade dessas produções? Quais as raízes e diretrizes que embasam a produção e crítica dessas obras? Como artista, ouço as reais necessidades da igreja? Como agente do sistema de arte, hostilizo a fé cristã ou proponho pontes?”.

Questões como essas podem ser pontos de partida para produzir ciência da arte, relacionando-a às contribuições advindas da teologia e da filosofia. Nossa maneira de comunicar (visual ou textualmente) é enriquecida quando colocamos mais questões em perspectiva. Ao elaborar, conversemos também para além do indicativo (“isto é”, ou “isto não é arte”), ou seja, carecemos do encontro com o modo subjuntivo (e se…?). Em meio as críticas, precisamos ser mais propositivos (“que tal isto?”), oferecendo opções e perspectivas para os modos interrogativos (“por quê?”). 

Portanto, a relação circular entre perguntas e respostas nos ajuda a observar os pressupostos, examinar as raízes e discernir se estão embasados em crenças falsas. Por exemplo, quando somos questionados sobre porque a igreja não se relaciona com as artes, é de fato, uma verdade? Carecemos de cavar o contexto, normas e motivações, observando se a questão está buscando uma linguagem específica (dança, música, visuais, fotografia etc.), ligada a um desejo de exposição particular (onde e quando na comunidade). Com os pressupostos na mesa, avaliar, então, o porquê das exigências, quais normas norteiam essas práticas, qual o melhor lugar e aplicação, e como suprir esta carência de modo a não deformar as esferas.

Oikonomia: plantando a semente

Anterior à semeadura, uma terra passa por manejos e cuidados. Com o equilíbrio estabelecido, a semente é lançada e o cuidado segue com a finalidade de alcançar a colheita. O conceito de Oikonomia vem ao encontro dessa responsabilidade que devemos ter ao lidar com a arte e a igreja. Oikonomia é um termo grego2 utilizado na antiguidade que dizia respeito ao comportamento do mordomo que administrava a terra de tal modo que, esta, sempre fértil, sustentava a todos ao seu redor. Na primeira carta de Pedro3, ele utiliza este significado e nos chama a “servirmos conforme os dons, sendo bons mordomos da multiforme graça de Deus”. Assim, vale perguntarmos: como está a Oikonomia entre a minha comunidade e as artes e, como posso cultivá-la com qualidade? Explanando sobre essa responsabilidade, Rookmaaker é assertivo, dizendo que 

O corpo de Cristo não pode ser só coração — fé; nem só cabeça — filosofia, ciência e teologia; nem só boca — pregação; nem só braços e pernas — atividade. Não, ele também deve ter olhos, e para este propósito precisa da arte. Uma coisa simplesmente não funciona sem a outra. Em todas as eras, o Senhor deu à sua igreja tanto uma quanto a outra. Cabe recebermos com gratidão essas dádivas e desenvolver nossos talentos (ROOKMAAKER, 2018, p. 227).

 Logo, se encontramos reducionismos ou excessos, devemos auxiliar com nossas habilidades a fim de cooperar com a Oikonomia entre a arte e a igreja. Em seu livro The Faithful Artist: A Vision for Evangelicalism and the Arts, o autor Cameron Anderson corrobora com os pontos acima, lembrando a importância de não reduzirmos esses campos e tratar, economicamente, suas relações. O capítulo 5, intitulado Um povo do Livro e da Imagem, diz que segregamos o texto e a imagem, o verbal e o visual. Damos o justo valor à retórica persuasiva, mas esquecemos a riqueza que é quando o pregador “pinta” uma imagem de palavras na mente do ouvinte, combinando a fala com a imaginação, o verbal com o visual. Precisamos cultivar essas relações, apontando as raízes dos reducionismos e demasias.

Na prática, em alguma medida, a igreja sempre manifestará a beleza, ou seja, no culto ou nas programações cotidianas da igreja, a estética permeia desde a disposição dos assentos até a economia de palavras executadas no sermão. As flores trazidas para o altar, a hospitalidade e recepção com os novatos, a condução dos sacramentos, as programações especiais de comunhão são visivelmente perpassadas pela arte e sua beleza. A diferença estará em como planejo a Oikonomia e exposição de cada uma dessas demandas. Equilibrada, reduzida ou excessivamente, a estética da igreja estará lá.

Conclusão

Assim, à medida que pensamos o diálogo saudável entre a igreja e as artes, discernimos os campos e semeamos a semente. Isso não se dá linearmente, pois a experiência e a análise se encontram em um processo complexo, concomitante. Por isso, precisamos de sapiência para identificarmos na comunidade em qual etapa estamos do cultivo, respeitando as diferenciações.

Isto posto, esse cultivo exige tempo e roga paciência dos agentes de ambas as estruturas. Por um lado, os líderes e comunidades locais em contato com artistas precisam, em comunhão, expor possíveis receios, ajustando e servindo, mutuamente. Por outro, os artistas carecem de vivência significativa na comunidade de fé, afinal, é de suma importância se alimentar no lugar certo, fortalecendo suas habilidades e desenvolvendo devoção robusta. A busca por neutralidade é vã e, assim como a hostilidade à fé cristã, causa danos profundos ao artista e à comunidade. 

Portanto, o processo salutar entre arte e igreja não é simplório, mas deve ser buscado e arado, pois ambas — de diferentes maneiras — estão plantando no mesmo solo. Por fim, tenhamos como lembrete que a beleza, a igreja e o diálogo derivam do mesmo Criador. Ele se revelou por meio da criação e sua beleza, e Ele mesmo sustentará e nos capacitará no envio ao cultivo.


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1  Para melhor aprofundamento desses conceitos: LIPOVETSKY. G. e SERROY, J. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. Trad. Eduardo Brandão. Companhia das Letras. São Paulo. 2015. 516 p.

2  Termo grego definido como a gestão de uma casa ou de assuntos domésticos. Especificamente, a gestão, supervisão, administração de propriedade alheia, o cargo de um gerente ou supervisor, mordomia, administração, dispensa. Para melhor aprofundamento e referências do termo, acesse https://www.biblestudytools.com/lexicons/greek/nas/oikonomia.html.

3  Passagem de I Pedro 4.10. Versão da Bíblia Almeida Século 21.


Referências bibliográficas

ANDERSON, Cameron J. The Faithful Artist: A Vision for Evangelicalism and the Arts. Downers Grove, Illinois: IVP Academic. 2016. 283 p. 

LIPOVETSKY. G. e SERROY, J. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. Trad. Eduardo Brandão. Companhia das Letras. São Paulo. 2015. 516 p.

ROOKMAAKER, Hans R. Filosofia e Estética. Trad. William Campos da Cruz. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018. 236 p.

TAYLOR, W David O. e WORLEY, Taylor (eds). Contemporary Art and the Church: A Conversation Between Two Worlds.Worley. Downers Grove, IL: IVP Academic, 2017. 280 p.

VANHOOZER, Kevin J.; STRACHAN, Owen. O pastor como Teólogo Público: recuperando uma visão perdida. São Paulo: Vida Nova, 2016. 276 p.

Oikonomia. Bible Study Tools. Significado disponível em: https://www.biblestudytools.com/lexicons/greek/nas/oikonomia.html