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Olhe para fora de si, olhe para além do Sol

Escrito por João Marcos Chaves, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2022


Introdução

Uma das grandes coisas que a modernidade ostenta ter devolvido aos homens é a capacidade de questionar. Assim, um movimento ousado que lançou na filosofia a oportunidade de pensar sob novas categorias foi a proposta cartesiana. Esse empreendimento, que encoraja todos os que desejam investigar com profundidade o que determinada coisa é, precisa começar duvidando dela. É a partir da dúvida que surge a investigação honesta e apurada. E, por consequência, o melhor resultado possível é finalmente obtido.

É interessante observar que, para usar tal estrutura cética, é necessário ter um ponto de partida que não se pode duvidar. Esse ponto é você mesmo, pois, a partir do momento que estou disposto a duvidar de tudo, existe apenas uma coisa que não pode ser questionada: para que eu siga duvidando, devo concluir que sou real. Nesse sentido, uma boa parcela da estrutura do trabalho de Descartes foi questionada e desconstruída por outros filósofos, mas é inegável que novas categorias para fazer filosofia foram lançadas. A modernidade não foi capaz de se livrar do ceticismo e nem do ego como a única coisa que não podemos duvidar.

A partir destas bases, o conceito de quem é o ser humano se tornou cada vez mais vazio e irreal. Pode parecer que não, pois o indivíduo é o ponto central das ideias. Mas é neste ponto que surge o problema: quem sou eu? Sei que devo duvidar, mas quem ou o que sou? As respostas dadas pela pena dos filósofos mostram que o homem é o ser que pensa, que tem ideias, que sente ou pensa que sente. Independente da conclusão, é num movimento intenso de introspecção que o homem pode projetar sua própria identidade e, a partir dela, qualificar ou concluir a necessidade da existência de qualquer outra coisa ao seu redor.

Não existe algo que empobreça mais a visão sobre o que é o homem do que este movimento de introspecção tipicamente moderno. Afinal, o quão real é a projeção que alguém pode fazer de si mesmo? Quão real é o ambiente quantificado a partir do que projeto de mim mesmo, sendo que sou a única coisa de que não posso duvidar?

É contra o senso comum que tal concepção de homem que, para encontrar seu ser, rompe com todas as outras estruturas que compõem a vida, sejam ideais para o florescimento da humanidade. Mesmo assim, o ceticismo ainda faz morada nos nossos dias e são muitas as implicações catastróficas da sua presença. Dado isto, duas coisas merecem nossa atenção: quão profundo é o abismo que as projeções irreais nos jogam e qual é o primeiro passo que se pode dar para escapar disso.

Um sistema autossuficiente

A primeira coisa que podemos buscar entender é como esta estrutura se sustenta. O movimento que torna a vida cada vez mais irreal se tornou um mecanismo autossuficiente. O indivíduo parte de si mesmo para um mundo virtual. Este mundo, por sua vez, o conduz a imergir mais profundamente em seu ser. É o tipo de prisão que muitos consideram liberdade.

É notável o quão limitada é a pessoa que vive nestes moldes. Suas tristezas, alegrias, frustrações e aspirações giram em torno de uma abstração. Como um jovem que encontra sua subjetividade naquilo que seu avatar é nos games de sua preferência, ele encontra seus fracassos, vitórias, concepções de sucesso e satisfação, única e exclusivamente no contexto do jogo. Não há nada de diferente entre este jovem e os filósofos modernos. Ambos estão perdidos no mundo real. Assumiram o compromisso com o ceticismo, qualificaram seu ser a partir daquilo que é mais interessante para eles, e criaram um contexto que afirma o seu ser.

Uma apatia ao real

Afirmo ser impossível um homem assumir o compromisso com estes moldes do ceticismo moderno sem que, para isso, pague o preço de cauterizar seus sentimentos em relação àquilo que é real. Nesse sentido, Pirro de Élis, o primeiro filósofo cético grego, muito antes da modernidade, já deixou isso claro. Seus alunos precisavam acompanhá-lo em suas andanças para evitar que morresse atropelado por uma carroça a qual ele julgava não existir. Nem mesmo o perigo da morte o assombrava. Claro que nenhum outro cético moderno chegou a este tipo de insensibilidade, mas é uma inferência lógica considerar que, diante de suas propostas, existia um severo grau de apatia.

Se, para Berkeley, por exemplo, só são reais os espíritos e as ideias, onde estão corações e vidas que precisam ser conduzidos e amparados no mundo? Voltando ao exemplo do jovem imerso na sua subjetividade digital, onde está sua preocupação com o desenvolvimento do seu caráter ou a afeição pelos seus familiares? Em que isso difere do idólatra que ridiculariza e cospe na face de tantas pessoas por fidelidade à sua ideologia? Se algo, ou alguém, não traz valor nos moldes impostos pela realidade de cada indivíduo, ela não existe ou não vale a pena existir.

Assim, é fato que, enquanto não houver um rompimento com o sistema cético que segue afogando o homem na solidão do seu ser, o preço de ter o coração anestesiado continuará sendo cobrado.

O senso comum inspira a vida fora das projeções

Foi Thomas Reid que, diante de tantas outras conclusões absurdas que o ceticismo impõe, convidou o homem a romper com tal sistema filosófico. Reid explica que o homem é um ser composto de experiências e sua subjetividade não pode partir exclusivamente do seu exercício de reflexão da mente. Ele afirma isso justamente porque o homem já foi tocado pela realidade antes mesmo de ser quem é para poder duvidar dela. Ele diz: “Antes que sejamos capazes de reflexão, elas estão misturadas, compostas e decompostas por hábitos, associações e abstrações que é difícil saber o que elas eram originalmente” (REID, 2013, p. 22).

Alguém que afirma que sua projeção de si mesmo é o ponto de partida para compreender qualquer coisa já desconsiderou uma questão anterior: o que me influenciou a ser o que sou? Este é o tipo de questão que envolve o funcionamento do mundo conforme os princípios do senso comum e que os filósofos parecem ignorar.

É necessário entender que a proposta de Reid não é um rompimento com todo o trabalho filosófico, mas com os absurdos. Toda estrutura de pensamento que foge do senso comum carrega consigo o potencial do absurdo. Reid nos explica o que é o senso comum:

Se há certos princípios, como acho que há, em que a constituição de nossa natureza nos leva a crer, e os quais sentimos a necessidade de tomar por fatos nas preocupações comuns da vida, sem podermos dar uma razão a eles, são esses que chamamos de princípios do senso comum e, o que é manifestamente contrário a eles, é o que chamamos de absurdo (REID, 2013, p. 41).

Existe qualquer motivo, além daqueles impostos pela pretensa genialidade do filósofo, para questionar o fato de termos um corpo? Existe algum momento de nossa vida em que possamos naturalmente chegar à conclusão de que eu somente existo se penso? De maneira nenhuma, pois estas são coisas que nossa natureza nos leva a crer. Tais são os princípios do senso comum.

O senso comum diferente de toda a construção cética, não nos convida a um mergulho desenfreado no nosso interior para então projetar o que é real. Ele nos traz segurança para olharmos para fora de nós, para um mundo que é real, apesar de mim. A realidade virtual tem o seu lugar, ela é a imaginação, a maneira de ultrapassar as limitações da realidade, mas não passa disso, imagens e abstrações daquilo que já existe. No fim das contas, é, como diz a música: “Somos quem podemos ser, sonhos que podemos ter”.

Conclusão

A conclusão de tudo isso é que a estrutura do ceticismo não se sustenta, mesmo que agrade o homem. Mas a pergunta sempre será: por quanto tempo? Foi Salomão, no livro de Eclesiastes, quem nos proporcionou a resposta para essa questão. Após um movimento de reflexão sobre sua realidade, a conclusão foi que, enquanto ele não voltasse seu olhar para fora de si, tudo seria vaidade. Agostinho, em suas Confissões, fez o mesmo movimento. Em um ato de pura introspecção, a única alternativa possível para que ele seguisse em frente era olhar para fora. Para conhecer a si mesmo ou qualquer outra coisa, era necessário olhar para Deus. Isso, decerto, é o fundamento do senso comum.

Portanto, aqui está o primeiro passo para romper com os absurdos do ceticismo. Qualquer ação de busca pelo conhecimento dentro de si que eventualmente não o conduza para fora é um movimento reducionista que leva ao absurdo, à falsidade e a uma vida rasa.


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Referências Bibliográficas

REID, Thomas. Investigações sobre a mente humana segundo os princípios do senso comum. Tradução: Aline Ramos. São Paulo: Edições Vida Nova, 2013.