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Cosmovisão Cristã e as Resoluções 01/1999 e 01/2018 do Conselho Federal de Psicologia

Escrito por Guilherme Joshua Fantini Blake, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2023


O Conselho Federal de Psicologia (CFP) do Brasil promulgou duas resoluções controversas — a Resolução CFP no 001/99, de 22 de março de 1999, e a Resolução nº 1, de 29 de janeiro de 2018 —, delineando os parâmetros da atuação profissional dos psicólogos brasileiros no que tange à orientação sexual (01/1999) e pessoas transsexuais e travestis (01/2018). Com efeito, à luz do que oferece a obra Cosmovisão: A história de um conceito (2017) de David K. Naugle, investiga-se, no presente artigo, o conflito de cosmovisões suscitado por, e nessas, resoluções.

É cediço o quanto o conceito cosmovisão (do alemão weltanschauung) tem se disseminado no cenário protestante brasileiro. Em nome da “verdadeira” ou “correta” cosmovisão cristã (ou bíblica), se defende um sem-fim de pautas e programas: das mais variadas expressões teológicas e culturais às mais veementes e divergentes argumentações políticas. No que refere à sexualidade humana, proliferam-se leituras. Por exemplo, o dito Esquema dos Lados categoriza, a grosso modo, quatro posições cristãs sobre a homossexualidade (e, suplementariamente, a transsexualidade) que variam desde o Lado A (“afirmativo”, que afirma o valor e bênção da homossexualidade diante de Deus) até o Lado X (de “ex-gay”: a homossexualidade é uma doença do qual se deve buscar cura) (cf. PROCTOR, 2023).

Diante disso, nas palavras de Pôncio Pilatos, há-se de indagar: Quid est veritas? O que é a verdade? (João 18:37). Qual Lado fala em nome de Cristo? Qual o verdadeiro? Somente o Lado A adequa-se às disposições das resoluções do CFP. Exclui-se as três demais como incompatíveis com a profissão, sujeitando o profissional que as deter à cassação de seu registro profissional. Assim, a dimensão hodierna do conflito pode ser elucidada em notável parecer da jurista Maria Berenice Dias, um dos mais renomados nomes do Direito de Família brasileiro. Segundo Dias (2005, grifo nosso), 

Mas de nada adianta assegurar respeito à dignidade humana, à liberdade. Pouco vale afirmar a igualdade de todos perante a lei, dizer que homens e mulheres são iguais, que não são admitidos preconceitos ou qualquer forma de discriminação. Enquanto houver segmentos que são alvo da exclusão social, enquanto a homossexualidade for vista como crime, castigo ou pecado, não se está vivendo em um Estado Democrático de Direito.

Destaca-se, de imediato, a rejeição por Dias de qualquer visão de mundo que valore negativamente a homossexualidade: inclusive — em evidente detrimento da liberdade religiosa constitucionalmente garantida — aquelas concepções de mundo religiosas ou espirituais que a concebem enquanto “pecado”. Delineia-se, assim, um confronto entre visões: de um lado, aquela que considera a homossexualidade pecado, do outro, aquela que considera a visão anterior nociva (Seria pecado? Crime?), no mínimo óbice para a realização de um verdadeiro Estado Democrático de Direito. É na esteira de influentes juristas como Dias que o CFP promulgou suas resoluções, adotando como premissas “que a forma como cada um vive sua sexualidade faz parte da identidade do sujeito” e “a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão” (CFP, 1999, p. 1) e, em 2018,

que cisnormatividade refere-se ao regramento social que reduz a divisão das pessoas apenas a homens e mulheres, com papéis sociais estabelecidos como naturais, postula a heterossexualidade como única orientação sexual e considera a conjugalidade apenas entre homens e mulheres cisgêneros; [e que] a cisnormatividade como discursos e práticas que excluem, patologizam e violentam pessoas cujas experiências não expressam e/ou não possuem identidade de gênero concordante com aquela designada no nascimento” (CFP, 2018, p. 2).

Valora-se positivamente a homo e transsexualidade e, negativamente, a cisnormatividade, sem, contudo, maiores justificações nem qualquer validação da existência de visões contrárias. Isto é, sem maior reflexão ou discussão, as Resoluções prefixam aos seus artigos um rol de considerações que apontam uma visão particular de mundo, visão esta que adota unilateralmente como pressupostos a cisão do sexo-gênero desenvolvida pela literatura feminista e queer ao longo do século XX (cf. BUTLER, 1990; PEARCEY, 2018) e a imediata-irrestrita equiparação da autoidentificação e autopercepção sexual com a identidade (de gênero ou sexual) do sujeito (cf. BUTTERFIELD, 2021). 

Há, de imediato, uma questão jurídica evidente: enquanto autarquia pertencente à administração pública federal, o CFP encontra-se vinculado e sujeito às limitações constitucionais da atuação estatal, inclusive no que diz respeito à sua neutralidade axiológica e laicidade. Porém, recorre-se a Naugle não em busca de respostas jurídicas, mas de ferramentas para se pensar — inclusive, do ponto de vista (cosmovisão?) cristão — a disparidade de visões de mundo que subjaz à aceitação (inclusive, como “neutras”) ou não das premissas adotadas pelas Resoluções do CFP.

Como bem explicita a obra de Naugle, Cosmovisão: a história de um conceito (originalmente publicada no inglês, em 2002), o conceito de cosmovisão possui uma vasta bibliografia e perpassa múltiplos campos do saber, tais como (mas não somente) a filosofia, a teologia, e até mesmo a psicologia, a sociologia e a antropologia (NAUGLE, 2017, p. 14). Ante a “crescente heteroglossolalia em que seres humanos falam sobre o significado e propósito da vida em línguas radicalmente diferentes” (Ibid., p. 11) inerente à pós-modernidade, caberia ao CFP contemplar a existência das mais variadas vozes a falar (in casu, sobre a sexualidade humana), quer religiosas ou não. Todavia, pelo contrário, rejeita-se o perspectivismo de Nietzsche (Ibid., p. 130–135) e, mais especificamente, a presunção cristã de um mundo material e, espiritualmente, “sistema organizado” (Ibid., p.36), abraçando-se uma única visão como verdadeira e, quiçá, neutra.

O conflito não se configura em dialética mutuamente proveitosa: pelo contrário, encerra-se o discurso ante a medida totalitária (a total repreensão da expressão de qualquer cosmovisão contrária pelo CFP). Se, por um lado, as Resoluções vedam a concepção da homossexualidade enquanto perversão, o fazem somente no contexto da classificação contrária de Sigmund Freud1 e a sabida, e por eles refutada, classificação bíblica da prática homossexual enquanto ‘imundícia’ (cf. Romanos 1:24), ‘torpeza’ e ‘erro’ (v. 27) e, por fim, ‘sentimento perverso’ (v. 28). Sob a premissa de vedar a patologização da homo e transsexualidade, patologiza-se os patologizadores hipotéticos ou presumidos. Em meio a tanta patologização, onde haveria cura?

Para Kevin J. Vanhoozer, “há bálsamo em Gileade” (cf. Jeremias 8:22). Vanhoozer encontra nas Escrituras o ponto fixo, a referência ou bússola universal para nortear a existência humana e dirimir os conflitos cosmovisionários. Em sua obra O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã (2016), as Escrituras são apresentadas enquanto roteiro a ser seguido, mesmo em meio as improvisações demandas pelo cotidiano.

Desse modo, cai-se, novamente, na anomia: cada um há de improvisar consoante sua maneira enviesada de ver as coisas (NAUGLE, 2017, p. 139). Se a pós-modernidade arrisca configurar-se numa era pós-cosmovisão, onde o conflito de cosmovisões da modernidade (cf. Ibid., p. 262) é superado e deixado de lado (quiçá ante a derrocada de todas as metanarrativas), encerram-se os conflitos na liquidez sem fim: não havendo autoridade para refutar as resoluções do CFP, nem os defender, tampouco trazer qualquer resolução (interna, eclesial) quanto às flagrantes disparidades dos Lados A, B, Y e X no que refere à homossexualidade. Assim, mostra-se necessário avançar para além do estudo da história e proliferação do conceito de ‘cosmovisão’ e o pronto apontamento das Escrituras (sola Scriptura) enquanto referendo e resolução de todo e qualquer conflito cosmovisionário cristão.

Recorda-se, afinal, que desde Immanuel Kant a cosmovisão possui relação com o mundo dos sentidos, e da percepção individual (e, portanto, subjetiva, relativa): isto é, não se trata puramente de fatos postos, mas de uma interpretação subjetiva e historicamente localizada dos fatos e objetos apresentados. Simultaneamente, desprende-se que as vivências e circunstâncias do cotidiano, daquilo que é visto, sentido e tocado, também informam às cosmovisões humanas. Cai-se então num loop onde o homem produz artefatos culturais como expressão de como vê o mundo, e onde artefatos culturais influenciam como o homem vê o mundo e, portanto, se coloca e produz no mundo. Pode-se daí questionar a necessidade de censurar artefatos culturais (por exemplo, conteúdos violentos ou pornográficos) conducentes à produção de uma cosmovisão deturpada, questionamento que acaba, por fim, novamente demandando o apontamento de um ponto fixo que sirva de autoridade para dirimir o conflito obrigatório: quem diz se um artefato cultural é danoso ou não?


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1 Evade ao escopo do presente trabalho pormenorizar a leitura freudiana da homossexualidade, adotando-se como pressuposto que a psicanálise, em seus primórdios, classificara a homossexualidade como inversão do Complexo do Édipo e, portanto, espécie do gênero “perversão”. Daí a denominação ‘invertido’ para o homossexual da época.


Referências bibliográficas

BÍBLIA DE ESTUDO DE GENEBRA. São Paulo e Barueri: Editora Cultura Cristã e Sociedade Bíblica do Brasil, 1999.

BUTTERFIELD, Rosaria Champagne. União com Cristo e identidade sexual: pensamentos adicionais de uma convertida improvável. Trad. Lidiane Cecílio e Thiago McHertt. Brasília, DF: Editoria Monergismo, 2021. 

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. RESOLUÇÃO CFP N° 001/99 DE 22 DE MARÇO DE 1999. Brasília, 22 mar. 1999. Disponível em: <https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/1999/03/resolucao1999_1.pdf>. 

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA . RESOLUÇÃO Nº 1, DE 29 DE JANEIRO DE 2018. Disponível em: <https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/01/Resolu%C3%A7%C3%A3o-CFP-01-2018.pdf>. 

DIAS, Maria Berenice. Direito fundamental à homoafetividade. 18 out. 2005. Disponível em: <https://berenicedias.com.br/direito-fundamental-a-homoafetividade>.  

NAUGLE, David K. Cosmovisão: A história de um conceito. Tradução. 1a Edição. Tradução de Marcelo Herberts. Brasília, DF: Ed. Monergismo, 2017. 

PEARCEY, Nancy. Love thy body: answering hard questions about life and sexuality. Ebook Edition. Grand Rapids: BakerBooks, 2018.

PROCTOR, Josh. Four christian views on sexuality. Disponível em: <https://www.lifeonsideb.com/thefoursides >. 

VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Trad. Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016.