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A oração como expressão da cosmovisão

Escrito por Lethícia Dutra Leal Ferreira Fernandes, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2023


Este artigo tem como proposta a reflexão acerca da oração como uma expressão da cosmovisão daquele que ora. Para tal, na primeira parte do texto, será apresentado um breve resumo do desenvolvimento do conceito de cosmovisão. Na segunda parte, será explicado como o coração é a fonte primária da cosmovisão. Após, será feita a ligação entre cosmovisão e oração e como a segunda expressa a primeira. Por último, refletiremos sobre o que podemos aprender sobre a cosmovisão cristã através do ensino sobre oração que Cristo ministrou aos seus discípulos.

Uma breve história do conceito de cosmovisão

O conceito de cosmovisão surgiu na filosofia alemã. A palavra Weltanschauung foi usada por Immanuel Kant para falar sobre a visão de mundo de um indivíduo sobre o próprio mundo e seu papel nele. O termo foi ganhando novos contornos a partir do pensamento idealista e romântico. Friedrich Schelling agregou à ideia o anseio da humanidade de entender a existência e o termo passou a ser referenciado como um conjunto de crenças subjacentes do indivíduo que moldam todo seu pensamento e comportamento. O conceito continuou florescendo e tomando lugar nas discussões acadêmicas. Kierkegaard, filósofo cristão dinamarquês, disse que o indivíduo vive dentro da cosmovisão que possui, tamanha força das crenças mantidas intimamente pela pessoa. Wilhelm Dilthey, contrariando o absolutismo do racionalista, defendia que as diferentes circunstâncias históricas fomentam diferentes cosmovisões, que eventualmente se chocariam (GOHEEN; BARTHOLOMEW, 2016, n.p.).

Mais adiante, James Orr e Abraham Kuyper formalizaram a apropriação do termo pelo pensamento cristão como resposta às questões pós-iluministas da época e ampliaram a concepção do conceito para a totalidade da narrativa bíblica de criação, queda e redenção. Kuyper, especificamente, se apoiou na teologia de Calvino para responder às questões das mais diversas áreas que o modernismo exigia, trazendo os elementos da cultura e da sociedade para o debate. Ele também identificou o coração como o centro da cosmovisão, desconstruindo a ideia de neutralidade das fontes da cosmovisão (GOHEEN; BARTHOLOMEW, 2016, n.p.).

Cosmovisão cristã: um problema cardiológico

Portanto, no entendimento de cosmovisão cristã, a premissa base é que a nossa visão de mundo é fundamentada nas raízes do nosso coração e esses fundamentos não são facilmente modificados por qualquer pessoa ou filosofia. Sire sintetiza bem a ideia:

Essencialmente, cosmovisão é um conjunto de pressuposições (suposições que podem ser verdadeiras, parcialmente verdadeiras ou totalmente falsas) que sustentamos (consciente ou subconscientemente, consistente ou inconsistentemente) sobre a constituição básica de nosso mundo (SIRE, 2012, p. 19).

A cosmovisão é o conjunto de crenças básicas presentes numa narrativa sobre a realidade. Essas crenças “estão arraigadas num compromisso de fé e dão forma e sentido à totalidade de nossa vida individual e coletiva” (GOHEEN; BARTHOLOMEW, 2016, p. 52). Toda posição entronará uma metanarrativa como verdade, uma fé, abraçada por fatores afetivos-fiduciários, que viabilizam o processo cognitivo. Contrariando a máxima racionalista, “penso, logo existo”, de René Descartes, todo indivíduo possui sua cosmovisão, sua existência, embasada na sua fé e não na sua razão (SIRE, 2012). Todo indivíduo crê em algo e a partir dessa fé é que ele julga se aceita ou não as evidências à sua volta: o que se adéqua às nossas preconcepções, aceitamos, o que não, rejeitamos ou mantemos em suspensão. Não só os cristãos, mas todos fazem isso (GOODING; LENNOX, 2014, n.p.).

As pressuposições que moldam nossa cosmovisão são a metanarrativa que adotamos como verdade e estão enraizadas no nosso coração, pois dele procedem as fontes da vida: as bases para nosso entendimento, sentimentos e ações (Pv. 4.23). Porém, é importante frisar que o conceito bíblico de coração é muito mais amplo do que o sentimentalismo envolvido no conceito moderno da palavra. Quando as Escrituras falam sobre o coração, abrangem não só os sentimentos, mas o raciocínio, a memória, os pensamentos, o entendimento e a compreensão, ou seja, o coração é o centro da personalidade humana (CAMPOS, 2023, n.p.). 

Meister (2017, n.p.) diz que desde a Queda a raça humana optou por satisfazer os desejos do seu coração, descentralizando a Palavra e a Verdade de Deus do seu coração e assumindo a posição de idólatras. Portanto, a idolatria está no próprio idólatra e não no ídolo em si. O pecado afetou toda a boa criação de Deus. Ele não se apresenta de forma somente pessoal, mas também comunitariamente, pois apesar de começar no coração do homem, o deforma à imagem do deus falso entronizado, e agora esse homem transforma a estrutura da sociedade ao seu redor conforme a sua imagem corrompida. De tal modo, toda criação sofre sendo corrompida pelas ações dos pecadores (GOHEEN; BARTHOLOMEW, 2016, n.p.).

A oração com expressão do coração

Nesse sentido, nossas ações são expressão da nossa cosmovisão. Nossas tomadas de decisões, o que fazemos ou falamos, são ações fundamentadas nas raízes mais profundas do nosso coração e revelam Deus ou os deuses entronados lá. Walsh afirma que “nossa linguagem é moldada por nossa cosmovisão. As duas confirmam-se reciprocamente” (2016, p. 31). Deste modo, na oração podemos perceber as “linhas” que conectam nossa cosmovisão aos desejos do nosso coração.

Tiago Cavaco (2023, n.p.), no seu sermão dominical, expôs que Jesus usou a parábola da oração do publicano e do fariseu para mostrar a orientação do coração de cada um (Lc. 18. 9–17), e complementa:

Ainda hoje tu e eu somos tentados a adorar de uma maneira que somos nós a mostrar a Deus o bem que fazemos. E essa adoração, Deus não quer nada com ela. Por isso mesmo a oração é o exame mais rigoroso da verdadeira religião da pessoa. Quando ouves uma pessoa orar, tu consegues entender se de fato ela está grata de tudo que Jesus fez por si, ou o contrário, se ela tem a expectativa de adicionar alguma bondade a Deus (CAVACO, 2023, n.p.).

Timothy Keller, em seu livro sobre a oração, pontua que antes de Jesus ensinar os discípulos a orar Ele contextualizou algumas ideias preliminares e condenou a oração hipócrita, movida pela exigência de expectativas culturais ou sociais. Jesus orientou os discípulos a uma oração em secreto, onde o Deus Pai, que vê em secreto, recompensará seus filhos: “o teste infalível da integridade espiritual, diz Jesus, é a sua vida de oração privada” (2016, p. 32). 

Mais adiante, no mesmo livro, baseado nos estudos de Agostinho sobre oração, Keller (2016) também afirma que se não reconhecermos a desordem dos nossos afetos e do nosso coração, não perceberemos a distorção que eles causam na nossa vida e nossas orações serão parte de um problema e não da cura. Neste tópico, C. S. Lewis complementa: “não adianta pedir a Deus, com seriedade factícia, por A quando nossa mente está, na verdade, totalmente preenchida com o desejo por B. Devemos colocar diante dele o que está em nós, não o que deveria estar em nós” (2019, p. 39).

Yago Martins discorre sobre este problema de mascararmos nossos corações pecaminosos, enganando a nós mesmos, ao invés de expormos ao Senhor.

É importante sermos sinceros sobre nossos próprios corações. Costumamos nos esconder não apenas dos outros, mas de nós mesmos. (…) Ao não gastarmos tempo lendo nossas próprias almas, descortinando quem somos diante de Deus em oração, perdemos a bênção de julgar nossa própria fé e analisar se ainda estamos sendo feridos pela Palavra. Ídolos são sorrateiros; alojam seus altares em zonas por vezes inalcançáveis. Se não estivermos dispostos a olhar para dentro de nós, suas raízes se aprofundam cada vez mais (2020, p. 27).

Nisto, Jesus também orientou os discípulos quando falou das vãs repetições das orações feitas pelos pagãos que acreditavam que conseguiriam ser atendidos nas suas preces pela insistência. Jesus deixou claro que Nosso Pai já sabe de antemão tudo que precisamos antes mesmo de pedirmos (Mt 6.7-8). Lewis aponta a oração sincera diante de Deus como o caminho oposto da negligência com a idolatria do nosso coração: “Se colocarmos todas as cartas na mesa, Deus nos ajudará a moderar os excessos” (2019, p. 40).

Após todas essas orientações de Jesus aos discípulos, Ele apresenta um modelo didático de como nossas orações seriam quando orientadas pela narrativa correta: a da Palavra de Deus. A oração de uma cosmovisão cristã verdadeira primeiramente reconhece a divindade de Deus e seu Reino, o louva e adora; faz confissão de pecados e expõe a pequenez do orador e a necessidade de intervenção de Deus em sua vida; e realiza petições sempre submissas à soberana vontade de Deus, crendo na sua provisão e sustento tanto material quanto espiritual.

Conclusão 

A idolatria no nosso coração é a fonte para toda espécie de fé falsa, que produz uma cosmovisão incorreta. Deus nos fala através da sua criação — revelação natural, da sua Palavra — revelação especial, e através do seu Espírito Santo, que trabalha em nós para compreendermos e absorvermos as verdades santas, mudando nossa mentalidade e ações. O aprofundamento desse relacionamento do homem com Deus passa pela prática da oração. 

Em suma, para tratar o coração, não é preciso uma oração forçada, nem a repetição vazia. O destronamento da idolatria presente no coração passa primeiro por identificá-la e apresentá-la a Deus, pedindo que transforme nosso coração, nossos afetos, verdadeiramente clamando como o publicano: Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador! (Lc. 18.13). Deste modo, as verdades da cosmovisão cristã presentes na oração do Pai-Nosso serão uma realidade tanto em nossos lábios quanto em nosso coração.


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Referências Bibliográficas

CAMPOS, Heber Carlos. A natureza do coração humano. Ep. 1 a 8. Canal: Rev. Heber Campos. São Paulo, 2023. Disponível em: https://www.youtube.com/@Rev.HeberCampos/playlists . Acesso em: 15 abr. 2023.

CAVACO, Tiago. Serviço de culto 16/04/2023. Igreja da Lapa. Lapa (Portugal), 2023. 1 vídeo (1:48:33). Disponível em: https://www.youtube.com/live/dacVEBREbns?feature=share. Acesso em: 17 abr. 2023.

GOHEEN, Michel W. BARTHOLOMEW, Craig G. Introdução à cosmovisão cristã: vivendo na intersecção entre a visão bíblica e a contemporânea. Trad. de Marcio Loureiro Redondo. São Paulo: Vida Nova, 2016. 272 p.

GOODING, David; LENNOX, John. A definição do Cristianismo. Trad. Sabrina Lopes Furtado. Porto Alegre: Verdade, 2014. 124 p.

KELLER, Timothy. Oração: experimentando intimidade com Deus. Trad. Jurandy Bravo. São Paulo: Vida Nova, 2016. 272 p.

LEWIS, C. S. Cartas a Malcom.  Trad. Franscisco Nunes. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2019. 176 p.

MARTINS, Yago. No alvorecer dos deuses: desvendando as idolatrias profundas do coração. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020. 192 p.

MEISTER, Mauro. A origem da idolatria. São Paulo: Vida Nova, 2017. 80 p.

SIRE, James W. Dando nome ao elefante. Trad. Paulo Zacharias e Marcelo Herberts. Brasília – DF: Editora Monergismo, 2012. E-book (Kindle). 186 p. Disponível em: https://www.amazon.com.br/Dando-nome-elefante-Cosmovis%C3%A3o-conceito-ebook/dp/B00TVLMXHM/ref=sr_1_1?crid=2RKTLSBTR7M7A&keywords=dando+nome+ao+elefante&qid=1682720115&s=books&sprefix=dando+nom%2Cstripbooks%2C293&sr=1-1

WALSH, Brian J.; MIDDLETON, Richard. A visão transformadora. Trad. Valdeci Santos. São Paulo: Cultura Cristã, 2019. 192 p.