fbpx

O cristão e a vida intelectual: contribuições a partir do pensamento de Herman Dooyeweerd

Escrito por Yara Carolina Campos de Miranda, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2023


Durante muito tempo, e ainda na atualidade – em alguns contextos, mais que em outros –, uma visão dualista da fé privou muitos cristãos piedosos do meio acadêmico ou, no mínimo, gerou insegurança e incerteza para aqueles que amavam a Deus e, ao mesmo tempo, tinham o desejo de se dedicar a uma vida acadêmica para além dos estudos teológicos. Contudo, estudiosos cristãos de teologia cristã e de outras áreas do conhecimento vêm levantando a necessidade de se observar como é profícuo o diálogo entre fé e ciência, assim como entender que o ofício pastoral não é, necessariamente, mais ilibado que o trabalho fiel de um intelectual cristão que busque adorar a Deus à medida que desenvolve seus estudos nas mais diversas áreas acadêmicas.

Contudo, o piedoso acadêmico cristão que se lançar à tarefa de melhor compreender a tão complexa e criativa obra divina por meio da ciência se confrontará, em alguns momentos de seu labor, com impasses já conhecidos por cristãos mais maduros que vêm desempenhando este trabalho há mais tempo. Nesta direção, para o artigo ora empreendido, selecionamos um desses impasses, a saber, o mito da neutralidade científica. O analisaremos brevemente tendo como apoio a crítica do filósofo holandês Herman Dooyeweerd ao dogma da autonomia do pensamento filosófico. 

O mito da neutralidade científica e o dogma da autonomia do pensamento filosófico: estabelecendo um paralelo

O positivismo, corrente filosófica surgida na França do século XIX, como explica Bezerra (s.d.), defendia o conhecimento científico como única forma de conhecimento verdadeiro. A partir desta perspectiva, buscava-se analisar as leis da física, as relações sociais, a ética, etc. Como salienta a autora, a corrente positivista ficou conhecida por promover o culto à ciência, o mundo humano e o materialismo em detrimento da metafísica e do mundo espiritual.

Tal fato, que ainda revela a persistente perspectiva positivista na ciência até a atualidade, foi observado por Oliveira e Vidal (2013), por exemplo, no que diz respeito à linguagem empregada e até exigida em alguns contextos, como para a escrita de artigos e outros trabalhos acadêmicos. Como destacam os autores, por meio da exigência do uso de uma linguagem impessoal, marcada notadamente pelo uso da terceira pessoa do singular, parece haver uma busca por “manter nos relatos a isenção de qualquer contaminação do sujeito-pesquisador sobre o objeto pesquisado” (OLIVEIRA; VIDAL, 2017, p. 332). 

Os autores também destacam a percepção de Bortoni-Ricardo (2013), quem salienta que, segundo os postulados positivistas, buscava-se uma dissociação entre a mente do pesquisador e o sistema de referências utilizado para análise de determinado objeto de pesquisa. Assim, as categorias apresentadas pelo estudioso em seu trabalho investigativo deveriam ser “independentes das crenças e valores do próprio sujeito cognoscente e de sua comunidade” (BORTONI-RICARDO, 2013, p. 15).

Parece-nos, nesta direção, ser possível estabelecer um paralelo entre a ideia de uma neutralidade científica e o dogma da autonomia do pensamento filosófico, vigorosamente criticado por Dooyeweerd em seus trabalhos teóricos. De fato, à acusação da filosofia de que não existe a possibilidade de relação entre esta e a fé, o filósofo responde com uma filosofia reivindicante de um ponto de partida cristão. Assim, Dooyeweerd confronta a noção dogmática da autonomia do pensamento filosófico apontando sua dependência inequívoca de pressupostos religiosos.

Como destaca Rushdoony, em seu prefácio à primeira edição de No crepúsculo do pensamento ocidental, Dooyeweerd vai mais além:

A posição de Dooyeweerd é a insistência em que só a filosofia verdadeiramente cristã pode ser crítica e que a filosofia não cristã é inevitavelmente dogmática. Na base de todas as filosofias não cristãs estão certos compromissos e pressupostos pré-teóricos extensos que são basicamente religiosos. (RUSHDOONY in DOOYEWEERD, 2018, versão Kindle).

Para o paralelo que pretendemos estabelecer em nossa presente argumentação, a crítica de Dooyeweerd ao dogma da autonomia filosófica parece-nos fundamental: se as filosofias não cristãs baseiam-se em extensos compromissos e pressupostos pré-teóricos fundamentalmente religiosos, a ideia de uma neutralidade científica também rui. 

Verdadeiramente, evidencia-se que as escolhas feitas pelos centros de pesquisa e seus pesquisadores quanto ao que estudam e como estudam fundamentam-se nas crenças pré-teóricas que os permeiam. Portanto, negar isso a pesquisadores e centros de pesquisa cujos fundamentos de pesquisa apoiam-se em uma filosofia verdadeiramente cristã baseada nos fundamentos bíblicos é, no mínimo, desonesto.

Por uma filosofia cristã no trabalho acadêmico dos cristãos

Ainda em sua obra No crepúsculo do pensamento ocidental, Dooyeweerd afirma o seguinte:

[…] A relação interpessoal entre você e eu não pode nos conduzir a um autoconhecimento real enquanto não for concebida em seu sentido central; e nesse sentido central ela aponta além de si mesma para a relação última entre o eu humano e Deus. Essa relação central é, assim, de caráter religioso. Nenhuma autorreflexão filosófica pode conduzir-nos a um autoconhecimento real de uma forma puramente filosófica. As palavras com as quais Calvino inicia o primeiro capítulo de seu livro-texto sobre a religião cristã: ‘O verdadeiro conhecimento de nós mesmos é dependente do verdadeiro conhecimento de Deus’ (Institutas I.i.1), são, de fato, a chave para responder à questão: quem é o homem? (DOOYEWEERD, 2010, p. 253).

Uma filosofia verdadeiramente cristã, como defende Dooyeweerd, é a única capaz de ser verdadeiramente crítica e honesta quanto à impossibilidade de uma autonomia do pensamento filosófico, na medida que reconhece que o fazer teórico limita-se pelo horizonte temporal da experiência humana e se move, necessariamente, dentro deste horizonte.

Como argumenta Dooyeweerd (2018), na busca por encontrar um ponto de vista especial que o permita analisar, sinteticamente, a realidade experimentada, o ser humano acaba por abstrair conceitos de sua experiência a partir de um ponto de vista limitado. Isto é, na busca por um ponto arquimediano que lhe permita modalizar sua síntese teórica, o ser humano pode absolutizar um dos aspectos modais, estes, também sinteticamente concebidos. Cairá, então, no que Dooyeweerd denomina como uma espécie de idolatria filosófica, ou um reducionismo intermodal. Dessa forma, a única maneira de o ser humano se encontrar plenamente com a realidade em sua busca filosófica por compreendê-la é encontrando-se, primeiramente, com Deus, o absoluto Criador a quem todas as instâncias da existência estão relativas. 

Portanto, algumas perguntas devem ser feitas ao cristão que busca se lançar ao empreendimento acadêmico, ao trabalho filosófico, tais como: “Como conhecemos as coisas?”; “Como estudamos o universo?”; “Como produzimos conhecimento?”. Para Dooyeweerd, um encontro profícuo e verdadeiro com a compreensão da realidade somente se faz possível a partir da filosofia cristã, a qual compreende que o trabalho filosófico se dá como fruto da relação do ser humano com Deus, com a realidade e com o próximo. Como pontua o filósofo: 

Nessa confrontação central com a Palavra de Deus, o homem não tem nada para dar, mas apenas para ouvir e receber. Deus não fala a teólogos, filósofos e cientistas, mas a pecadores perdidos em si mesmos, feitos seus filhos pela operação do Espírito Santo em seus corações. Nesse sentido central e radical, a Palavra de Deus, penetrando na raiz de nosso ser, tem de se tornar o motivo-poder central do todo da vida cristã na ordem temporal com sua rica diversidade de aspectos, tarefas e esferas ocupacionais. Como tal, o tema central da criação, da queda no pecado e da redenção deveria também ser o ponto de partida central e o motivo-poder de nosso pensamento teológico e filosófico (DOOYEWEERD, 2010, p. 254).

Nesta perspectiva, o trabalho de acadêmicos cristãos de análise sistemática de suas áreas de conhecimento não se faz somente legítimo, mas necessário. Isto posto, o envolvimento de cristãos com um estudo profundo de suas áreas de pesquisa é não somente desejável, como também necessário. Isso se deve dar de modo que estes possam assumir seu chamado ao mandato cultural estabelecido por Deus, à busca por não somente compreender o mundo do Supremo Criador, mas torná-lo mais evidente, de forma plena, para o seu próximo, seja este próximo outro pesquisador, um estudante ou a sociedade de forma geral.


Acreditamos que o estudo teológico é fundamental para todo cristão, e não apenas para pastores ou líderes. Afinal, a teologia nos ajuda a seguir a Cristo em todos os aspectos da nossa vida!

No Loop, nossa equipe oferece suporte pedagógico e trilhas de estudo personalizadas para seus interesses, permitindo que você aprofunde seu conhecimento teológico e lide de forma segura com as situações do dia a dia.


Referências Bibliográficas

BEZERRA, Juliana. Positivismo. Toda Matéria, [s.d.]. Disponível em: https://www.todamateria.com.br/positivismo/. Acesso em: 1 mai. 2023.

DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental: estudos sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. São Paulo: Hagnos, 2010. 304 p.

DOOYEWEERD, H. No crepúsculo do pensamento ocidental: estudo sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. Tradução: Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza – Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018. Edição do Kindle. 

OLIVEIRA, P. T.; VIDAL, M. E. B. O mito da neutralidade científica e o uso da linguagem impessoal. Em Atas do 6º congresso ibero-americano em investigação qualitativa: investigação qualitativa na educação, v. 1 (pp. 332-336). Aveiro, Portugal: Ludomedia, 2017.