Escrito por Marcela Egito, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2023
Estamos em um palco. Como disse N. D. Wilson1, em seu livro Notas da xícara maluca, a audiência triuna sempre nos assiste. Recebemos um corpo e um contexto cultural: onde nascemos, em que época vivemos. De nossos antepassados vieram pontos fortes e até algumas fraquezas. Fomos planejados, desenhados, criados, mas já havia uma história em curso, um mundo em movimento. Por isso, quando nos perguntam quem somos, não respondemos apenas com um nome. É um costume humano atrelarmos nossa identidade a experiências. Falamos do lugar onde crescemos, o que gostávamos de fazer e até da nossa profissão.
Sabemos que a forma como enxergamos o mundo não é neutra. Segundo Jonas Madureira2, em Cinco lições sobre a cosmovisão e a psicologia, não somos apenas um “eu pensante”, uma vez que a nossa história é a história que tece a nossa identidade. Contudo, não é suficiente embasar quem somos apenas nas experiências de vida. É preciso perceber a ligação de cada uma de nossas histórias com a maior de todas, que conecta todas as outras e que dá sentido às diversas experiências. Ainda na mesma aula, Madureira chega à conclusão de que a cosmovisão é coletiva, podendo ser expressa em narrativas, argumentos, ideias etc. É um compromisso do coração, mas não consolidado apenas por uma subjetividade. O “eu subjetivo” é construído e forjado em uma comunidade. Sendo assim, temos uma missão juntos. No grande palco do drama divino, o próprio Deus veio ao nosso encontro para ser parte dessa história, fincada em uma linha do tempo humana.
Na obra O drama das Escrituras3, A Bíblia é definida como uma narrativa da missão de Deus para restaurar a criação. Tudo começa com um povo, Israel, que, ao longo dos anos, torna-se a Igreja. Logo, homens e mulheres, a partir da experiência de culto, em seus hinos, canções e credos, escreveram suas próprias histórias em comunidade, erguendo uma tradição que permanece viva até os nossos dias. Ela preserva todas as doutrinas cristãs sistematizadas ao longo do tempo, organizadas por grandes teólogos e filósofos, homens que, respirando a igreja, lutaram contra as heresias da época. Neste artigo, reconheceremos o nosso papel em cada uma dessas histórias, enriquecendo a experiência pessoal e redimindo a nossa interpretação da vida ao encontrarmos sentido na grande narrativa divina.
Narrando experiências humanas
A Bíblia é marcada pela diversidade de histórias que transcendem o tempo. No mesmo livro, encontramos grandes aventuras, tragédias e até perguntas que revelam angústias de nossos corações numa procura pelo Senhor. Desse modo, foi reunida uma grande pluralidade de testemunhos sobre Deus e a forma de conduzir a vida de Israel. A beleza dessa história está em reconhecer a conexão entre todos eles, sendo parte de uma grande narrativa principal. Segundo Justo L. González4, ao ignorar o Antigo Testamento, com frequência, reduzimos o evangelho a uma mensagem de salvação individual e perdemos de vista as dimensões cósmicas do evangelho completo de Jesus Cristo.
Por outro lado, em O drama das Escrituras, Bartholomew e Goheen comparam a Bíblia com uma grande catedral. O que inicialmente parece ser um enorme espaço único, na verdade, é feito de muitas salas e corredores. Embora tenha uma variedade de entradas, para ter uma orientação completa, precisamos saber exatamente o lugar central que vai nos conduzir nessa jornada. Para nos ajudar, os autores sugerem, como entradas principais, o Reino e a Aliança. As duas coisas nos aproximam de um Deus que, sendo Rei, reivindica o seu povo a espalhar suas histórias por toda a sua criação. Nesse sentido, a história do dogma diz respeito a essa fé em desenvolvimento, à nossa história sendo consolidada a partir de uma tradição que nos une.
A história do dogma como orientadora da nossa visão de mundo
Desse modo, a mesma fé que um dia iniciou em Israel começa a se desenvolver em nossos corações. Em certo momento da vida, o cristão começa a se relacionar com Deus e a sua forma de ver a vida, aos poucos, é transformada. Ele passa a reconhecer o seu papel numa história maior, que acontece em grandes atos: Criação-Queda-Redenção. Assim sendo, Deus, em sua infinita misericórdia, providenciou um guia para que o povo não se perdesse em sua peregrinação. Quem vai nos ajudar a entender a importância da tradição para a nossa cosmovisão é o autor Justo L. González, que reflete logo no prefácio de sua obra Uma breve história das doutrinas cristãs: “Ao ler sobre os crentes do passado e sobre o que disseram ou fizeram, muitas vezes alcanço uma compreensão mais profunda de quem sou, de quem acredito e do que faço”5. De tal modo, podemos inferir que conhecer a nossa tradição é essencial para entender nosso papel na história, inclusive, como preservação de um legado para as próximas gerações.
Ao longo dos séculos, Deus falou com o seu povo e a sua igreja sobre a sua própria natureza e sobre a Sua vontade para a criação. As doutrinas foram se desenvolvendo e se organizando na medida que a fé precisava responder às questões do seu tempo. Elas não vieram do racionalismo teológico, mas sobretudo da vida comunitária e da teologia do culto, uma construção teórica humana, retirada da Palavra de Deus. Assim, a liturgia cria em nós um senso de pertencimento, produzindo hábitos que governam nossas ações. Comunidades que se organizaram em concílios, geraram a tradição que nos orienta até hoje para defendermos a coluna da religião cristã, a sã doutrina.
A partir do entendimento da importância dessas histórias para a vida do ser humano, André Daniel Reinke6, em sua obra Nós e a Bíblia, escreve que o ser humano é historiado, forjado por narrativas que produzem um hábito individual e coletivo, ressaltando, a partir desse ponto de vista, a importância das liturgias em nossas vidas. As práticas humanas sociais mais profundas ajudam a formar identidades e modelam os desejos das pessoas.
Conclusão
Na apresentação do seu livro Enquanto houver batalhas, o Rev. Emílio Garofalo faz uma sugestão criativa para as Crônicas de Nárnia. Em contraponto à ideia da narrativa ser uma simples alegoria, ele nos leva a fazer um exercício de imaginação sobre como as coisas poderiam ter sido se tivesse se desenrolado em “outro lugar, quiçá em outro mundo”7. Quando pensamos em todas as histórias que vivemos, hoje, na igreja, podemos fazer a mesma relação, uma vez que estamos revivendo fatos que outros povos já viveram em outras épocas. Passamos por crises que outros irmãos já passaram. A grande diferença é que, hoje, temos uma herança doutrinária bastante rica, já sedimentada também, em credos e confissões que nos permitem contar as mesmas histórias para nossos filhos e netos. Portanto, a história do dogma, além de moldar a nossa cosmovisão cristã, ajuda-nos a perspectivar e direcionar a nossa jornada hoje.
Concluindo, se o propósito de Deus é reconciliar toda a criação consigo, já vivemos esse primeiro encontro, também em outro lugar, no ato da morte de Jesus. Essa história, porém, não termina em nosso mundo. Ao nos reconhecermos no grande palco divino, adquirimos a esperança de continuar. A tradição nos fortalece e o Espírito nos guia para os próximos atos. Segundo González, os dois temas, o Espírito Santo e a esperança cristã, estão entrelaçados. “Calvino declarava que, na comunhão, o Espírito Santo conduz a igreja à presença de Cristo no banquete final”8. Por fim, C. S. Lewis9 diz que todo homem gosta da imagem de mundo que ele reconhece. Assim, a nossa oração é para que, nessa imagem, reconheçamos todos os dias, Deus, como Senhor das nossas histórias.
1 WILSON, Nathan D. Notas da xícara maluca: maravilhe-se de olhos bem abertos no mundo falado por Deus. Tradução de Josaías Cardoso Ribeiro Junior.1. ed. Brasília: Editora Monergismo, 2017. 208 p.
2 MADUREIRA, Jonas. Lição 1 | O que é Cosmovisão: cinco lições sobre cosmovisão e psicologia. Jonas Madureira, 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BKVhhtnHRqs. Acessado em 22 de julho de 2023.
3 BARTHOLOMEW, Craig G e GOHEEN Michael W. O drama das Escrituras. Tradução de Daniel Kroker. 1. edição. São Paulo: Vida Nova, 2017. 288 p.
4 GONZÁLEZ, Justo. Uma breve história das doutrinas cristãs. Tradução de José Carlos Siqueira. São Paulo: Hagnos, 2015, p. 44.
5 GONZÁLEZ, op. cit.
6 REINKE. André Daniel. Nós e a Bíblia: história, fé e cultura do judaísmo e do cristianismo e sua relação com a Bíblia sagrada. 1. ed. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2023, p. 67.
7 GAROFALO, Emílio. Enquanto houver batalhas. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil; The Pilgrim: São Paulo, 2021. 64 p.
8 GONZÁLEZ op. cit., p. 255.
9 LEWIS C. S. apud MADUREIRA op cit., 2020.
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Referências bibliográficas
BARTHOLOMEW, Craig G e GOHEEN, Michael W. O drama das Escrituras. Tradução de Daniel Kroker. 1. edição. São Paulo: Vida Nova, 2017. 288 p.
GAROFALO, Emílio. Enquanto houver batalhas. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil; The Pilgrim: São Paulo, 2021. 64 p.
GONZÁLEZ, Justo. Uma breve história das doutrinas cristãs. Tradução de José Carlos Siqueira. São Paulo: Hagnos, 2015. 255 p.
MADUREIRA, Jonas. Lição 1 | O que é Cosmovisão: cinco lições sobre cosmovisão e psicologia. Canal Jonas Madureira, 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BKVhhtnHRqs. Acessado em 22 de julho de 2023.
REINKE, André Daniel. Nós e a Bíblia: história, fé e cultura do judaísmo e do cristianismo e sua relação com a Bíblia sagrada. 1. ed. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2023. Pg. 67
WILSON, Nathan D. Notas da xícara maluca: maravilhe-se de olhos bem abertos no mundo falado por Deus. Tradução de Josaías Cardoso Ribeiro Junior. 1. ed. Brasília: Editora Monergismo, 2017. 208 p.