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Realidade em prolicromia: uma análise de Beleza do Mundo (1725)

Escrito por Kaiky Fernandez, coordenador do Invisible College e estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2023


Jonathan Edwards, sem dúvida, é um dos grandes nomes da história da fé cristã, seja na condição de pregador e avivalista, seja como um filósofo e pensador. Dentre as suas marcas distintivas, em especial as do segundo caso, está o seu olhar atento e apurado para a realidade, consciente de que ela foi criada por Deus e convicto de que está completamente permeada de intencionalidade por parte do Criador.

Essas características possibilitaram com que o Edwards filósofo tratasse de uma série de temas em seus muitos escritos: desde artigos com caráter científico a respeito do comportamento de aranhas, até ensaios sobre a beleza. No presente texto, será feita uma análise daquilo que o autor trata em Beleza do Mundo, de 1725.

A beleza como desdobramento das coisas espirituais

Edwards começa o texto explicando que a beleza é uma relação de consentimento, isto é, em que há alguma reciprocidade, concordância, que está de acordo com algo. Para ele, “(…) a beleza mais agradável e encantadora deste mundo é sua semelhança com belezas espirituais”1. Para o autor, o que há de mais belo no nosso mundo é uma espécie de espelhamento da realidade espiritual. Ele argumenta que “(…) as belezas espirituais são infinitamente as maiores, e os corpos, sendo apenas as sobras de seres, necessariamente são tão mais encantadores quanto mais representam como sombras as belezas espirituais”2

Assim, poder-se-ia questionar se tal entendimento não seria platônico. Todavia, há uma sutil, mas, importante, diferença. Enquanto Platão compreendia o mundo material como algo negativo em relação ao mundo sensível, para Edwards, não há essa qualificação. O pensador cristão compreende que a realidade foi criada por Deus e, portanto, não é algo ruim em si.

Nesse sentido, para Platão, a arte é algo sem valor, uma vez que se trata da imitação da imitação3. Ou seja, é uma representação do mundo material, o qual é uma representação do sensível, do verdadeiro. Em oposição a ele, para Edwards, a arte, considerando-a como a produção de beleza, seria uma forma de tangibilizar a beleza espiritual ao expressá-la, com consentimento, no nosso mundo físico.

Edwards conclui sua argumentação sobre esse ponto deixando claro que a beleza da criação natural, produzida pelo Criador, embora manchada pelo pecado, necessariamente será maior do que a da criação artística, produzida pelo ser humano. Ele estabelece, aqui, uma ordem hierárquica para lembrar que as obras de Deus sempre serão melhores que as nossas: “Essa beleza é peculiar às coisas naturais, superando a arte do homem”4.

Sobre harmonia e intencionalidade

O autor continua sua argumentação, agora se referindo à harmonia que há nas cores dos mais diversos elementos da natureza, nos dando um senso de adequação que não poderia ser aleatório. Ele também aponta que todas as sensações que temos diante de algo — seja com sons ou com cheiros, por exemplo — estão em adequação à nossa experiência estética visual com esses mesmos algos, ou seja, há uma harmonia intencional nisso também.

Dois pontos resumem as implicações práticas disso para aqueles que são artistas ou que apreciam a arte: primeiro, se a beleza criada é uma sombra da beleza espiritual, todas as escolhas cromáticas devem ser intencionais, não podendo ser mera arbitrariedade, pois “(…) cada tipo de raio [de luz] toca uma melodia distinta para a alma (…)”5.

Segundo, a harmonia se dá na totalidade das características que compõem algum ente, e não apenas na estética, como se ela pudesse ser isolada na nossa experiência ingênua. Embora não se possa afirmar que haja uma relação direta, tais ideias remetem à integração daquilo que o filósofo holandês Herman Dooyeweerd, mais de duzentos anos depois, chamaria de aspectos modais6, ou seja, diferentes modos de ser/existir que cada coisa tem na nossa realidade. Portanto, uma teoria estética que considera os aspectos modais reconhece que a beleza só é possível na unificação de todos os aspectos7, e não de forma isolada, incompleta. 

Por que a beleza importa?

Edwards conclui argumentando que os seres humanos, mesmo aqueles em situações ruins, “não suportam perder de vista um mundo tão belo e amável (…)”8. Se a criação artística é um desdobramento da criação natural, a qual foi intencionalmente criada por Deus, que escolheu nos oferecer um mundo belo, então a produção de beleza em artefatos culturais é algo que possui um valor próprio.

Portanto, se toda beleza humanamente produzida é uma sombra da beleza espiritual, então quando alguém produz uma obra de arte consciente disso, a partir de uma visão da realidade distintamente bíblica e que nos foi revelada pelo próprio Deus nas Escrituras, tal indivíduo tem a possibilidade de abrir uma nova janela para que outros enxerguem o mundo com mais vivacidade, cores, texturas e formas.

Em resumo, quando há a produção de beleza por parte do ser humano, em especial — mas não exclusivamente — um cristão, possibilita-se que “fragmentos e lampejos da Nova Criação nasçam em meio a este mundo ainda escuro e entristecido”9.

Conclusão

Em Beleza do Mundo há uma concepção robusta e bem articulada sobre a ideia de beleza. Apesar de uma aparente influência platônica, Edwards ancora a sua argumentação em uma visão de mundo que reconhece o Deus Criador de toda a realidade. Além disso, é interessante perceber que, mesmo em um texto bastante antigo, ele lança mão de termos técnicos precisos, como as diferentes vibrações de onda que cada cor produz e a noção de integralidade estética, aquilo que Hans Rookmaaker chamaria de “harmonia bela”. 

As reflexões do autor, portanto, trazem boas contribuições para a discussão sobre arte, estética e produção de beleza em uma perspectiva cristã. Nosso desafio, trezentos anos depois, é dar seguimento ao caminho que Edwards ajudou a pavimentar e não deixarmos de nos encantar com o mundo de Deus.


1 EDWARDS, Jonathan. Jonathan Edwards, uma antologia: escritos públicos e pessoais. Tradução: Marcio Loureiro Redondo. São Paulo: Vida Nova, 2022, p. 59.

2 Ibid., p. 59.

3 REALE, Giovanni; ANSIERI, Dario. Filosofia: Antiguidade e Idade Média, vol. 1. Tradução: José Bortolini. São Paulo: Paulus, 2017, p. 150.

4 EDWARDS, op. cit., p. 59.

5 Ibid., p. 60.

6 DOOYEWEERD, Herman. Estado e soberania: ensaios sobre cristianismo e política. Tradução: Leonardo Ramos, Lucas G. Freire, Guilherme de Carvalho. São Paulo: Vida Nova, 2014, p. 25.

7 ROOKMAAKER, Hans. Filosofia e estética. Tradução: William Campos da Cruz. Brasília, DF: Monergismo, 2018, p. 200.

8 EDWARDS, op. cit., p. 60.

9 FUJIMURA, Makoto. Arte e fé: uma teologia do criar. Tradução: Rodolfo Amorim. Rio de Janeiro, Thomas Nelson Brasil, 2022, p. 9.


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Referências bibliográficas

DOOYEWEERD, Herman. Estado e soberania: ensaios sobre cristianismo e política. Tradução: Leonardo Ramos, Lucas G. Freire, Guilherme de Carvalho. São Paulo: Vida Nova, 2014. 160 p. 

EDWARDS, Jonathan. Jonathan Edwards, uma antologia: escritos públicos e pessoais. Tradução: Marcio Loureiro Redondo. São Paulo: Vida Nova, 2022. 384 p.

FUJIMURA, Makoto. Arte e fé: uma teologia do criar. Tradução: Rodolfo Amorim. – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2022. 208 p.

HANS, Rookmaaker. Filosofia e estética. Tradução: William Campos da Cruz. Brasília, DF: Monergismo, 2018. 216 p.

REALE, Giovanni; ANSIERI, Dario. Filosofia: Antiguidade e Idade Média, vol. 1. Tradução: José Bortolini. São Paulo: Paulus, 2017. 704 p.