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A derrota da morte: observações sobre a história da doutrina da salvação

Escrito por Larissa Cristhina Giron Ferreira Vianna, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2023


A pintura O Triunfo da Morte, do pintor Pieter Bruegel, o Velho (1525-1569), é uma das maiores expoentes do estilo artístico-literário denominado Dança Macabra. Característica da Baixa Idade Média, a Dança Macabra é uma forte expressão da universalidade da morte. Na obra de Bruegel, é possível observar um rei, casais, soldados e tantas outras figuras que, independentemente de seus traços físicos ou sociais, perecem diante da morte ceifadora que se sobressai em um cenário de completa devastação. A mensagem transmitida por esse viés artístico é: ninguém escapa da morte.

Pieter Bruegel. O Triunfo da Morte, 1562.

Temas como esse eram comuns na Baixa Idade Média, uma vez que o período foi marcado pela Peste Negra, responsável por dizimar um terço da população europeia, além de conflitos como a Guerra dos Cem anos. Esses elementos acentuaram uma expectativa escatológica e fizeram da morte uma realidade sempre presente em um horizonte próximo.

Diante disso, a ênfase na preocupação com a vida após a morte ganhou cada vez mais espaço no cotidiano da igreja e nos momentos de culto. Sobre isso, Justo González chama atenção para o fato de que a vivência de culto da comunidade eclesiástica está intrinsecamente ligada à formação das doutrinas cristãs ao longo do tempo. O medo da morte, portanto, demandou respostas que se refletiram nas doutrinas a respeito da salvação e sobre o que seria do ser humano após o seu último suspiro. 

Nas raízes do cristianismo, havia o entendimento de que a salvação dizia respeito a muito mais do que a vida após a morte. A restauração da criação, conforme Romanos 8:21 descreve, era uma esperança pulsante nos corações dos cristãos da Antiguidade (GONZÁLEZ, 2016, p. 201). No entanto, a proximidade com o mundo helênico promoveu, pouco a pouco, a crença na salvação da alma em um espaço metafísico, enquanto o corpo pereceria. Além disso, passou-se a crer também na imortalidade da alma. De acordo com González:

[…] com o passar do tempo os cristãos foram se acostumando a se referir à imortalidade da alma como parte de sua natureza, e à salvação como algo que consiste apenas na garantia de que a alma imortal pudesse viver no céu para sempre. O conceito mais amplo de uma salvação que incluísse toda a criação foi sendo progressivamente abandonado (GONZÁLEZ, 2016, p. 202)

Assim, os cristãos começaram a buscar em sacramentos, como a penitência, um meio para mortificar o corpo, visando ascensão espiritual. O batismo, do mesmo modo, passou a ser visto como garantia para entrar no céu. Devido aos altos índices de mortalidade infantil, as crianças eram batizadas logo após o nascimento. No caso dos adultos, deixava-se muitas vezes para realizar o batismo no leito de morte, com o objetivo de garantir a “lavagem” de todos os pecados (GONZÁLEZ, 2016, p. 188).

A execução de boas obras também se tornou um meio para alcançar a salvação, de modo que o investimento financeiro nas obras da igreja era praticamente um sinônimo de lograr êxito na tentativa de entrar no céu. Caso um indivíduo não tivesse tempo de praticar as boas obras antes de seu falecimento, missas também poderiam ser rezadas post mortem a fim de direcioná-lo ao paraíso. Nesse ínterim, as almas permaneceriam no purgatório, onde os pecados seriam purgados até que fosse possível subir ao céu. No entanto, alguns pecados, tidos como mortais, não tinham remédio e aqueles que os praticassem iriam diretamente ao inferno. Do mesmo modo, aqueles que tivessem cumprido uma vida de penitência e boas obras de maneira “satisfatória” iriam diretamente para o paraíso. 

As doutrinas do purgatório, da penitência e das boas obras, apontam, portanto, para a noção de esforço emérito como meios para alcançar a salvação. Foi nesse cenário que Martinho Lutero, angustiado com sua incapacidade de vencer o pecado por suas próprias forças, passou a refletir a respeito da doutrina da salvação e entendeu, examinando as Escrituras, que a graça de Deus não é meritocrática e que é por ela que somos salvos (GONZÁLEZ, 2016, p. 208-209). 

Em contrapartida, a Reforma Protestante trouxe a voga a doutrina da salvação pela graça, por meio de Cristo. Essa resposta foi um bálsamo para muitas almas aflitas que se viam inseridas em uma realidade, como a representada na pintura de Pieter Bruegel. Sola Gratia transmitia a mensagem de que não era o comportamento do ser humano na Terra que determinaria sua entrada no céu (GONZÁLEZ, 2016, p. 203). Todo o mérito da salvação repousa sobre Cristo Jesus, pendurado no madeiro e ressurreto no terceiro dia. Ali se deu a derrota da morte.

Em suma, a observação da história das doutrinas nos auxilia a ver as complicações que brotam de ensinos suscetíveis ao tempo em que estão inseridos. Séculos depois da Reforma, a certeza na suficiência do mérito de Jesus precisa permanecer constante em nossos corações.  Do mesmo modo, precisamos lembrar que essa salvação não está circunscrita ao que será da vida após a morte, mas, nas palavras de Justo González, diz respeito a “participar de uma nova criação, o princípio da restauração de uma criação que havia sido corrompida e escravizada pelo pecado” (GONZÁLEZ, 2016, p. 201). Toda a história aponta para a derrota da morte e o triunfo eterno de Jesus Cristo, nosso Salvador, sobre toda a criação.

 


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Referências 

BRUEGEL, Pieter. O Triunfo da Morte. 1562. Óleo sobre madeira, 117 cm x 162 cm.

GONZÁLEZ, Justo L. Uma breve história das doutrinas cristãs. Tradução: José Carlos Siqueira. São Paulo: Hagnos, 2016.´256 p.