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“Eu não sou guarda da minha família”: a violência doméstica como ausência de capital moral

Escrito por Jennifer Carvalho, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2023


Introdução

O casamento é objetivo de vida de muitas pessoas. Sonhos e idealizações o perpassam, mas também frustrações, violências e divórcios. Sendo assim, acreditamos que os casamentos e as famílias das igrejas não passam por isso, “não os nossos”. Em Vilhena (2009), 40% das vítimas atendidas na Casa Sofia são mulheres evangélicas. Leite (2017), expondo uma extensa pesquisa realizada em Vitória-ES, no ano de 2014, a qual entrevistou 991 mulheres em situação de violência que fizeram uso das 26 unidades de saúde do município, revelou que 48,4% eram evangélicas.

Entretanto, entre 40 e 50% das vítimas de Violência Doméstica são evangélicas, sem considerar a subnotificação1 dos casos. Além disso, as igrejas também não sabem lidar quando essas situações ocorrem em seus arraiais2. Portanto, devemos parar e refletir o porquê de tamanha desproporcionalidade, visto que os evangélicos são apenas um terço da população brasileira.

Nesse sentido, Roel Kuiper pode nos ajudar a compreender como o Capital Moral pode contribuir na reconstrução de uma cultura de relações familiares fundamentadas em um compromisso pactual com Deus, as quais refletem em existências preocupadas-responsivas com os outros em comunidade, inclusive com cônjuges e familiares. 

O capital moral nas relações familiares

Roel Kuiper escreve seu livro, Capital moral: o poder de conexão da sociedade, pensando no desenvolvimento e restabelecimento das conexões sociais perdidas nas diversas esferas da coletividade. O autor percebe como a moral realmente perpassa os valores societários e como ela é importante para o fortalecimento dos relacionamentos nas esferas societárias. É como se o capital moral fosse a liga ou a química que conecta as pessoas. Então, sua ausência faz com que as relações estejam fragilizadas e individualizadas. 

Podemos considerar os valores morais amor e lealdade como centrais no argumento do autor, pois é com base neles que desenvolve toda a sua argumentação. Podemos entender o que ele chama de Capital Moral como a “capacidade individual e coletiva de estabelecer relações morais”, apontando para a “força de conexão de uma sociedade, a capacidade de permitir que as pessoas e seus laços se satisfaçam completamente e se voltem para a cooperação mútua e o bem-estar público” (KUIPER, 2019, p. 26).

Algo que podemos apreciar desde o início nessa conceituação de Kuiper é a busca pela restauração do shalom nos relacionamentos humanos que foram deteriorados pelo pecado. Ele entende “o compromisso com a vida do ser humano como sendo uma necessidade por uma existência preocupada-responsiva” (Ibid., p. 25). Com isso, o ser humano precisaria viver todos os seus relacionamentos em uma resposta preocupada e compromissada com o outro, seu próximo.

Roel coloca que a família é a menor e mais importante comunidade da sociedade para desenvolver o Capital Moral. Nela, as pessoas são convidadas a doação e empenho ao outro. É nela também que formas de altruísmo e parcerias precisam ser primeiramente vivenciadas e fortalecidas (Ibid., p. 197). Ela é constituída de indivíduos que formam uma comunidade que é o modelo de todas as comunidades. 

Logo, espera-se que a família seja um espaço de acolhimento, seguro, pois ela “não é um lugar em que as pessoas podem usar umas as outras de forma puramente instrumental”, mas, sim, “um lugar de regeneração, da renovação, da nova interpretação da própria vida, da descoberta de novos significados, da existência pelo crescimento nos relacionamentos” (Ibid., p. 199). É um espaço de empenho responsável de cada membro para o bem-estar de todos. Para isso, os laços são formados em um diálogo mútuo que integra todos, um adicionando à existência do outro e ao coletivo:

Essa dinâmica surge no manejo preocupado-amoroso que se volta para o outro e, em seguida, prepara para uma preocupação criativa para com o mundo. Esse é o resultado de um processo dialógico. As pessoas precisam se sentir tocadas para entrarem em movimento e ver o que precisam fazer (Ibid., p. 199).

A quebra da conexão e do pacto na violência doméstica

Pensando a partir da criação, queda e redenção, sabemos que, infelizmente, a Queda afetou toda a criação e instituições, como a família. A conceituação apresentada por Kuiper era o que deveríamos estar trabalhando assiduamente para experienciar amor e lealdade em todos os relacionamentos, especialmente os familiares.

Observamos que os nossos relacionamentos precisam estar baseados em cuidado e compromisso com o outro para refletir a proposta criada por Deus para eles. Também podemos entender que o amor e a lealdade são a base dessa capacidade moral em nos relacionar, mantendo relações que objetivam o bem-estar do outro, especialmente na família, a formadora e modeladora de todos os outros relacionamentos externos a ela. Quando os relacionamentos familiares, quer sejam entre cônjuges ou pais-filhos, não são preocupados-responsivos, temos uma quebra das conexões entre os membros dessa família, uma violação. Temos o mandamento apresentado por Jesus, amar a Deus acima de todas as coisas e o próximo como a si mesmo, que também precisa ser vivenciado na família.

Desse modo, a Violência Doméstica (VD) pode ser configurada como qualquer forma de violar a integridade do outro no ambiente familiar, de modo que este seja desqualificado enquanto ser humano criado à imagem de Deus. É um meio de desconfiguração da identidade, de manipulação do outro e de desprezo à criação de Deus. O modo de operá-la precisa começar pelas violências psicológica e emocional para uma melhor neutralização da vítima — religiosos utilizam também a violência espiritual3. A partir destas, se inicia o processo de manipulação na vítima por meios de elementos que muitas vezes são imperceptíveis:

Ambos os tipos de violência são utilizados para que a vítima comece a duvidar de si e da realidade à sua volta. Sua autoconsciência é invalidada e prejudicada. A partir disso, a vítima começa a depositar sua confiança no abusador, pois ele a convenceu que somente ele sabe o que faz e o que é a verdade (CARVALHO, 2023, n.p.). 

A violação que acontece afeta todo o ser da vítima, ocorre uma alteração em sua estrutura enquanto pessoa. Diane Langberg (2002) nos apresenta que vítimas de traumas complexos têm suas individualidades e integridades afetadas quando sofrem tais violações. Baseando-se em Gênesis 1.26-28, Langberg nos apresenta três aspectos da imagem de Deus que são afetadas.

O primeiro aspecto é a voz, em analogia à voz do próprio Deus (“disse Deus”); ela é a articuladora da identidade, representação da identidade da pessoa e uma extensão de si. O segundo aspecto é o relacionamento, em referência à Trindade (“façamos”), o qual é parte de quem Deus é e como devemos imitá-Lo na forma que nos relacionamos, pois fomos feitos para relacionamentos. O terceiro aspecto é o poder, visto que Deus nos fez para termos bom impacto sobre o mundo e uns sobre os outros.

Deus nos fez para viver shalom e abençoar o mundo e o próximo, mas “toda vez que um ser humano age com outro de uma maneira não arraigada na verdade de Deus, acontecem os mesmos resultados: silêncio, isolamento e desamparo” (Ibid., p. 41). É assim que as vítimas de traumas como a VD ficam diante do que lhes é feito: silenciadas, isoladas e desamparadas; este é o alvo do agressor.

O abuso relacional no casamento revela muito sobre o ofensor, sobre o que há no coração dele, pois “a exploração da pessoa vulnerável nos revela muito sobre o explorador e não sobre a vítima da exploração” (Id., 2023, n.p.). Assim como Caim, o agressor diz: “eu não sou guarda da minha família”. É um modo degradante de tratar um semelhante como alguém inferior e fazê-lo acreditar nisso. 

Deveria ser inimaginável fazer isso com alguém cujo compromisso é de cuidar e amar: “não existe forma mais perversa e eficiente de sabotar uma vida humana se não começando por fazer desacreditar a própria noção da dignidade da vida humana, com base no sagrado” (CÉSAR, 2021, n.p.). A violência no casamento ou na família se configura como uma quebra na aliança feita diante de Deus. Não é incomum, entre cristãos, a família não ser vista como sagrada e instituída por Deus. Como Kuiper nos apresenta, de fato parece apenas um contrato social.

Numa sociedade em que os interesses individuais são limitados pelas práticas preocupadas-responsivas com o próximo (nesse caso, o cônjuge e pais-filhos), isso é visto como um sacrifício, mas, para os que vivem na perspectiva do pacto, isso é uma dádiva (KUIPER, op. cit., p. 260), cuidado e compromisso pactual para o bem do cônjuge, da família e para a glória de Deus:

A capacidade de fazer promessas uns aos outros é o cerne da sociedade como pacto. Promessas cimentam as relações morais numa sociedade. Na promessa, o homem estende a mão de forma preocupada-responsiva ao outro. Reconhece ali, que o outro existe, e por isso, é sagrado e digno de proteção. Na promessa, nós nos voltamos para um presente concreto e através da promessa constituem-se formas de preocupação e fidelidade comunitária na sociedade. Por meio da promessa de estender a mão ao outro formam-se posturas sociais que protegem o fraco e o frágil. Há a formação de virtudes sociais que rompem com uma participação egoísta da sociedade. Numa sociedade como pacto, ressoa o chamado para se velar uns aos outros e estenderem as mãos aos irmãos e irmãs (Id., p. 265).

O compromisso e a preocupação-responsiva na comunidade igreja

As famílias das nossas igrejas também são parte da nossa comunidade e, como os agressores, a igreja não pode dizer “eu não sou guarda dos meus irmãos”. Como uma comunidade moral, a igreja precisa responder às quebras dos pactos familiares de forma preocupada-responsiva, com o propósito do cuidado daqueles que estão frágeis e vulneráveis.

Existe uma necessidade de urgência na busca por capacitação para lidar com situações de Violência Doméstica entre seus membros. São necessárias políticas e planos de ação que incluam orientações e suporte à mulher e seus filhos, além de responsabilização dos agressores. Vale salientar que as crianças e adolescentes também são vítimas da Violência Doméstica como alvos diretos ou como testemunhas. Isto é regulamentado pela Lei Henry Borel (Lei nº 14.344 de 2022). Os pequeninos e vulneráveis também precisam ser protegidos pela igreja.

Conclusão

Em suma, nas palavras de Kuiper:

Em contraste com a possibilidade sempre latente da violência, está a promessa de estender a mão ao outro. Não é a relação de violência, mas a relação moral que vem em primeiro lugar. Com isso, o mal pode ser controlado (Gênesis 4.6,7)” (KUIPER, op. cit., p. 264).

Portanto, não existe a possibilidade deste assunto continuar sendo silenciado em nossas igrejas. Não podemos ser cúmplices de afronta tão grave ao Criador e aos nossos irmãos. Precisamos de mais pesquisas, desenvolvimento de ministérios e projetos específicos para que a igreja se coloque de forma preocupada-responsiva diante de pecados tão graves. Também é necessário ajudar aos envolvidos no restabelecimento das suas identidades, integridades e poder sobre si.

Suas vozes precisam voltar a ser ouvidas, seus relacionamentos restabelecidos e o poder dado por Deus retomado. Tudo isso para que, vivendo de forma digna, também possam restabelecer o relacionamento com Deus e se encontrarem em shalom, experimentando, plenamente, amor e lealdade.


1 Infelizmente, as mulheres evangélicas são frequentemente desestimuladas a denunciar e responsabilizar seus agressores através de várias justificativas que reforçam a violência cometida pelo cônjuge. Quando isso acontece, a igreja e líderes que as desestimulam se tornam cúmplices do crime e cometem também violência espiritual e psicológica.

2 Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos, mas que pode nos trazer reflexões, mostra que “as igrejas querem ajudar as vítimas, mas nem sempre são efetivas em fazer, pois não sabem por onde começar. As igrejas pouco discutem sobre o assunto, 4 em 10 disseram que raramente discutem ou nunca abordaram e 22% discutem uma vez por ano. Surge assim a importância de debater a violência com o público evangélico, onde a temática quase não é abordada, devido a tabus e dogmas. A igreja pode ter condições de ajudar mulheres que vivem em situação de violência, implantando grupos de acompanhamento dessas mulheres e que trabalhem a conscientização e prevenção deste fenômeno” (COSTA et al., 2017, p. 112-113).

3 Conferir o artigo para uma melhor compreensão da abrangência do impacto psicológico da Violência Doméstica nas vítimas. CARVALHO, Jennifer. O impacto da Violência Doméstica, Psicológica e Espiritual na Certeza da Fé. In: Invisible College. 19 de Jul. 2023. Disponível em: O impacto da violência doméstica, psicológica e espiritual na certeza da fé . Acesso em: 19 Jul. 2023.


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Referências bibliográficas

CARVALHO, Jennifer. O impacto da Violência Doméstica, Psicológica e Espiritual na Certeza da Fé. In: Invisible College. 19 de Jul. 2023. Disponível em: O impacto da violência doméstica, psicológica e espiritual na certeza da fé. Acesso em: 19 Jul. 2023.

CÉSAR, Marília de Camargo. O grito de Eva: a violência doméstica em lares cristãos. Rio de Janeiro, Thomas Nelson Brasil, 2021. E-book. 208 p.

COSTA. Euriane; LIMA, Vera; PAIXÃO, Victor; COSTA, Raine. Violência contra mulher: contribuições da enfermagem junto ao público evangélico. Interdisciplinary Journal of Health Education, v.2, n.2, p.110-114, 2017. Disponível em Violência contra mulher: contribuições da enfermagem junto ao público evangélico | Costa | IJHE – Interdisciplinary Journal of Health Education. Acesso em: 13 jul. 2022.

KUIPER, Roel. Capital moral: o poder de conexão da sociedade. Tradução de Francis Petra Janssen. Brasília: Editora Monergismo, 2019. 310 p.

LANGBERG, Diane. Abuso sexual: aconselhando vítimas. Tradução de Werner Fuchs. Curitiba: Editora Esperança, 2002. 320 p.

LANGBERG, Diane. A Redenção do poder: como entender autoridade e abuso na igreja. Tradução de Sandra Alex. [s.l.]: Editora LIVRE Press, 2023.

LEITE, F. M. C. et al. Violência contra a mulher em Vitória, Espírito Santo, Brasil. Revista Saúde Pública, São Paulo, v. 51, n. 33, p. 1-12, 2017. Disponível em:

Violência contra a mulher em Vitória, Espírito Santo, Brasil. Acesso em 1 Mar. 2022.

VILHENA, Valéria Cristina. Pela voz das mulheres: uma análise da violência doméstica entre mulheres evangélicas atendidas no Núcleo de Defesa e Convivência da Mulher – Casa Sofia (Dissertação). 2009. 152 p. Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2009.