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O impacto da violência doméstica, psicológica e espiritual na certeza da fé

Escrito por Jennifer Carvalho, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2023


Introdução

Segundo a Organização Mundial da Saúde1, vivemos uma crise endêmica de Violência Doméstica (VD) e dados de pesquisas especializadas mostram que, em média, 40% das vítimas são mulheres evangélicas2. Junto a isso, observa-se em estudos sobre a Violência Doméstica que as Violências Psicológica e Espiritual são a principal estratégia de manipulação e manutenção do controle por parte do agressor. Diante disso, pensaremos, no presente artigo, sobre alguns dos impactos destes tipos de violência na espiritualidade das vítimas e a contribuição de Herman Bavinck para entender como a certeza da fé pode ser afetada.

1. A manipulação que gera dúvidas

As Violências Psicológica e Espiritual caminham juntas e suas definições são muito próximas. A primeira, que também pode ser definida como mental, verbal e emocional, é descrita por Darby Strickland (2022, n.p.) como “um padrão de comportamento que promove uma sensação destrutiva de medo, obrigação, vergonha ou culpa em uma vítima”. Seus abusadores podem usar várias táticas, tais como “negligenciar, assustar, isolar, menosprezar, explorar, fazer jogos mentais, mentir, culpar, envergonhar ou ameaçar seus cônjuges” (2022, n.p.).

A mesma autora define Violência Espiritual como “controle e dominação usando como armas as Escrituras, a doutrina ou seu ‘papel de liderança’. Essa forma de abuso pode ser sutil, pois pode se mascarar como prática religiosa” (Ibid., n.p.). Ela continua explicando que os abusadores espirituais que usam “as Escrituras para oprimir suas esposas tendem a ser movidos pelo controle; eles usam culpa, medo e intimidação para manipulá-las para seu próprio conforto e glória (Ibid., n.p.). Quando fazem isso, eles usam da fé sincera que suas esposas têm em Deus para que a manipulação seja eficaz e não tenha risco de falhas. Como podemos ver, a autora destaca que:

Quando um abusador espiritual distorce a Escritura e a usa para atacar, seu abuso pode parecer como se viesse do próprio Deus. Mesmo que ele esteja usando as Escrituras fora de contexto, distorcendo-as e transformando-as em armas, o opressor está usando as palavras de Deus; então, pode parecer que Deus é o autor da vergonha (Ibid., 2022, n.p.).

Ambos os tipos de violência são utilizados para que a vítima comece a duvidar de si e da realidade à sua volta. Sua autoconsciência é invalidada e prejudicada. A partir disso, a vítima começa a depositar sua confiança no abusador, pois ele a convenceu que somente ele sabe o que faz e o que é a verdade. 

Segundo Bavinck (apud ARAÚJO, 2021, n.p.), “o único caminho que nos capacita a alcançar a realidade é o caminho da autoconsciência. Eis a verdade do idealismo, isto é, que a mente humana (ou, em outras palavras, a sensação e a representação) é a base e princípio de todo conhecimento”. Desta forma, quando o único caminho que a vítima tem para a realidade fica obstruído pelas táticas do abusador, ela fica refém dele. 

Podemos relacionar isto com outro ponto que o autor coloca em seus escritos, sobre o fato do ser humano ser dependente e a necessidade desta autoconsciência estar sempre em algo além de si, apontando para a Revelação e, por consequência, para Deus. Portanto, considerar outro ser humano como fonte externa de dependência é contrário ao que é biblicamente orientado (Ibid., 2021, n.p.).

Em seu livro Certeza da fé, Herman Bavinck expõe a necessidade humana de descanso e certeza naquilo que é verdadeiro, que a “certeza existe quando o espírito encontra repouso absoluto em seu objeto de conhecimento”, pois, “desse modo, a mente ou a consciência repousam apenas no verdadeiro ― isto é, de maneira mais profundamente concebida, apenas em Deus, que é, ele mesmo, a verdade. O erro e as mentiras, portanto, conflitam diretamente com a natureza original de nosso espírito” (2018, n.p.).

Assim, toda manipulação e violência citadas geram a despersonalização da vítima e desconfiguração da sua identidade. Por isso, muitas não conseguem se desvincular do agressor. Isso mostra o alto nível de dependência. A Violência Doméstica gera muitas comorbidades em suas vítimas, como depressão, ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático, até variados transtornos de personalidade. É uma forma severa de negligência e violência (STRICKLAND, op. cit., n.p.).

Isto posto, entendemos que a manipulação é uma oposição à certeza da fé, pois gera dúvidas, conduzindo ao erro e à mentira. As vítimas necessitam do conhecimento verdadeiro e genuíno, o qual, segundo Bavinck, exclui as dúvidas em relação a si mesmas, pois “antes, é uma restauração do relacionamento correto entre Deus e o homem, o retorno da confiança que uma criança normal deposita em seu pai” (BAVINCK, 2018, n.p).

2. Caminho, verdade, vida e revelação

Na parábola da ovelha perdida, no Evangelho de Mateus 18.10-14 (BÍBLIA, 2016), temos Jesus nos exortando a não desprezar os pequeninos, termo este que pode aludir tanto à pequena estatura, à idade, posição ou influência. Jesus diz ter prazer em resgatar essa ovelha, este pequenino, pois não é da vontade do Pai que eles pereçam. Ainda em referência aos pequeninos e aos que causam tropeço, no Evangelho de Lucas 17.1-2 (BÍBLIA, 2016), Jesus acrescenta que seria melhor aos causadores do tropeço serem jogados ao mar com uma pedra de moinho amarrada ao pescoço, tamanha a gravidade do erro que é impedir pessoas de irem a Cristo.

Além do caminho a Jesus que não deve ser obstruído, a verdade de Deus não pode ser deturpada, independente do propósito o qual a deturpação possa servir, pois “a Palavra de Deus dirige-se ao homem em sua totalidade, a seu entendimento e à sua razão, a seu coração e à sua consciência, ao indivíduo em seus recônditos ocultos, ao âmago de seu ser, ao homem em seu relacionamento com Deus” (BAVINCK, 2018, n.p.). 

Sendo assim, ao deturpar a Verdade, o abusador rouba a vida da sua vítima. Ele impede-a de viver a plenitude que somente o Evangelho pode gerar em sua existência, uma vez que “os opressores reinterpretam e envenenam a Bíblia que suas vítimas leem” (STRICKLAND, op. cit., n.p.). Isto é uma des-evangelização, é o oposto da Missio Dei. É um ato cruel e contra Deus. 

Como reconciliadores enviados ao mundo por Deus, temos que levar às vítimas o poder do Evangelho e da Revelação. Com tal prática, como diz Bavinck, estamos fazendo Teologia em seu verdadeiro objetivo:

A teologia deve nos conduzir ao descanso nos braços de Deus. Na verdade, uma teologia deve demonstrar seu direito e sua verdade não apenas na área da ciência, mas também e mais poderosamente em meio às terríveis realidades da vida ― no leito da enfermidade e no leito da morte, no sofrimento e na necessidade, no perigo e na morte, à consciência oprimida pela culpa e ao coração sedento por reconciliação e paz. Se a teologia se vê impotente perante essas situações e se encontra, portanto, incapaz de oferecer qualquer forma de consolação, então ela é indigna de seu lugar dentre as ciências (BAVINCK, 2018, n.p.).

O autor também nos relembra que a teologia tem a função de nos conduzir a Deus, e não o contrário. Ela deve alcançar os recônditos mais profundos da realidade da vida, conduzindo-nos ao consolo e às respostas que necessitamos, as quais se encontram no próprio Criador:

Semelhantemente, a teologia deve prescrever medicamentos para as dores da alma; deve ser capaz de dizer como e de que modo podemos nos ver livres de nossa culpa, reconciliados com Deus, alcançar a paciência e esperança em meio às tribulações da vida e encontrar motivos para entoar louvores mesmo em face da morte. Uma teologia que não se preocupa com essas coisas e se dedica apenas ao estudo crítico e histórico não é digna do nome “teologia”. E, por sua vez, um teólogo que está familiarizado com todas as mais recentes publicações e novidades de sua ciência, e, no entanto, permanece mudo perante o leito de enfermidade, não tendo resposta às questões do coração do pecador perdido, também não é digno de seu título e ofício. (Ibid., 2018, n.p.)

É necessário que todos os filhos de Deus sejam conduzidos por uma teologia que, de fato, os façam teorreferentes, reconhecedores da voz do Bom Pastor, para não serem confundidos por outros que querem introduzir outro evangelho. Que qualquer tentativa de usar o Evangelho para dominação seja devidamente denunciada e os agentes dessa tentativa junto aos seus facilitadores sejam todos responsabilizados. 

Jesus nos chama para um Reino de paz e justiça, para o ministério da reconciliação, e as vítimas de violência estão incluídas nisso. Darby nos ajuda a pensar em como a Revelação de Deus é importante no processo de ajudar as vítimas:

Ao nos aproximarmos para ajudar as vítimas, nosso objetivo final é ajudá-las a ver Jesus corretamente e reparar o relacionamento delas com ele. Para que elas alcancem esse objetivo, precisamos restaurar seu relacionamento com as Escrituras, de modo que elas possam novamente acreditar e confiar no amor que Deus lhes tem. Mas o processo de alcançar essa meta precisa ser tão redentor quanto a própria meta. Ao cuidarmos de pessoas fragilizadas, precisamos fazê-lo de uma maneira que represente o coração de Jesus em favor delas (2022, n.p).

Conclusão

Portanto, as Violências Doméstica, Psicológica e Espiritual são opostas à shalom e ao que Deus nos criou para viver: plena paz e reconciliação com Ele. Precisamos pensar com mais intencionalidade no tipo de Teologia que estamos produzindo e, enquanto fazemos isso, olhar para os pequeninos do Senhor, os quais foram feitos à Sua imagem e semelhança. 


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1 ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE. Devastadoramente generalizada: 1 em cada 3 mulheres em todo o mundo sofre violência. Organização Pan-Americana da Saúde. 9 Mar. 2021. Disponível em: Devastadoramente generalizada: 1 em cada 3 mulheres em todo o mundo sofre violência. Acesso em 1 Mar. 2022. 

2 VILHENA, Valéria Cristina. Pela Voz das Mulheres: uma análise da violência doméstica entre mulheres evangélicas atendidas no Núcleo de Defesa e Convivência da Mulher – Casa Sofia (Dissertação). 2009. 152 p. Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2009. Disponível em: http://tede.metodista.br/jspui/handle/tede/529. Acesso em 1 Mar. 2022.


Referências bibliográficas

ARAÚJO, Hudson. “Estou pensando em acabar com tudo” e a dependência humana. In: Invisible College. 09 de Abr. 2021. Disponível em: “Estou pensando em acabar com tudo” e a dependência humana. Acesso em: 01 Abr. 2023.

BAVINCK, Herman. A certeza da fé. Tradução de Fabrício Tavares de Moraes. Brasília: Editora Monergismo. 2018. E-book. 102 p.

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Nova Versão Transformadora. São Paulo: Editora Mundo Cristão, 2016.

ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE. Devastadoramente generalizada: 1 em cada 3 mulheres em todo o mundo sofre violência. Organização Pan-Americana da Saúde. 9 Mar. 2021. Disponível em: Devastadoramente generalizada: 1 em cada 3 mulheres em todo o mundo sofre violência. Acesso em 1 Mar. 2022. 

STRICKLAND, Darby A. Desmascarando o abuso: Um guia bíblico para ajudar as vítimas. Tradução de João Paulo Oliveira. São José dos Campos: Editora Fiel, 2022. E-book. 394 p.

VILHENA, Valéria Cristina. Pela voz das mulheres: uma análise da violência doméstica entre mulheres evangélicas atendidas no Núcleo de Defesa e Convivência da Mulher – Casa Sofia (Dissertação). 2009. 152 p. Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2009. Disponível em: http://tede.metodista.br/jspui/handle/tede/529.