Escrito por Mariana Guzzoni, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2023
Deus não criou o homem dissociado da realidade. Ao contrário, ao homem foi dado o mandato cultural, para guardar e cultivar o Jardim, implicando em vocação, trabalho, criatividade, desenvolvimento e progresso, mas tudo em cooperação e obediência ao próprio Deus. Quando o ser humano rompeu com seu Criador, houve também um rompimento com a realidade e com toda a fundamentação, motivação e preceitos divinos. O homem tentou viver como seu próprio deus e sua ambição egoísta pelo progresso foi vista nas primeiras páginas das Escrituras, quando ele tentou construir a Torre de Babel, que representaria domínio, poder e progresso.
A dissociação do homem com a realidade criada não faz com que ele perca suas habilidades, dons e talentos, tampouco que não haja mais vocação ou trabalho. Entrementes, o trabalho agora é afetado pela ânsia de progredir a qualquer custo e pela busca de algo mais, que fica cada mais inalcançável. As sementes do progresso foram plantadas no Éden, quando a tentação de progredir ao nível de Deus foi abraçada e consumada pela desobediência ao seguir um engano de que era possível ser ou fazer qualquer coisa à parte de Deus. O progresso em si não seria algo ruim, se fosse construído nos moldes criacionais; embora o progresso oriundo da Queda pudessem ter aparência de “trigo”, seus efeitos seriam “joio” para humanidade.
Dessa forma, sementes e muito labor, sob o sol e chuva da graça comum de Deus, fruto de Sua bondade e fidelidade, floresceram no Iluminismo, quando o homem arrogou ser o responsável pela sua própria felicidade, a qual somente seria possível se colocassem sua fé, esperança e amor no progresso. Todos os holofotes iluministas destacavam essa nova devoção, consoante Bob Goudzwaard ensina com maestria:
“O cidadão burguês vivia sob a ilusão de ser o forjador da sua própria felicidade.
(…)
Essa nova fé, unida a uma nova concepção de justiça e ética, não poderia senão levar a um novo tipo de sociedade com suas próprias formas e estruturas sociais. A expressão social mais pura da fé, da lei e da ética medievais é encontrada na igreja, nas casas senhoriais e nas guildas. A expressão mais clara da fé do século 18, da justiça natural deísta e da ética utilitarista, por outro lado, é encontrada numa estrutura social inteiramente nova e radicalmente diferente: no empreendimento industrial ou na fábrica. De acordo com Thomas Ashton, essa é a forma dominante de organização sob o capitalismo industrial (GOUDZWAARD, 2019, p. 82, 86).
Para que o homem pudesse ser o protagonista do progresso, Deus e suas ordenanças criacionais eram um impeditivo para o desenvolvimento autônomo e sua busca por felicidade. Um ser transcendente não se mostra compatível com o desejo do homem de ser governado apenas pela imanência, por si próprio. Com a mentalidade já cauterizada pelo utilitarismo, cria-se um deus que não se envolve, tampouco atrapalha o progresso humano. Nas palavras de Bob Goudzwaard:
Assim que Deus se move para o segundo plano, como aquele que molda o destino presente do homem, é criado um ambiente legítimo para que o homem tome o seu destino nas próprias mãos. O Deus que se retira é o complemento do homem que vai para frente. E enquanto Deus na sua providência não pode mais julgar e punir o homem, este pode começar a garantir para si uma boa vida nesta terra. O homem pode agora “prover” para si mesmo! Assim, o Deus que não julga é o complemento do homem que absolve a si mesmo. (GOUDZWAARD, 2019, p. 48).
Dessa forma, o homem coloca mais que expectativas no progresso, coloca a sua fé, a sua vida. Na atualidade, o resultado dessa devoção é a exaustão e esgotamento das pessoas, bem como uma redução cada vez maior de capital moral, com a ética, valores e princípios deturpados pelo utilitarismo e pela incessante busca da felicidade. O homem encontra-se perdido e com graves problemas psicológicos, emocionais, espirituais e relacionais; sem saber que o preço cobrado pelo ídolo do progresso é a usurpação de todo o significado de sua vida. Ademais, a própria criação geme pelos problemas ecológicos sofridos, de maneira que tal esgotamento também tem custado caro ao homem. Novamente, é oportuno mencionar o ensino de Goudzwaard:
Há mais em jogo do que uma confiança ligeiramente reduzida no “progresso” por parte do homem ocidental. Toda a sua perspectiva de vida sofreu um choque. As promessas não cumpridas de progresso provocaram um vazio, um vácuo em relação ao significado da vida e da sociedade. Muitos de nós até mesmo vivenciamos a morte da ideia de progresso como uma espécie de traição divina. A própria coisa em que depositamos toda nossa confiança está se voltando contra nós para nos devorar. E o que resta para alguém que foi traído pelos seus deuses?
Se essa observação está correta, então nos encontramos numa conjuntura muito crítica no desenvolvimento da civilização ocidental. Nenhuma sociedade ou civilização pode continuar a existir sem que tenha encontrado uma resposta à pergunta do sentido. O vazio criado pela morte do deus do progresso deve ser preenchido com outra coisa. Mas que coisa será essa? (GOUDZWAARD, 2019, p. 262).
Assim, o que o devoto ao progresso não percebe é que Cristo Jesus continua sendo o Senhor de toda a criação, de modo que todo esse esgotamento pode ser visto como um presente de Deus, chamando o homem de volta para a casa. Dessa vez, não mais para o Éden, mas para a Cidade Celestial, a Nova Jerusalém, onde os moldes criacionais serão plenamente restabelecidos.
Portanto, o vazio criado pela morte do deus do progresso deve ser preenchido pelo único e verdadeiro Deus Soberano; Criador de toda a realidade; doador de toda vocação e talentos; e fonte de todo o sentido e significado existencial do homem. Somente um retorno às normas e orientações estabelecidas nas Escrituras, com uma renovação do coração de forma profunda, tirará o homem do reducionismo que a idolatria ao progresso o aprisionou, permitindo-lhe guardar e cultivar a criação em uma sociedade pluralista, onde os valores divinos de justiça, bondade, beleza e verdade farão parte de toda a vida e trabalho das pessoas. O homem experimentará, então, um genuíno progresso: o progresso de virtudes.
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Bibliografia
GOUDZWAARD, Bob. Capitalismo e progresso: um diagnóstico da sociedade ocidental. Trad.: Leonardo Ramos. 1ª ed. São Paulo: Vida Nova. 2019. 280 p.