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O drama da doutrina: uma resenha crítica

Escrita por Larissa Cristhina Giron Ferreira Vianna, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2024


Uma metodologia teológica tecida em resposta às questões da contemporaneidade. Talvez seja essa uma síntese da proposta de O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã, obra de Kevin J. Vanhoozer. A síntese, no entanto, não objetiva abordar de maneira simplista o vasto conteúdo discutido entre as quase 500 páginas que compõem a obra, posto que apenas uma sentença não seria suficiente para expressar a profundidade do que é proposto por Vanhoozer. Mas espera-se, com isso, introduzir uma apresentação de um dos seus tópicos centrais.

Autor de diversos livros e artigos e professor na Trinity Evangelical Divinity School, Kevin Jon Vanhoozer publicou O drama da doutrina em 2005, pela editora Westminster John Knox Press, traduzido em 2016 pela editora Vida Nova. A obra é dividida em 12 capítulos, organizados em 4 partes, além da introdução e da conclusão.

Logo na introdução, é possível observar uma premissa que permeará toda a leitura: “A doutrina, longe de ser um assunto de teoria abstrata é na verdade a essência da vida real. A vida real está localizada no caminho de Jesus Cristo, e o propósito da doutrina é conduzir-nos com precisão por esse caminho” (VANHOOZER, 2016, p. 18). Desse modo, ainda que outras reflexões sobre o que se trata a doutrina sejam ressaltadas, é possível observar que o autor mantém o parâmetro cristocêntrico, deixando claro que a verdadeira doutrina sempre deve conduzir-nos a Cristo.

A fim de desenvolver esse argumento, Vanhoozer utiliza a metáfora do teodrama. Por meio de inúmeras referências à literatura teatral, os leitores são levados e lapidar o olhar acerca de como o cânon bíblico pode ser compreendido como uma grande encenação redigida pelo próprio Deus e encenada por diversos personagens ao longo da história.

A primeira parte desenvolve essa proposta, apresentando o evangelho como o teodrama, no qual a humanidade também está integrada: “[…] a vida é um teatro interativo divino-humano, e a teologia envolve tanto o que Deus disse e fez pelo mundo quanto o que devemos dizer e fazer como resposta de gratidão (VANHOOZER, 2016, p. 53). Nesse sentido, o mundo é abordado metaforicamente como um grande palco, um teatro de ações, onde somos convidados a encenar e comunicar de acordo com o evangelho (VANHOOZER, 2016, p. 75). Mas como encenar? A resposta para tal questão configura um grande desafio que o autor indica como o compromisso do livro: “O compromisso deste livro é responder à seguinte pergunta urgente: Qual ação comunicadora a igreja deveria reconhecer como oficial e por quê?” (VANHOOZER, 2016, p. 74).

A doutrina, diante disso, é tida como a direção para uma participação adequada no drama em questão (VANHOOZER, 2016, p. 128). Na segunda parte, Vanhoozer desenvolve os argumentos, apontando para a necessidade da doutrina estar voltada para a compreensão de que as Escrituras são a ação comunicadora divina (VANHOOZER, 2016, p. 130). Desse modo, o cânon bíblico é tido como o roteiro que deve ser seguido pela igreja. Porém, a leitura do cânon, segundo o autor, não deve ser feita de maneira somente propositiva, como uma sequência de apreensão de informações.

 Ainda que o olhar propositivo não deva ser totalmente descartado, uma vez que ele desempenha uma parte importante da leitura do roteiro: “O gesto revelador do propositivista é extrair o conteúdo propositivo da forma e do ambiente específicos de um ato de fala” (VANHOOZER, 2016, p. 294). O autor chama a atenção para a importância da imaginação enquanto um recurso cognitivo para a leitura do roteiro (VANHOOZER, 2016, p. 296). Isso, de modo algum, assinala uma autonomia para atribuir novas significações ao cânon, mas enxergá-lo de maneira dialogal com o meio e o tempo em que se vive. Esse tópico é discutido na terceira parte do livro, onde o teólogo(a) é comparado(a) ao dramaturgista, que tem como missão fazer uma adequação dramática em diferentes contextos, sem abandonar a fidelidade às Escrituras. 

A quarta parte, por fim, constitui uma das abordagens mais práticas de toda a obra. Por meio da análise da doutrina da igreja, o autor nos convida a refletir acerca da atuação no drama, aplicando o teodrama à vida cristã e seus inúmeros desafios: “Nós vamos à igreja para ensaiar, para celebrar e para compreender melhor o drama da redenção. E saímos da igreja para servir ao mundo, para encenar nosso papel no drama da redenção” (VANHOOZER, 2016, p. 414).

O drama da doutrina apresenta-se como uma das maiores obras da teologia contemporânea. Em um contexto onde a filosofia da linguagem ergue argumentos cada vez mais fluidos, característicos da pós-modernidade, a proposta de Vanhoozer apresenta uma abordagem canônico-linguista, em que é possível dialogar culturalmente sem perder de vista a centralidade das Escrituras. A metáfora do drama é um excelente recurso para que o leitor compreenda os diferentes atos que compõem a narrativa da redenção, bem como todos os elementos envolvidos nele: ao identificar o autor, cenário, roteiro, dramaturgistas e atores. 

Não obstante, é possível que o leitor que não esteja familiarizado com certas noções de teatro, bem como de filosofia, tenha certeza dificuldade para compreender o desenvolvimento de algumas ideias no texto. Com isso, em alguns momentos pode ser necessária a realização de breves pesquisas para dar continuidade à leitura. Mas, a despeito da complexidade, nota-se que o autor preocupa-se em destrinchar seus argumentos com inúmeros exemplos que, embora muitas vezes extensos, contribuem para uma visão mais clara do objetivo de cada capítulo. 

Finalmente, a obra de Vanhoozer não deve ser encarada como uma leitura para ser feita uma única vez. As metáforas distribuídas ao longo das páginas atribuem ao leitor o trabalho de um arqueólogo, que deve ter paciência para buscar preciosidades que não estão na superfície, mas que quando encontradas são muito recompensadoras.