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Vestígios da Trindade no Antigo Testamento

Escrito por Yvis Freire Santos, estudante do Pocket Essencial 2023


Introdução

Geralmente, uma das críticas à doutrina da Trindade aponta para uma suposta descontinuidade em relação ao que é apresentado na Bíblia Hebraica. Argumenta-se que esta doutrina seria uma quebra do monoteísmo judaico, uma inovação posterior ou um reflexo da influência da filosofia grega. Diante disso, este artigo visa elucidar e discutir os sinais de diversidade na unidade da natureza divina, destacando a unidade e continuidade da autorrevelação de Deus nos dois Testamentos.

O Shemá

Uma das afirmações mais emblemáticas do monoteísmo judaico no Antigo Testamento está contida no Shemá: “Ouça, ó Israel: O Senhor, o nosso Deus, é o único Senhor” (Dt 6:4, NVI). Embora, à primeira vista, o texto não pareça indicar a possibilidade de um Deus trino, com uma análise mais aprofundada é possível observar que este não é o caso. 

Primeiro, dada a tendência idólatra de Israel, é vital entender que a ênfase na singularidade de Deus não é meramente quantitativa, mas qualitativa: Yahweh é o único verdadeiro Deus e digno de adoração1. Segundo, o termo hebraico para “único” (echad) não implica necessariamente absoluta singularidade, mas permite uma pluralidade dentro dessa unidade2. Um exemplo deste conceito pode ser visto em Gênesis 2.24, onde o homem e sua mulher, em sua pluralidade, se tornam uma só carne, uma unidade: “Por essa razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e eles se tornarão uma só carne” (Gn 2:24, NVI). Ou seja, a passagem não contradiz a noção de um Deus trino.

O Anjo de Yahweh

O “Anjo do Senhor”, ou “Anjo de Yahweh”, é uma das figuras mais proeminentes dentre as teofanias no Antigo Testamento. O Anjo de Yahweh é um representante/mensageiro de Deus que tem um papel de destaque ao longo da narrativa veterotestamentária. Ele tanto se distingue de Yahweh, falando dele na primeira pessoa3, como também se identifica com YHWH, falando dele na primeira pessoa, além de compartilhar de seus atributos e receber adoração4. Portanto, como Geerhardus Vos sugere: “nós devemos assumir que, por trás da dupla representação, existe uma multiplicidade real na vida interior da deidade” (VOS, 2010, p. 97).

Uma leitura trinitária das Escrituras

Ao interpretar textos aparentemente trinitários no Antigo Testamento, corre-se o risco de cair em anacronismo, ou seja, ler o texto bíblico do AT fora de seu contexto e de seu lugar na história da redenção. Embora a revelação plena em Cristo ilumine nossa compreensão, é essencial reconhecer o desenvolvimento progressivo da revelação divina. Ao longo do AT, o texto bíblico tem por foco enfatizar a unicidade de Deus ao povo de Israel, pois muito provavelmente este tomaria a revelação prematura de um Deus em três pessoas como uma tentação ao politeísmo5. Portanto, tais textos não devem ser lidos como declarações explícitas da Trindade, mas, sim, como uma preparação da mentalidade do povo judeu para a plenitude de quem Deus é tal como o conhecemos por meio do NT. Os judeus não tinham a identidade de Deus bem resolvida, havia um suspense, uma sede por quem Deus é, seu nome, sua face, sua glória. Tudo isso culminou e foi satisfeito na pessoa de Cristo6.

Conclusão

Em conclusão, a revelação neotestamentária da natureza de Deus continua, cumpre e esclarece o que foi revelado no Antigo Testamento. A doutrina da Trindade não apenas encontra respaldo em ambos os Testamentos, como também não foi completamente estranha à mentalidade do povo de Deus na antiga aliança. O Deus que se revelou no Antigo Testamento é o mesmo que se manifesta de forma mais completa no Novo Testamento. Em Deus não há mudança nem sombra de variação, mas, no progresso de sua revelação, Ele se torna cada vez mais claro e mais glorioso ao seu povo7.


1 TRINDADE NO ANTIGO TESTAMENTO. Locução de Rodrigo Bibo. BTCast | Bibotalk, 22 jun. 2022. Podcast. Em 25:05.

2 PETERLEVITZ, Luciano R. A Trindade no Antigo Testamento. In: Edições Vida Nova. Teologia Brasileira. 12 ago. 2009.

3 VOS, Geerhardus. Teologia bíblica: Antigo e Novo Testamentos. Tradução: Alberto Almeida de Paula. 2.ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. p. 96.

4 BAVINCK, Herman. As maravilhas de Deus: instrução na religião cristã de acordo com a confissão reformada. Tradução: David Brum Soares. 1. ed. São Paulo: Pilgrim Serviços e Aplicações; Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021. p. 198.

5 VOS, op. cit., p. 98.

6 TRINDADE NO ANTIGO TESTAMENTO, op. cit. Em 19:53.

7  BAVINCK, op. cit., p. 194.


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Bibliografia

BAVINCK, Herman. As maravilhas de Deus: instrução na religião cristã de acordo com a confissão reformada. Tradução: David Brum Soares. 1. ed. São Paulo: Pilgrim Serviços e Aplicações; Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021. 736 p.

JONES, Michael. The Trinity in the Old Testament. InspiringPhilosophy. 2012. 1 vídeo (14:18). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BNt5NKSse0Y

PETERLEVITZ, Luciano R. A Trindade no Antigo Testamento. In: Edições Vida Nova. Teologia Brasileira. 12 ago. 2009. Disponível em: https://teologiabrasileira.com.br/a-trindade-no-antigo-testamento. Acesso em 31 dez. 2023

TRINDADE NO ANTIGO TESTAMENTO. Locução de Rodrigo Bibo. BTCast | Bibotalk, 22 jun. 2022. Podcast. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ngpmDwYclJg. Data de acesso: 31 dez. 2023

VOS, Geerhardus. Teologia bíblica: Antigo e Novo Testamentos. Tradução: Alberto Almeida de Paula. 2.ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. 496 p.