A teologia é a ciência concernente a Deus.
Geerhardus Vos
A teologia não está reservada aos que estão na academia: é um aspecto do pensamento e da conversa de todos quantos vivem e respiram, lutam e temem, esperam e oram.
Kelly Kapic
Numa de suas epístolas pastorais, o apóstolo Paulo, escrevendo a Timóteo, em determinado momento o orienta, dizendo: “Transmitindo essas coisas aos irmãos, serás bom ministro de Cristo Jesus, alimentando com as palavras da fé e da boa doutrina que tens seguido” (1Tm 4:6). No capítulo anterior, Paulo já havia listado as credenciais do caráter que todo ministro de Cristo deve ter diante de Deus e dos homens, mas aqui ele fez questão de apontar à Timóteo a necessidade da fidelidade e diligência no ministério. O mesmo acontece quando ele se dirige a Tito: “Tu, porém, fala o que convém à sã doutrina” (Tt 2:1).
Essa diligência e fidelidade para com as verdades de Deus eram importantes nos dias de Paulo, Tito e Timóteo, e continuam sendo importantes nos dias de hoje, em que o interesse pela doutrina tem perdido espaço e “para muitos em nossa era pós-moderna, sentir é crer, e enunciar crenças sob a forma de doutrina é considerado desnecessário, impossível ou causa de discórdia”1. Onde isso acontece, a doutrina é vista como algo enfadonho, e o estudo da teologia como um assunto distante e desconectado da vida, perdendo-se de vista a sua importância na formação do discipulado cristão.
Não foi sem razão que Kevin Vanhoozer certa vez disse que “a doutrina cristã é necessária para os ser humano florescer. O estereótipo da doutrina como elemento seco e empoeirado representa uma decrépita distorção da realidade, esta, sim, valente e estimulante”2. É necessário, pois, um retorno às “veredas antigas” (Jr 6:16) do conhecimento de Deus e o correto apreço pelo estudo das verdades teológicas da revelação de Deus.
Disse o salmista: “Antes que os montes nascessem, ou que formasses a terra e o mundo, de eternidade a eternidade, Tu és Deus” (Sl 90:2). De eternidade a eternidade. Não é clichê dizer que Deus é antes de todas as coisas. De fato Ele é, no estudo da Dogmática, disciplina conhecida também como Teologia Sistemática, “há boas razões para começar com a doutrina de Deus, se partirmos da admissão de que a teologia é o conhecimento sistematizado de Deus de quem, por meio de quem, e para quem são todas as coisas”3.
Uma característica particular da Teologia Sistemática na enciclopédia das disciplinas teológicas é a sua metodologia. Diferente da Teologia Bíblica, que lida com a revelação sob o olhar do seu desenvolvimento histórico e o descortinar da mente de Deus de modo progressivo ao homem, a Teologia Sistemática lida com esta mesma revelação de um ponto de vista lógico, abordando as Escrituras sob a lente sistemática do quadro geral da revelação de Deus. Ambas as disciplinas são igualmente comprometidas com a Palavra de Deus, diferindo entre si apenas quanto ao método empregado no estudo das Escrituras. Como bem disse o grande teólogo holandês Geerhardus Vos (1862-1949), na sua obra clássica Teologia Bíblica,
“Não há nenhuma diferença sobre se uma estaria mais atrelada às Escrituras do que a outra. Neste aspecto, elas são totalmente parecidas. A diferença também não se estabelece ao se afirmar que uma transforma o material bíblico enquanto que a outra não modifica esse material. Ambas, igualmente, fazem que a verdade depositada na Bíblia passe por uma transformação: a diferença surge, entretanto, no fato dos princípios pelos quais a transformação se efetua, serem diferentes. Na teologia bíblica, o princípio é o de estruturação histórica; na teologia sistemática, o princípio é o de estruturação lógica. A teologia bíblica desenha uma linha de desenvolvimento. A teologia sistemática desenha um círculo“4.
Quando Geerhardus Vos e outros teólogos descrevem a teologia com a “ciência concernente a Deus”5, eles entendem que, como autor e agente da revelação, Deus é ao mesmo tempo o princípio e o fim da reflexão teológica, de modo que compreender o ser de Deus e Seus atributos é fundamental para uma teologia que verdadeiramente glorifique a Deus. É por isso que nas obras de Dogmática, ou Teologia Sistemática, o teólogos iniciem pelo estudo da chamada doutrina de Deus.
Um grande marco na história dessa disciplina foi a Teologia Sistemática de Louis Berkhof (1873-1957), considerado um dos mais importantes teólogos do século XX. Após seu ministério pastoral, lecionou no Calvin Seminary por quase 40 anos, dedicando-se com diligência e fidelidade na preparação de homens para o ministério da Palavra de Deus. Autor de 22 livros, Teologia Sistemática é sua principal obra, sendo livro-texto em diversos seminários.
Aquilo que Berkhof disse nos seus dias continua sendo verdade atualmente. Todas vezes que conhecer e amar a Deus se torna secundário na peregrinação teológica, em que o Senhor passa a ser visto como um mero objeto de estudo, “o homem deixou de reconhecer o conhecimento de Deus como algo que lhe foi dado na Escritura e começou a orgulhar-se de ter a Deus como seu objeto de pesquisa”. Eis a teologia em terceira pessoa. A vida cristã é mais do que um assentimento intelectual à verdades teológicas. Ela envolve um caminhar diário com Deus, onde o coração é aquecido em amor e devoção a Ele.
Referências:
BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. Trad. Odayr Olivetti. 4ª ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2012.
Bíblia de Referência Thompson: com versículos em cadeia temática; Antigo e Novo Testamentos / compilado e redigido por Frank Charles Thompson. Trad. João Ferreira de Almeida. São Paulo: Editora Vida, 2010.
VANHOOZER, Kevin. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Trad. Daniel de Oliveira. 1ª ed. São Paulo: Vida Nova, 2016.
VOS, Geerhardus. Teologia Bíblica: Antigo e Novo Testamentos. Trad. Alberto Almeida de Paula. 2ª ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2019.
Notas:
- Vanhoozer, p. 11
- Vanhoozer, p. 13
- Berkhof, p. 19
- Vos, p. 28
- Berkhof, p. 19