Escrito por Ivan Henrique Cordeiro Costa, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2022
Enxergando no escuro
Desde o surgimento da filosofia, na Antiguidade, os filósofos buscam analisar o mundo atentamente a fim de compreendê-lo. Com isso, a percepção correta da realidade, o entendimento de como o mundo funciona e a apreensão da existência humana foram tarefas desenvolvidas pela filosofia ao longo do tempo. Todavia, novas questões sempre surgiram no decorrer da história, suscitando continuamente o trabalho dos pensadores e filósofos.
Dessa forma, a constante necessidade de esforço para responder às indagações de cada época levou a atividade filosófica a uma incessante necessidade de adaptação e atualização. Nesse sentido, a definição do filósofo italiano Giorgio Agamben sobre a contemporaneidade ajuda na compreensão da tarefa do pensamento filosófico.
Destarte, Agamben apresenta um conceito sobre o que é ser contemporâneo1 diferente do usualmente definido nos dicionários, porquanto o autor desenvolve a ideia de que a contemporaneidade está mais associada a uma inconformidade ao seu próprio tempo do que a uma adequação a ele. Tendo em vista essa ideia basilar, Agamben desenvolve seu conceito com a imagem de luz e escuridão.
Assim sendo, para o filósofo, o verdadeiro contemporâneo é aquele que consegue reduzir as luzes de sua época a fim de enxergar a escuridão de seu tempo. Isto é, o contemporâneo é aquele que não se distrai com aquilo que já está bem nítido na claridade, posto que, na realidade, ele se volta às indagações ainda obscuras. Fixar os olhos no escuro é uma atividade consciente e reflexiva, não sendo uma forma de fugir das luzes, mas, sim, um esforço ainda maior de perceber aquilo que não está bem compreendido na claridade.
Nesse sentido, o contemporâneo é aquele que consegue se distanciar de seu próprio tempo sem se tornar alheio e, assim, ter uma visão mais precisa das questões que ainda não estão bem resolvidas. Assim, nas palavras do próprio autor:
A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela.2
Diante disso, percebe-se como a tarefa filosófica é sempre atualizada ao seu próprio tempo, isto é, sempre é contemporânea, porquanto se debruça sobre as questões do mundo e do ser humano que ainda necessitam investigação. Por conseguinte, surge o questionamento de como o filósofo pode adentrar a escuridão e buscar clareza para aquilo que está no escuro. Nesse sentido, a percepção de outro filósofo ajuda nessa tarefa de compreensão da realidade, a saber, a clareira, de Martin Heidegger.
Claridade para enxergar
Uma vez que, segundo Agamben, o contemporâneo é aquele que se esforça para enxergar o escuro, Heidegger colabora com a tarefa do pensamento filosófico com a ideia da clareira. Agamben convida os pensadores a olharem para a escuridão de seu tempo a fim de examinarem as indagações ainda não resolvidas, enquanto Heidegger propõe a clareira como metáfora para desvelar as sombras do pensamento filosófico.
Nessa perspectiva, a proposta do filósofo alemão é que o conceito de alétheia (verdade) pode ajudar na tarefa do pensamento de investigar a realidade3. A clareira é uma metáfora para a alétheia, na qual a imagem apresentada por Heidegger consiste em uma densa floresta escura onde a clareira oferece luz em meio às trevas, conforme esclarece Marco Antônio de Castro:
Heidegger dedica uma atenção profunda e ampla à questão da verdade, pois é nela que se decide e constrói o projeto do pensamento metafísico ocidental. Porém, Heidegger se centraliza na palavra grega alétheia, traduzida normalmente como verdade. O pensador prefere traduzi-la por desvelamento. Desvelamento é, inicialmente, o ón vindo à sua presença. Porém, se ficasse só no desvelamento, ainda estaria se limitando à predominância do pensamento metafísico, que se constrói em cima da presença e da luz, sintetizado na questão motriz para Platão: Êidos, que originou a palavra portuguesa ideia. Não podemos esquecer que, para os gregos, a grande e permanente questão é o permanecer. Então, Heidegger vai refletir sobre a possibilidade do ón aparecer como o que, aparecendo, se faz presente. E assim surge a questão da clareira. Ela não foi pensada pela filosofia e, por isso, quando a filosofia chega ao fim e é substituída pela ciência, a questão da clareira passa a ser a questão da filosofia. Mas aí a filosofia se torna um questionar enquanto pensar. E a questão não é mais simplesmente o ón enquanto o que se faz presente, mas a clareira, ou seja, o livre aberto. Como possibilidade de aparecimento, a presença do ón, ou seja, da clareira, como o lugar tanto do desvelar como do velar. (…) Porque na clareira e só na clareira a luz da visão pode aparecer como luz e como visão. A luz não é a clareira. Pressupõe-na. Na clareira, não há só luz, há também sombras. O raio que risca brilhando só o pode fazer porque brilha no aberto livre da clareira. Não vemos a partir da visão, vemos com a visão a partir do aberto livre da clareira.4
Desse modo, percebe-se que o filósofo buscou uma forma de romper a escuridão do pensamento com um conceito de verdade que permite enxergar o mundo com uma visão a partir da clareira. Em vista disso, Heidegger buscou realizar seu projeto de desconstrução para chegar ao verdadeiro ser por trás dos entes, sendo essa a tarefa do pensamento que necessita de uma luz especial para ser realizada.
Assim sendo, pode-se observar como dois diferentes autores, em momentos diversos, usaram a metáfora de luz e escuridão com a finalidade de apresentarem suas noções do trabalho filosófico. O italiano Agamben convida a olhar para a escuridão com o fim de enfrentar as questões ainda obscuras, enquanto o alemão Heidegger também enfrenta a escuridão por meio da clareira com a verdade que desvela aquilo que está encoberto pelas sombras.
Por um lado, Agamben chama a atenção para a necessidade de não se conformar com aquilo que já está esclarecido, ao passo que Heidegger, com a consciência da escuridão, busca uma forma de rompê-la por meio da verdade que desvela. Diante disso, percebe-se que a tarefa do pensamento filosófico considera a realidade de que o mundo possui uma escuridão a ser dissolvida por meio da verdade que ilumina.
O trabalho de Heidegger de analisar a história da filosofia conduziu-o a essa conclusão de que algo estava errado desde o princípio, porquanto faltava a verdade que desvela, faltava a clareira. Todavia, essa alétheia buscada desde os gregos antigos não pode ser encontrada de forma imanente, porquanto ela é transcendente ao mundo, isto é, precisa ser revelada.
A luz mundo
Desde a antiguidade, os filósofos procuraram compreender e interpretar a realidade por meios imanentes ao recorrerem aos sentidos e à razão. Contudo, restou limitada sua atividade, conforme foi visto até aqui. Nesse sentido, a clareira que permite olhar a escuridão e trazer soluções para as indagações constantes no mundo é a revelação divina na qual o cristianismo está fundamentado. Ademais, a metáfora de luz e escuridão é algo canonicamente estabelecido no pensamento cristão e efetivamente oferece a visão para enxergar a realidade de forma apropriada.
Destarte, verifica-se essa percepção bem no início de tudo com o primeiro ato da criação de Deus sendo justamente a luz (Gn1:1-3). Dessa forma, fica estabelecido como princípio para o desenvolvimento da revelação que Deus é aquele que traz a luz para a realidade, sendo a partir dessa luz que o restante da obra da criação é executado por Deus. Isso é significativo por mostrar que sem Deus é impossível que a escuridão da existência seja rompida.
Além disso, a revelação bíblica mostra que não existe apenas uma escuridão primordial no mundo em si, porquanto existe também uma escuridão que encobre o coração humano decorrente do pecado que adentrou a história (Gn 3). Diante disso, a narrativa bíblica revela a obra de Deus em trazer luz para as trevas da humanidade, de modo que a verdadeira compreensão do mundo e do ser humano somente pode acontecer a partir do próprio Deus.
Nessa perspectiva, diversas passagens bíblicas usam a metáfora luz e escuridão, demonstrando a percepção geral da revelação de que a humanidade precisa da luz divina para viver e se desenvolver, conforme visto nos livros de sabedoria: “Lâmpada para os meus pés é a tua palavra e, luz para os meus caminhos” (Sl 119:105), e ainda: “Mas a vereda dos justos é como a luz da aurora, que vai brilhando mais e mais até ser dia perfeito. O caminho dos perversos é como a escuridão; nem sabem eles em que tropeçam” (Pv 4:18-19).
Nesse diapasão, a história bíblica segue até o seu ápice com a encarnação e manifestação de Cristo Jesus, o qual é revelado como a luz do mundo que veio de Deus para dissipar as trevas da existência humana:
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez. A vida estava nele e a vida era a luz dos homens. A luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela. Houve um homem enviado por Deus cujo nome era João. Este veio como testemunha para que testificasse a respeito da luz, a fim de todos virem a crer por intermédio dele. Ele não era a luz, mas veio para que testificasse da luz, a saber, a verdadeira luz, que, vinda ao mundo, ilumina a todo homem. (…) De novo, lhes falava Jesus, dizendo: Eu sou a luz do mundo; quem me segue não andará nas trevas; pelo contrário, terá a luz da vida. (João 1:1-9 e 8:12)
Desse modo, Cristo Jesus é a revelação suprema (Hb.1:1-4), sendo a luz divina cuja manifestação traz sentido e clareza para a realidade da criação. A partir da revelação de Deus por meio de Cristo Jesus, a escuridão do mundo e do coração humano pode ser dissipada e o cristão pode se mostrar como o verdadeiro contemporâneo de Agamben que enfrenta a escuridão com a perfeita clareira de Heidegger.
Destarte, o cristianismo oferece ao mundo as ferramentas para a interpretação da realidade de uma maneira que pode verdadeiramente responder e confrontar as indagações e os dilemas que constantemente aparecem. O cristianismo está fundamentado na revelação divina, a qual dissolve as sombras dessa existência.
Diante disso, o cristianismo contribui com a tarefa do pensamento de um modo mais profundo e abrangente do que a filosofia por si só consegue fazer. Uma filosofia pautada pela revelação bíblica é algo que pode conduzir sabiamente a humanidade em seus tortuosos caminhos nesse mundo até o dia em que a luz divina brilhar plenamente. Nesse dia, não mais existirá qualquer vestígio de escuridão, conforme está escrito no último capítulo da revelação bíblica: “Então, já não haverá noite, nem precisam eles de luz de candeia, nem da luz do sol, porque o Senhor Deus brilhará sobre eles, e reinarão pelos séculos dos séculos” (Ap 22:5).
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1 KARINA, C. S. Resenha: “O que é o Contemporâneo?”, de Giorgio Agamben. In: Revista Subjetiva. Medium – Revista Subjetiva. 05 de abril de 2017. Disponível em: https://medium.com/revista-subjetiva/resenha-o-que-%C3%A9-o-contempor%C3%A2neo-de-giorgio-agamben-5e5a49fd9a3. Acesso em 05 de abril de 2022.
2 AGAMBEN, Giorgio. apud KARINA, C. S. Resenha: “O que é o Contemporâneo?”, de Giorgio Agamben. Op. Cit.
3 MAURÍLIO, Delvanir. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. In: Pensamento Extemporâneo – Faculdade Dom Luciano Mendes. Pensamento Extemporâneo. 04 de agosto de 2011. Disponível em https://pensamentoextemporaneo.com.br/?p=1537. Acesso em 05 de abril de 2022.
4 CLAREIRA. In: Dicionário de Poética e Pensamento. 2021. Disponível em: http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br/index.php/Clareira. Data de acesso: 05 de novembro de 2022.
Referências
CLAREIRA. In: Dicionário de Poética e Pensamento. 2021. Disponível em: http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br/index.php/Clareira. Data de acesso: 05 de novembro de 2022.
KARINA, C. S.. Resenha: “O que é o Contemporâneo?”, de Giorgio Agamben. In: Revista Subjetiva. Medium – Revista Subjetiva. 05 de abril de 2017. Disponível em: https://medium.com/revista-subjetiva/resenha-o-que-%C3%A9-o-contempor%C3%A2neo-de-giorgio-agamben-5e5a49fd9a3. Acesso em 05 de abril de 2022.
MAURÍLIO, Delvanir. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. In: Pensamento Extemporâneo – Faculdade Dom Luciano Mendes. Pensamento Extemporâneo. 04 de agosto de 2011. Disponível em https://pensamentoextemporaneo.com.br/?p=1537. Acesso em 05 de abril de 2022.