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Escrevendo para o Shalom — Parte 2: breves reflexões sobre a ética cristã da escrita

Escrito por Vanessa Soeiro Carneiro, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2022


Em “Escrevendo para o Shalom — Parte 1: a cosmovisão cristã e o ofício literário” (CARNEIRO, 2022), afirmamos que a criação literária deve ser cristocêntrica e que os escritores cristãos devem buscar experimentar o shalom1 de Deus nesse processo e transmiti-lo aos seus leitores. Contudo, tal declaração levanta um questionamento: Como escrever de modo a refletir o shalom divino vivendo em um mundo caído, manchado pelo pecado? Para responder essa pergunta, refletiremos sobre a ética cristã no processo de criação literária, buscando desenvolver uma ética cristã da escrita.

Antes de tudo, precisamos entender que — embora a escrita não seja a principal forma de sustento de alguém, mas apenas um hobby — escrever é trabalhar. Não é à toa que muitos escritores se referem ao processo de criação como labor literário. Logo, para entender o que seria uma ética cristã da escrita devemos pensar na ética cristã do trabalho adaptando-a ao ofício literário.

Segundo o teólogo Vern Poythress (2019), os seres humanos foram criados e projetados para servir a Deus e essa “obrigação de servir a Cristo é ainda mais evidente quando aplicada aos cristãos.” (POYTHRESS, 2019, p. 30). Tal pensamento é ratificado pela própria Bíblia quando Paulo escreve à igreja em Colossos aconselhando-os: “E tudo o que fizerdes, seja em palavra, seja em ação, fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças ao Deus Pai.” (Cl 3.17). Além do mais, de acordo com Poythress (2019), uma das ideias centrais da Reforma Protestante era a de que Deus chamava cada crente para lhe servir por meio do seu trabalho. Por conseguinte, os escritores são vocacionados pelo próprio Deus a usar a literatura em Seu serviço. Assim, devemos escrever não para a nossa própria glória, mas para a glória do Senhor.

Ainda conforme Poythress (2019), outro motivo para o serviço do cristão é o amor a Jesus Cristo. Contudo, não é apenas o nosso amor por Deus, mas, principalmente, o Seu perfeito amor por nós que deve guiar o nosso trabalho. Em nosso artigo anterior, explicamos que “a criatividade dos escritores (e dos seres humanos em geral) deriva da criatividade divina.” (CARNEIRO, 2022, p. 2). De acordo com o artista cristão Makoto Fujimura (2022, p. 37 — grifos do autor), “Deus criou por amor” e é por isso que também devemos “criar no, pelo e para o amor” (FUJIMURA, 2022, p. 39). Portanto, o amor de Deus deve se apresentar não apenas no produto final do nosso trabalho, mas em todo o nosso processo de escrita porque somos imago Dei.

Contudo, isso não significa que o cristão só deva escrever literatura explicitamente cristã2 (embora não haja nada de errado com isso), mas podemos e devemos escrever uma literatura abrangente que não se restrinja ao público cristão e consiga dialogar com a cultura contemporânea. Afinal, o mesmo Deus que disse que somos o “sal da terra” e a “luz do mundo”, conforme Mateus 5.13-14, foi quem nos criou escritores. Ou seja, nossa literatura é o nosso instrumento para salgar e iluminar o mundo, resplandecendo o amor de Deus que ilumina nossos corações por meio de Cristo (2 Coríntios 4.6). Isso significa que a criação literária deve ser permeada também pelo amor ao próximo.

Fujimura (2022) se refere a esse aspecto específico do ofício de escritor, conversar com a cultura, como a habilidade de espreitar além das fronteiras das tribos que formam nosso ecossistema cultural e de navegar entre elas. Porém, para fazermos isso de forma eficiente (sem cedermos à tendência contemporânea de ver a arte somente por meio de uma perspectiva utilitarista) precisamos desenvolver uma cosmovisão cristã que nos permita fazer uma boa exegese cultural. Percebemos, então, que a ética cristã se desenvolve em concomitância com a cosmovisão bíblica. Destarte, o mesmo se aplica para o desenvolvimento de uma ética cristã da escrita.

Isso posto, é interessante destacarmos que, conforme Aristóteles (2005), a literatura é a representação artística da realidade por meio das palavras. Considerando que “a visão de mundo bíblica apreende a realidade a partir das três principais doutrinas que fundamentam a fé cristã: criação, queda e redenção” (CARNEIRO, 2022, p. 2), tais doutrinas se mostram de suma relevância à ética cristã da escrita. A literatura cristã deve retratar tanto a beleza proveniente da criação e da redenção quanto a feiura da queda. Ela também deve demonstrar que é a beleza que impõe limites à feiura, e não o contrário.

Consoante Poythress (2019, p. 110): “Nosso objetivo não é apenas servir ao Senhor nesta vida, mas também servir com a esperança da glória futura no novo céu e na nova terra”. Tal raciocínio é ratificado por Fujimura (2022, p. 28), para quem “o que construímos, projetamos e representamos deste lado da eternidade é importante porque, de alguma forma misteriosa, essas criações se tornarão parte da futura cidade de Deus”. Em outras palavras, devemos acrescentar a consumação — ou Nova Criação, como Fujimura prefere chamar — às doutrinas anteriormente mencionadas. Portanto, nosso processo de criação também deve visar representar o Novo, levando, assim, esperança ao mundo caído no qual habitamos.

Há uma cena no filme Enquanto estivermos juntos3 (2020) que ilustra bem a concepção de Poythress e Fujimura de que devemos criar tendo o Novo como objetivo. Nela, o músico Jean-Luc aconselha Jeremy Camp a escrever músicas com o objetivo de “aguardar o dia”4. Ao ser questionado sobre o que isso quer dizer, ele explica que é “o dia em que não mais haverá mais dor nem sofrimento. No qual todas as lágrimas desaparecerão.” O que ele descreve por meio dessa conversa é justamente o que acontecerá na consumação, quando Cristo retornar não para consertar a criação, mas para transformá-la em algo novo. O cantor prossegue a conversa explicando ainda que a música que ele faz aproxima as pessoas desse dia. Da mesma forma, nossa literatura deve apontar o Novo, trazendo-o para mais perto dos leitores e, quem sabe, até levá-los a ansiar por esse dia.

Todavia, precisamos tomar cuidado para não vermos nossa escrita por um viés utilitarista, tratando-a como se fosse uma arte salvífica. Devemos sempre lembrar que quem convence uma pessoa do pecado é o Espírito Santo, e não nossas histórias e poemas, e é Deus quem a redime por meio de Cristo. Além disso, isso não significa que todas as nossas criações devem ter finais felizes. Afinal, a Nova Criação trará alegria eterna para os filhos de Deus, mas também trará a condenação eterna para aqueles que insistiram em viver em um estado de rebelião contra Deus. 

A reflexão feita até aqui levanta um novo questionamento: Como escrever conforme a ética cristã da escrita utilizando uma linguagem corrompida pelo pecado e vivendo em um mundo caído? Fujimura (2022) nos dá essa resposta. Ao falar sobre o trabalho de Bezalel e Aoliabe na construção da Arca da Aliança, ele explica que os artesãos precisaram “santificar sua imaginação ao sagrado” (FUJIMURA, 2022, p. 23). Se queremos escrever para a glória de Deus, devemos fazer o mesmo. 

Santificamos nossa imaginação buscando nos parecer com Cristo e sermos cada vez mais imago Dei. Fazemos isso nos debruçando sobre a Bíblia, estudando-a, mas, principalmente, deixando-a “(…) nos examinar para sondar profundamente nosso coração e nossa vida.” (FUJIMURA, 2022, p. 39). Devemos permitir que Deus use sua Palavra para nos transformar e nos moldar segundo o seu próprio coração para cumprir seus propósitos. Além disso, precisamos buscar a Deus também por meio da oração. Em outras palavras, para santificar nossa imaginação é necessário desenvolver um relacionamento íntimo com Deus. É desse relacionamento que provém o shalom divino e é esse mesmo shalom que ajusta a nossa cosmovisão e nos capacita a escrever para a glória de Deus.


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1 Termo hebraico que significa paz, mas não apenas no sentido de ausência de conflitos. Shalom é a paz proveniente de um relacionamento íntimo com Deus e que promove satisfação total nEle e pleno desenvolvimento do ser humano. Logo, escrever para o shalom significa, resumidamente, escrever para a glória de Deus.

2 De modo simplificado, por “literatura explicitamente cristã” queremos dizer uma literatura voltada apenas para o público cristão. Esse conceito e as nuances que envolvem a definição de literatura cristã mereciam um artigo por si sós.

3 I still believe é o título original.

4 A expressão original é “Hasten the day”, sendo que hasten pode ser traduzido como acelerar, adiantar. Não há nenhuma palavra em português que traduza completamente a essência da frase.


Referências

ARISTÓTELES. Poética In:  ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A poética clássica. Tradução: Roberto de Oliveira Brandão. 7ª edição. São Paulo: Cultrix, 2005. 33 p.

BÍBLIA. Português. Bíblia de estudo de Genebra. Tradução: João Ferreira de Almeida. 2ª edição. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil; São Paulo: Cultura Cristã, 2009. 1969 p.

CARNEIRO, Vanessa. Escrevendo para o Shalom — Parte 1: a cosmovisão cristã e o ofício literário In: < l1nq.com/6WXho > Acesso em 5 de set. de 2022.

ENQUANTO estivermos juntos. Direção de Andrew Erwin e Jon Erwin. Alabama: Lionsgate Entertenmaint Corporation, 2020. Disponível na Amazon Prime Video. (116 min).

FUJIMURA, Makoto. Arte + fé: uma teologia do criar. Tradução: Rodolfo Amorim. 1ª edição. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2022. 203 p.

POYTHRESS, Vern. O senhorio de Cristo: servindo ao Salvador o tempo todo em tudo o que fazemos, de todo o coração. Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto. 1ª edição. Brasília: Editora Monergismo, 2019. 125 p. 

TOLKIEN, J. R. R. Sobre histórias de fadas. In: TOLKIEN, J. R. R. Árvore e folha. Tradução: Reinaldo José Lopes. 1ª edição. Rio de Janeiro: Harper Collins Brasil, 2020. 72 p.