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Escrevendo para o Shalom — Parte 1: a cosmovisão cristã e o fazer literário

Escrito por Vanessa Soeiro Carneiro, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2022


Os cristãos são chamados para cuidar de toda a criação e promover seu desenvolvimento, o que denominamos “mandato cultural”. Segundo os teólogos Walsh e Middleton (2010, p. 53), esse mandato é “parte do plano original de Deus para o mundo. (…) Ser formadores de cultura é intrínseco à natureza humana”. Ou seja, somos chamados a não nos abstermos do mundo, mas sim a atuarmos nele, ocupando espaços e transformando-o de modo que Deus seja glorificado. Para alcançarmos tal objetivo, precisamos primeiro desenvolver uma cosmovisão genuinamente cristã.

O conceito de cosmovisão passou por um longo processo de desenvolvimento desde que a palavra foi primeiramente usada pelo filósofo Immanuel Kant no final do século XVIII. Para os fins deste artigo, utilizaremos a definição elaborada pelo teólogo e professor de literatura James Sire, por acreditarmos que ela é a mais completa e a que melhor explica o que o termo significa:

Cosmovisão é um compromisso, uma orientação fundamental do coração, que pode ser expresso por uma história ou num conjunto de pressuposições (suposições que podem ser verdadeiras, parcialmente verdadeiras ou totalmente falsas) que sustentamos (consciente ou subconscientemente) sobre a constituição básica da realidade, e que fornece o fundamento no qual vivemos, nos movemos e existimos. (SIRE, 2012 p. 160-161)

Em outras palavras, cosmovisão é uma visão de mundo. Ela funciona como uma lente de contato permanente e por isso norteia o modo como uma pessoa enxerga e, a partir disso, interage com a realidade. Ou seja, cosmovisões são convicções vividas (que podem ou não estar certas) e transparecem no comportamento das pessoas e em tudo que produzem. Nesse sentido, no que tange à cosmovisão cristã, esta busca compreender o mundo a partir dos preceitos bíblicos e por isso também pode ser chamada de cosmovisão bíblica. De acordo com os teólogos Goheen e Bartholomew,

Olhar o mundo por meio das Escrituras é, na verdade, olhar o mundo através de três lentes ao mesmo tempo: como algo criado por Deus, deformado pelo pecado e que está sendo resgatado pela obra de Cristo. Tire qualquer uma dessas lentes e a cosmovisão bíblica ficará distorcida (GOHEEN; BARTHOLOMEW, 2016, p. 104).

Retomando a questão do mandato cultural, uma das áreas na qual o cristão é convocado a atuar é a literatura. É sobre a relação dela com a cosmovisão cristã que pretendemos discorrer neste artigo. Para compreendermos melhor esse relacionamento e a importância que a visão de mundo bíblica possui para o fazer literário, precisamos entender a literatura a partir da própria cosmovisão cristã. Para isso, faremos uma contextualização dessa forma de arte, analisando como as doutrinas de criação, queda e redenção se manifestam nela. 

Em primeiro lugar, precisamos enfatizar que a literatura foi criada por Deus. A Bíblia, a Palavra de Deus e a forma por meio da qual Ele escolheu se revelar aos homens é repleta de poemas. O próprio Senhor Jesus Cristo utilizava parábolas (ou seja, literatura oral) em seus ensinos. Isso nos leva à certeza de que a arte literária não é uma invenção humana, mas faz parte da boa e perfeita criação de Deus, a mesma a que somos chamados para cuidar, preservar e desenvolver. 

Mas, afinal de contas, o que é literatura? Não existe uma definição unânime entre os diversos acadêmicos que estudam o tema e ainda hoje muito se discute sobre o assunto. O conceito mais antigo (e que utilizaremos nesse artigo) provavelmente é o do filósofo grego Aristóteles (2005), para quem a literatura é a arte que usa palavras para imitar a realidade. Entretanto, precisamos esclarecer que essa imitação não precisa ser literal, podendo incluir seres, lugares e elementos fantasiosos – criados pelo próprio autor.

Outro ponto que precisamos levantar é que o mandato cultural não é o único motivo pelo qual utilizamos as palavras para criar novos mundos, seja em prosa, seja em poesia. Para o escritor e professor Tolkien (2020, p. 64), “criamos, na nossa medida e ao nosso modo derivativo, porque fomos criados; e não apenas criados, mas criados à imagem e semelhança de um Criador”. Em outras palavras, a criatividade dos escritores (e dos seres humanos em geral) deriva da criatividade divina e somos chamados a escrever literatura porque somos imago Dei. Inclusive, as primeiras palavras registradas de Adão após ver Eva foram um poema: 

Esta, afinal, é osso dos meus ossos 

e carne da minha carne; 

chamar-se-á varoa, 

porquanto do varão foi tomada.” (Gênesis 2.23)    

Em segundo lugar, é necessário entendermos que a literatura, assim como toda a criação, também foi corrompida com a entrada do pecado no mundo. De acordo com Goheen e Bartholomew (2016, n.p.), “a perversão da literatura e da poesia fica evidente quando Lameque escreve um belo poema, mas o usa para celebrar assassinato e retaliação”. Podemos observar esse fato em Gênesis 4.23-24: 

“Ada e Zilá, ouvi-me; 

vós, mulheres de Lameque, 

escutai o que passo a dizer-vos: 

Matei um homem porque ele me feriu; 

e um rapaz porque me pisou. 

Sete vezes se tomará vingança de Caim, 

de Lameque, porém, setenta vezes sete.” 

Essa perversão permanece na atualidade e torna-se visível sempre que uma obra literária retrata um pecado como algo positivo ou quando um autor usa sua arte para enaltecer a si mesmo e engrandecer o seu ego. Outra forma do pecado se manifestar por meio do fazer literário, talvez menos perceptível que as anteriores, é quando agimos tal qual o servo mau e negligente da parábola dos dez talentos (Mateus 25.14-31). Escrevemos de forma preguiçosa e superficial ao invés de buscarmos lapidar nossas habilidades, almejando sempre escrever a melhor história ou poesia que pudermos. Em suma, a literatura corrompida pelo pecado é aquela que não glorifica a Deus. 

Em terceiro lugar, devemos nos lembrar que o pecado pode até corromper a criação divina, mas não tem poder para destruí-la. Isso significa que a literatura, assim como toda a criação, é passível de redenção através de Cristo. O labor literário deve ser cristocêntrico.  Assim, se a função da literatura é apontar para a realidade, o escritor precisa primeiro interpretá-la para então ser capaz de imitá-la. Para tanto, ele faz uso, consciente ou inconscientemente, da visão de mundo que possui. A cosmovisão bíblica permite ao autor cristão fazer a exegese correta do mundo ao seu redor porque ela é a única que enxerga a realidade de modo verdadeiramente integral. Além disso, ela ressalta ao escritor que sua maior motivação para escrever deve ser por amor a Deus e que o primeiro e principal propósito da sua literatura deve ser glorificar ao Senhor. 

Por meio dessa análise, percebemos que literatura e cosmovisão estão intimamente ligadas. Retomando o conceito previamente apresentado de cosmovisão, percebemos que ela pode ser expressa através de uma narrativa. Sire aprofunda essa ideia explicando que a literatura, o mito e o folclore “colocam a presente realidade humana no contexto mais amplo do significado universal cósmico humano. Eles agem como padrões orientadores. Em suma, funcionam como cosmovisões ou partes de cosmovisões”. (SIRE, 2012, p. 97). Isso significa que, por conta de sua natureza, a literatura talvez seja uma das melhores formas de se apresentar e/ou moldar uma cosmovisão. Por isso, é importante que autores cristãos busquem intencionalmente desenvolver uma visão de mundo bíblica. 

No entanto, eles também devem tomar cuidado para que o relacionamento entre literatura e cosmovisão cristã não se torne artificial. Em conversa com alguns amigos, o escritor e professor C. S. Lewis (2018 p. 239) certa vez afirmou que “a história em si deve impor a moral ao autor. Você descobre qual é a moral escrevendo a história”. Ou seja, por mais contraditório que isso possa parecer, não é o autor quem determina a moral de um texto e sim a própria obra. Refletindo sobre essa fala, concluímos que não cabe ao escritor tentar impor sua cosmovisão à sua literatura sob o risco de torná-la mecânica e superficial. 

Segundo Walsh e Middleton (2010, p. 29), “uma cosmovisão nunca é meramente uma visão de vida. É sempre uma visão também para a vida”. Em outras palavras, a cosmovisão de uma pessoa não molda apenas o modo como ela enxerga o mundo, mas também como vive nele. Ela afeta todos os aspectos da vida, inclusive as produções artísticas. Não são poucos os nomes de escritores cristãos que poderíamos listar para ilustrar esse processo. C. S. Lewis, Eleanor H. Porter, Jane Austen, J. R. R. Tolkien, Margarida de Navarra e T. S. Elliot são apenas alguns dos muitos exemplos. 

Portanto, afirmar que um escritor cristão deve se empenhar em desenvolver uma visão de mundo bíblica significa encorajá-lo a desenvolver um relacionamento íntimo com Cristo. Quanto mais cristocêntrica for sua vida, mais naturalmente sua cosmovisão cristã se refletirá em suas obras. Apenas dessa forma ele poderá não só experimentar o shalom1 de Deus em todo o seu ofício literário como também será capaz de transmitir esse shalom aos seus leitores. 


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1 Termo hebraico que significa paz, mas não apenas no sentido de ausência de conflitos. Shalom é a paz proveniente de um relacionamento íntimo com Deus e que promove satisfação total nEle e pleno desenvolvimento do ser humano. Logo, escrever para o shalom significa, resumidamente, escrever para a glória de Deus.


Referências

ARISTÓTELES. Poética In:  ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A poética clássica. Tradução: Roberto de Oliveira Brandão. 7ª edição. São Paulo: Cultrix, 2005. 33 p.

BÍBLIA. Português. Bíblia de estudo de Genebra. Tradução: João Ferreira de Almeida. 2ª edição. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil; São Paulo: Cultura Cristã, 2009. 1969 p.

GOHEEN, Michael W. BARTHOLOMEW, Craig G. Introdução à cosmovisão cristã: vivendo na intersecção entre a visão bíblica e a contemporânea. Tradução: Mario Loureiro Redondo. 1ª edição. São Paulo: Vida Nova, 2016. 272 p.

LEWIS, C. S. Propriedades Irreais. In: LEWIS, C. S. Sobre histórias. Tradução: Francisco Nunes. 1ª edição. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil: 2018. 17 p.

SIRE, James W. Dando nome ao elefante: Cosmovisão como um conceito. Tradução: Paulo Zacharis e Marcelo Herberts. 1ª edição. Brasília: Editora Monergismo. 2012. 186 p.

TOLKIEN, J. R. R. Sobre histórias de fadas. In: TOLKIEN, J. R. R. Árvore e folha. Tradução: Reinaldo José Lopes. 1ª edição. Rio de Janeiro: Harper Collins Brasil, 2020. 72 p.

WALSH, Brian. MIDDLETON, J. Richard. A visão transformadora: Moldando uma cosmovisão cristã. Tradução: Valdeci Santos. 1ª edição. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. 189 p.