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A esquizofrenia moral moderna¹

Pode o cristianismo ser de fato relevante para os nossos dias? E o que dizer da pandemia? O cético questiona: onde está aquele “Deus todo-poderoso” que criou o Universo, mas não conseguiu impedir a disseminação de um vírus que já causou tantas mortes por todo o mundo? A “pregação” das “boas-novas” diz respeito a algo que faz sentido e corresponde à realidade ou não seria diferente do que a crença no deus do espaguete voador? São questões importantes. É possível acreditar num Deus benevolente quando Ele mesmo parece moralmente mal? Como o cético poderia encontrar sentido no cristianismo? Ou haveria mais sentido na visão de mundo secular?

¹Título de uma seção do capítulo O problema da moralidade, de Timothy Keller, em Deus na era secular (São Paulo, Vida Nova: 2018), p. 226

DEFINIÇÕES: COMPREENDENDO O FENÔMENO SECULAR

Em Deus na era secular, Timothy Keller oferece três acepções básicas do termo secular. Em primeiro lugar, o termo diz respeito à noção de uma sociedade secular, isto é, “aquela em que existe separação entre religião e Estado” (2018, p. 13). Isto quer dizer que as instituições jamais devem favorecer uma determinada religião em detrimento das outras. Essa primeira definição que o próprio Keller concorda, pois “sociedades em que o Estado adotou e promoveu uma só fé como verdadeira costumam ser opressoras” (2018, p. 14). Em segundo lugar, o termo se refere à ideia de pessoa secular, ou seja, “aquela que não sabe se existe um Deus ou qualquer esfera sobrenatural além do mundo natural” (2018, p. 13). Esta acepção também pode ser vista como um agnosticismo; não é tanto um comprometimento com a negação da crença, mas uma suspensão de juízo quanto à sua real plausibilidade.

E, por fim, a terceira definição de Keller ao termo recai sobre a noção de era secular, a saber, “um tipo particular de cultura com seus temas e narrativas. Uma “era secular” é aquela em que toda a ênfase recai sobre o saeculum, sobre o aqui e o agora, sem que haja qualquer concepção daquilo que é eterno” (2018, p. 13). Se a acepção anterior, de pessoa secular, apenas atesta o não comprometimento com qualquer tipo de crença religiosa ou sobrenatural, esta última vai mais longe e pressupõe a sua exclusão a priori. O lócus existencial de realização pessoal, os valores morais, “o sentido da vida, orientação e felicidade são entendidos e buscados na prosperidade econômica, no conforto material e na realização emocional no presente” (2018, p. 13). O repouso de todas as preocupações humanas se encontra, portanto, no presente, e depende, em última instância, de nós mesmos, sem a necessidade de alguma revelação ou referência sobrenatural.

O DESAFIO DE DOSTOIÉVSKI

Seria razoável imaginarmos a plausibilidade de imperativos morais sem Deus? Para a melhor compreensão da questão, recorramos à citação de Keller do conhecido trecho de Os irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski: “Sem Deus e a vida futura […] tudo é permitido, pode-se qualquer coisa” (2018, p. 13). A frase, embora bastante conhecida, surpreende menos pelo seu contexto e intenção autoral do que pela forma como é popularmente interpretada, “pois muitos a utilizam para dar a entender que quem não tem fé em Deus é necessariamente menos bom e moral do que quem crê” (2018, p. 13). Mas nada poderia estar mais longe da verdade:

Qualquer que tente afirmar que os ateus são, como indivíduos ou no todo, menos morais do que os outros deparará com o senso comum e a experiência. Os cristãos têm razões adicionais para duvidar de uma declaração como essa, pois o Novo Testamento ensina, de um lado, que todas as pessoas, independentemente da crença, são criadas por Deus com uma consciência moral (Rm 2:14,15). Por outro lado, o mesmo texto diz que todos, inclusive os crentes, são pecadores imperfeitos (Rm 3:9-12). Assim, considerando as premissas até mesmo da própria doutrina cristã, é errado declarar ou entender que não se pode ser bom sem Deus” (2018, p. 225)

A frase de Os irmãos Karamázov jamais deveria ser interpretada dessa maneira, que na verdade é frontalmente contestada pelas Escrituras. O ponto é que “Dostoiévski não afirma que sem Deus não possa haver sentimento ou comportamento moral algum. Mas que sem Deus não pode haver obrigação moral alguma, que tudo é “permitido”, admitido” (2018, p. 225). Nisto consiste o desafio que a natureza da moralidade impõe à cosmovisão secular: ela não parece oferecer uma fonte suficientemente sólida que torne imperativos os valores morais, e não meramente condicionados a sentimentos, intuições e constructos sociais. Mas por que esses imperativos são importantes?

Se houver um Deus onisciente, onipotente, infinitamente bom, ele próprio, ou sua lei, poderia ser essa fonte moral. Se não houver Deus algum, no entanto, cria-se um grande problema no sentido de que não parece haver uma fonte moral alternativa que não proceda dos nossos sentimentos e intuições. Portanto, embora seja possível haver sentimentos e convicções morais sem Deus, não parece possível que haja obrigação moral — “fatos” morais, objetivos, que existam quer alguém os sinta dessa forma, quer não.” (2018, p. 225)

Mas isto não quer dizer que a moralidade não possa ser também um problema para os cristãos. Se por um lado, as bases deontológicas do secularismo carecem de solidez, a moralidade se torna um problema para os crentes quando é tratada com exagerada rigidez: “Pessoas religiosas têm proclamado a verdade moral divinamente sancionada, mas então a usam para serem ásperas e para excluírem os outros, ou serem descaradamente abusivas. A moralidade pode ser algo medonho nas mãos de alguns crentes religiosos” (2018, p. 226). Isto é o que acontece quando a moralidade se torna um tipo de moralismo. Esse é um ponto que não pode ser negligenciado, mas seria difícil afirmar que não existem fatos morais. O que está em jogo, portanto, é a fonte destes fatos, o que torna a moralidade, nas palavras de Keller, “uma dificuldade racional importante para o ponto de vista secular” (2018, p. 226).

A ESQUIZOFRENIA INTELECTUAL

Essa dificuldade racional que a moralidade coloca diante do ponto de vista secular, conduz a um fenômeno que Keller denomina esquizofrenia intelectual. A existência de fatos morais não pode repousar em fundamentos subjetivos, pois “se criarmos nossos próprios valores morais individualmente, em que base poderíamos instar com qualquer outra pessoa para que os aceite? Ou se criarmos esses valores coletivamente, como então podemos recomendá-los a qualquer outra cultura? No entanto, é o que fazemos, à força e de modo inevitável” (2018, p. 227). Esse quadro sugere que a existência destes fatos morais é melhor compreendida, e de modo mais coerente e razoável, quando considerada num mundo criado por Deus.


REFERÊNCIAS

KELLER, Timothy. Deus na era secular: como céticos podem encontrar sentido no cristianismo. Trad. Jurandy Bravo. São Paulo: Vida Nova, 2018.