Escrito por Lucas Tomazi Durand, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2021
No ano de 1518, o reformador alemão Martinho Lutero – na época, um monge agostiniano com objetivos de reformar a Igreja Católica – dirigiu-se à cidade de Heidelberg para uma disputa. Debates como esse eram comuns no meio acadêmico medieval, nos quais dois professores apresentavam seus argumentos perante vários ouvintes, confrontando um ao outro para defender seu ponto de vista. Nessa disputa, Lutero apresentou um dos mais importantes distintivos de sua teologia, o conceito de teologia da cruz, a qual fora contrastada com a teologia da glória [1].
Baseando-se nas duas escadas de Gênesis (a torre de Babel, em Gênesis 11, e a escada de Betel, em Gênesis 28), Lutero defendeu que a igreja a ele contemporânea insistia em se se aproximar de Deus (ao menos tentar) por meio de três escadas, identificadas como teologia da glória. Eram a escada da especulação (a razão como guia para as respostas sobre Deus), a escada das boas obras (atos realizados para alcançar a justiça de Deus) e a escada do misticismo (práticas supersticiosas para atrair a bondade de Deus). Entretanto, Lutero defendia que o único caminho possível de se seguir para chegar a Deus era a escada da cruz, caminho que desce do céu em direção aos homens, que não se baseia no esforço humano, mas no ato gracioso divino [2].
A distinção entre teologia da cruz e teologia da glória foi essencial para todas as futuras considerações teológicas de Lutero. O resgaste realizado por ele (e posteriormente por outros reformadores) de doutrinas essenciais a fé cristã, como a justificação pela fé somente e a imputação da justiça de Cristo no crente, está intimamente relacionado com a teologia da cruz. Compreender essa distinção continua sendo importante para a igreja moderna, seja na área da pregação, da liturgia do culto e do aconselhamento (especialmente no aconselhamento).
O aconselhamento em muitas igrejas (o termo bíblico aqui não é usado, pois aconselhamentos assim estão longe de ser bíblicos) ainda se alimenta de conceitos da teologia da glória. Quando pessoas que sofrem (seja por perda de emprego, crises no casamento, traição de amigos, falecimento de familiares) buscam seus pastores e líderes para conselhos, encontram, muitas vezes, respostas tiradas de manuais da psicologia, tentando sugerir a grande solução para os seus problemas. Como os medievais, esses conselheiros ensinam seus ouvintes a escalar a escada da especulação (métodos e mais métodos, sem nenhuma sabedoria).
Outras vezes, os sofredores sentem-se julgados por não serem bons o suficiente – afinal, se o fossem, o casamento não estaria em frangalhos ou o emprego ainda estaria lá. Esses “conselhos” (são mesmo conselhos?) apontam para a escada das boas obras como solução dos problemas. Há ainda aqueles que pintam os sofrimentos como obras meramente espirituais, reflexos de batalhas entre anjos e demônios, que podem ser expulsos por meio de óleos ou águas especiais, objetos ungidos ou orações no monte. A escada do misticismo aqui se levanta.
Todos esses guias para aconselhamento são não somente falíveis, mas não cristãos, pois deixam de fora do aconselhamento a realidade mais importante da vida de um discípulo: a cruz de Cristo. E quando a cruz pauta um aconselhamento bíblico (e aqui, sim, bíblico de fato), verdades importantes são lembradas aos que sofrem. Cinco necessidades da cruz no aconselhamento podem ser destacadas.
Em primeiro lugar, a cruz de Cristo aponta para a existência do pecado, afinal, não fosse a Queda de Adão, o Filho de Deus não teria padecido numa cruz de vergonha e dor. O pecado, como destaca o autor Heath Lambert, é o que ocasiona o sofrimento humano (seja o pecado cometido por aquele que sofre, o pecado cometido contra o que sofre, ou o pecado existente no mundo, que o submete a angústias e agruras) [3]. Quando a teologia da cruz embasa o aconselhamento, o pecado é trazido para dentro da discussão, confrontado (quando praticado pelo aconselhado) ou perdoado (quando praticado contra ele). Todo aconselhamento que tenta reduzir o peso do pecado falha em atingir a raiz dos sofrimentos, sendo apenas paliativo.
Em segundo lugar, a cruz nos lembra que o Deus em quem cremos é um Deus que aceitou o sofrimento. Na cruz, Jesus Cristo (que é Deus, como o Pai) sofreu não apenas a morte, mas a dor, a tortura e o abandono. O Pai assistiu seu Único Filho ser morto por homens maus e zombadores. Deus sabe o que é sofrer, e por isso se compadece (veja Hebreus 4:15). Quando sofremos, sabemos que temos um Deus que se importa conosco e que compreende o que passamos. Esta verdade deve estar presente nas palavras de conselheiros, pois relembrar o sofredor de que o Pai está com ele é a melhor informação que se pode oferecer.
Em terceiro lugar, a cruz nos lembra que o sofrimento faz parte da vida e não devemos rejeitá-lo, como se Deus não estivesse presente. Pelo contrário, o próprio Deus aceitou o sofrimento e o usou para o grande bem. O pastor Timothy Keller relembra que “foi justamente por intermédio da fraqueza e do sofrimento que Deus nos salvou e revelou, da maneira mais intensa possível, as infinitas profundezas de sua graça e de seu amor por nós” [4]. A partir disso, podemos abraçar o sofrimento, sabendo que Deus o usa para nosso bem (como Paulo afirma em Romanos 8: 28). Podemos sofrer, sabendo que Deus está conosco. De fato, como escreveu Edith Schaeffer,
Chorar não é algo que os cristãos devem evitar fazer ou sentir. Não é errado sentir lágrimas quentes escorrendo pelo rosto, salgadas nos cantos dos lábios, como parte de nossa experiência de vida. Somente quando o inimigo final foi destruído e a última vitória foi alcançada, é que todas as lágrimas serão enxugadas [5].
O conselheiro que ensina seus ouvintes a rejeitar o sofrimento foge do ensino bíblico. Aquele que orienta a ignorá-lo não atenta para o que Cristo disse. O sofrimento faz parte da caminhada debaixo do sol e os conselheiros bíblicos devem lembrar seus aconselhados disso.
Em quarto lugar, o sofrimento nos aproxima de Deus. Quando sofremos, sabemos que podemos buscar o Pai que se compadece, o Pai que ouve o clamor dos seus filhos e os livra. O sofrimento é usado por Deus como ferramenta para nos aproximar Dele, buscá-lo mais, nos fazendo mais parecidos com Cristo, seu Filho, o Servo Sofredor. Ao mesmo tempo, o caminho para a cruz nos lembra que nem todas as orações são respondidas da forma que desejamos e que nem todos os sofrimentos acabam.
No jardim do Getsêmani, Jesus orou ao Pai por três vezes pedindo que fosse liberto da morte (ver Mateus 26: 36-44). No entanto, esse pedido não foi atendido. Jesus, mesmo clamando que Deus afastasse dele o cálice, morreu na cruz, pois era isso o que cumpriria a vontade do Pai. Por vezes, nossos sofrimentos vêm como ferramenta de ensino divino, ou então de disciplina amorosa do Pai (Hebreus 12:7, 8) e, por mais que clamemos que eles encerrem, Deus os mantêm, pois Ele é quem sabe o melhor para nós.
Conselheiros bíblicos devem orientar seus aconselhados a buscar a Deus em meio ao sofrimento e a aceitar a resposta que Ele der, seja favorável ou não. Na realidade, a resposta de Deus sempre é favorável, mesmo que não pareça.
Por fim, olhar para os sofrimentos por meio da teologia da cruz ensina a nos compadecermos daqueles que sofrem. Em Lucas 9:23, Jesus usou a imagem de carregar a cruz para falar do seu discipulado (e quando grande deve ter sido a surpresa dos seus discípulos ao ver o Mestre em sofrimento na cruz e se lembrar dessas palavras). Quando tomamos nossa cruz aceitamos toda a vergonha e a dor que o discipulado traz, mas também aceitamos agir da mesma forma que Cristo age. Cristo é aquele que se compadece e, por isso, devemos ser o povo que se compadece. Este ponto é essencial para todo e qualquer aconselhamento bíblico.
O conselheiro bíblico não é aquele que possui todas as respostas, que sabe como resolver todas as necessidades de seus aconselhados. Em primeiro lugar, ele é aquele que estará pronto para rir com os que riem e chorar com os que choram (Romanos 12:15). Mais do que propostas para solução de problemas, um conselheiro deve oferecer graça e misericórdia, pois é isso o que o Pai oferece a seus filhos. E isso não é possível sem uma teologia firmada na cruz.
Se a cruz não se faz presente em um aconselhamento, ele tão é descartável como guias de horóscopo ou caixinhas de promessas. Somente aquele que orienta, instrui e corrige pela cruz fala, verdadeiramente, da parte de Deus. Como afirmou o próprio Lutero, em uma de suas teses de Heidelberg, “merece ser chamado de teólogo [e por que não ler aqui conselheiro bíblico?] aquele que compreende as coisas visíveis e manifestas de Deus por intermédio do sofrimento da cruz” [6]. A teologia da cruz precisa retornar para o centro dos aconselhamentos. Do contrário, o povo de Deus padecerá na ignorância e tristeza, sem se lembrar que o Deus que sofre é o Deus que se compadece.
Acreditamos que o estudo teológico é fundamental para todo cristão, e não apenas para pastores ou líderes. Afinal, a teologia nos ajuda a seguir a Cristo em todos os aspectos da nossa vida!
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Referências
[1] SANTOS, G. Martinho Lutero: a teologia da cruz em contraste com a teologia da glória. Disponível em: https://ministeriofiel.com.br/artigos/martinho-lutero-a-teologia-da-cruz-em-contraste-com-a-teologia-da-gloria/. Acesso em: 1 de dezembro de 2021.
[2] REEVES, M. e CHESTER, T. Por que a Reforma ainda é importante? Tradução de Elizabeth Gomes. São José dos Campos: Editora Fiel, 2017, p. 115.
[3] LAMBERT, H. Teologia do Aconselhamento Bíblico. Tradução de Airton Williams Vasconcelos Barbosa. Eusébio, CE: Editora Peregrino, 2017, p. 245, 246.
[4] KELLER, T. Caminhando com Deus em meio à dor e ao sofrimento. Tradução de Eulália Pacheco Kregness. São Paulo: Edições Vida Nova, 2016, p 75.
[5] SCHAEFFER, E. Aflição. Tradução de Elizabeth Charles Gomes. Brasília: Editora Monergismo, 2019, p. 24.
[6] REFORMA 21. As 28 Teses de Martinho Lutero. Disponível em: https://reforma21.org/sem-categoria/as-28-teses-de-martinho-lutero.html. Acesso em: 5 de dezembro de 2021.