Escrito por Andrei Mantesso Coimbra, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2023
Introdução
Uma das últimas e mais belas orações de Jesus antes da crucificação é relatada em João 17. Lemos no versículo 21: “Para que todos sejam um, como tu, ó Pai, o és em mim, e eu em ti; que também eles sejam um em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste”. Ao nos depararmos com essa oração, é possível que tenhamos um sentimento de tristeza e incapacidade diante da difícil missão de viver tal união. Se a unidade requerida por Cristo já é difícil de se viver em uma comunidade pequena, quanto mais na igreja invisível (reunião de todos os cristãos), com suas diferentes tradições e liturgias.
Nesse sentido, uma das formas equivocadas para o desenvolvimento dessa unidade é o minimalismo teológico e litúrgico, em que, evitando a exposição das diferenças, espera-se criar um ambiente em comum. Porém, a omissão de diferenças não se constitui, em si, uma unidade real. Se pensarmos no casamento, por analogia, a unidade real só é experimentada em um ambiente onde as diferenças podem ser expostas e aceitas. Não se vive unidade onde não há exposição da pluralidade.
Dietrich Bonhoeffer, em seu livro Vida em comunhão, esclarece que Deus não permite que vivamos uma comunhão irreal em sua igreja. Ele afirma que “só a comunhão que enfrenta tais desilusões (divergências na comunhão), com os seus aspectos infelizes e feios, começa a ser o que deve à vista de Deus, começa a apreender pela fé a promessa que lhe é dada”1. Para Bonhoeffer, nossa unidade não está baseada na nossa espiritualidade ou piedade, mas unicamente naquilo que Cristo fez por nós. Ou seja, ela não é algo que conquistamos, por um minimalismo teológico ou mesmo pela nossa capacidade de criar ambientes onde alguns atos litúrgicos são permitidos e outros não. A unidade cristã é uma realidade espiritual. Nos termos de Bonhoeffer, “tudo depende de se compreender claramente logo de início que a fraternidade cristã não é um ideal, mas uma realidade divina”2.
No entanto, temos que confessar que, por mais que saibamos que a fraternidade cristã é uma realidade espiritual, é difícil não olhar para as distintas tradições e expressões litúrgicas sem expressar alguma desaprovação. Todos fazemos afirmações categóricas do que seria o “evangelho” e a “igreja”; achamos que um aspecto é mais importante que outro. Nesse sentido, o filósofo e teólogo John Frame nos ajuda a compreender melhor a unidade cristã a partir de sua teoria sobre o conhecimento de Deus, levando-nos a olhar com mais humildade para as diferentes tradições e expressões litúrgicas.
Perspectivismo e unidade da igreja
John Frame começa seu livro A doutrina do conhecimento de Deus com uma discussão sobre a compreensibilidade de Deus. Essa reflexão é importante para nós, pois as várias divergências de tradições e liturgias dizem respeito, em última instância, ao modo como cada um conhece a Deus e, em resposta a esse conhecimento, desenvolve sua teologia e sua espiritualidade. De fato, Frame afirma que podemos conhecer a Deus, mas jamais o conheceremos como Ele se conhece. Isso quer dizer que jamais conheceremos Deus com uma exatidão matemática a ponto de podermos defini-lo precisamente. Outro aspecto importante, segundo o teólogo, é que conhecer Deus “é uma coisa completamente única, singular, visto que Deus é único, é singular”3 e que não conhecemos Deus no vácuo, mas em suas relações com Ele mesmo, com o mundo e conosco.
Assim, partindo desses pontos, e a partir de uma visão pactualista, Frame estabelece a seguinte tríade da doutrina do conhecimento de Deus: controle, autoridade e presença. Controle diz respeito ao fato de ser Deus quem estabelece os termos do pacto com seu povo, pois Ele exerce controle sobre a aliança; autoridade “é o direito que Deus tem de ser obedecido”4, e presença, por sua vez, diz respeito ao fato de Deus se identificar com seu povo, uma vez que Ele escolheu estar no meio deles. Com essa tríade, Frame estabelece as três perspectivas pelas quais Israel conheceu Deus e como nós o conhecemos, conforme segue: perspectiva situacional (controle), perspectiva normativa (autoridade) e perspectiva existencial (presença). Sobre isso, pastor e filósofo Pedro Dulci explica o triperspectivismo de John Frame como:
A autoridade de Deus, expressa em suas leis, é vista pela perspectiva normativa; o controle de Deus em seu mundo criado é visto pela perspectiva situacional; as relações de Deus com os indivíduos (em obediência ou em rebeldia) são vistas pela perspectiva existencial. Tudo isso significa dizer que é possível ver a Trindade de três formas diferentes. Uma postura pluralista de enxergar o conhecimento da divindade envolve conhecer as normas, as situações e as existências em relação com Deus. São três portas diferentes para conhecer Deus, para saber quem Ele é5.
Essas três perspectivas formaram as tradições ao longo da história. Elas nos levam a entender que não há problema em se ter liturgias diferentes, pois são partes da soberana vontade de Deus. Dulci ainda relaciona essas perspectivas com a ortodoxia, a ortopraxia e a ortopatia.
A divisão em três perspectivas é suficiente para identificar também três ênfases de organização teológica, litúrgica e denominacional. São as clássicas ortodoxia (a tradição doutrinária que descobriu a vida na proclamação da Palavra e nos sacramentos), ortopraxia (a tradição de justiça social que descobriu a vida na missão compassiva) e ortopatia (a tradição carismática que descobriu a vida na oração, na virtude e nos dons do Espírito)6.
As três ênfases distintas ainda se relacionam com o que é chamado de Palavra-revelação na tradição reformacional. Em seu trabalho sobre apologética reformacional, Guilherme Braun Júnior mostra como o trabalho apologético pode se tornar integral ao reconhecer “as três formas fundamentais de conhecimento (Deus, ego e mundo) e a unidade da revelação integral de Deus (Palavra da criação, Palavra encarnada e Palavra inspirada de Deus)”7. Ele afirma que “a santíssima Trindade também nos fornece a base da compreensão integral da Palavra-Revelação de Deus (Palavra da criação, Palavra encarnada e Palavra inspirada de Deus) que engloba as relações modais-esféricas diversas e coesas da ordem criada e sua relação de pacto com a humanidade”8.
Conhecer as três formas de revelação de Deus também deveria nos lembrar que geralmente enfatizamos mais um aspecto que outro. Assim como alguns grupos enfatizam a experiência pessoal (Palavra-encarnada), outros enfatizam a lei de Deus (Palavra inspirada por Deus). Estas tríades — 1) controle, autoridade e presença; 2) perspectivas normativa, situacional e existencial; 3) ortodoxia, ortopraxia e ortopatia; e 4) Palavra da criação, Palavra encarnada e Palavra inspirada por Deus — nos mostram que, como o homem é limitado, todo trabalho desenvolvido por ele também o é. Portanto, é compreensível enfatizarmos mais um aspecto do que outro, visto que jamais conseguiremos chegar ao pleno conhecimento de Deus.
Conclusões
Diante do exposto, podemos estabelecer alguns pontos para desfrutarmos da comunhão que temos em Cristo. 1) A comunhão não é algo que alcançaremos, antes é uma realidade espiritual já conquistada por Cristo em sua morte e ressurreição; 2) não conseguiremos desfrutar da unidade de Cristo enquanto não deixarmos claros os caminhos/perspectivas que trilhamos; 3) sabendo disso, devemos ter humildade epistemológica para não pensarmos que nossa tradição é a única válida; 4) e, respeitando as diferentes tradições, podemos desfrutar da multiforme graça de Deus derramada em sua igreja, entendendo como cada tradição pode contribuir para o desenvolvimento do Reino de Deus.
Por fim, é importante enfatizar que ver o evangelho através das perspectivas propostas por John Frame ou por meio da Palavra-revelação integral da tradição reformacional não pode nos levar a um relativismo teológico. É certo que há algumas doutrinas reconhecidas historicamente pela igreja que são inegociáveis, como o Credo Apostólico, mas não podemos reduzir o cristianismo apenas ao aspecto teológico. O conhecimento de Deus não se resume ao teológico, mas ele também não é menos que isso. É preciso considerar essas tríades e não renunciar a uma ou outra para vivermos a comunhão cristã.
1 BONHOEFFER, Dietrich. Vida em comunhão. Trad. Vilson Scholz. 1. ed. São Paulo: Mundo Cristão, 2022, p. 9. Edição do Kindle.
2 Ibid.
3 FRAME, John M. A doutrina do conhecimento de Deus. Trad. Odayr Olivetti. 1ª ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. p. 25.
4 Ibid., p. 32.
5 DULCI, Pedro Lucas et al. Igreja sinfônica: um chamado radical pela unidade dos cristãos.1ª ed. São Paulo: Editora Mundo Cristão, 2016, p. 62.
6 Ibid,, p. 66.
7 BRAUN JR, Guilherme. Um método trinitário neocalvinista de apologética: Reconciliando a apologética de Van Til com a filosofia reformacional. Tradução: Marcelo Lemos, Brasília, DF: Academia Monergista, 2019, p. 82.
8 Ibid., p. 90.
Acreditamos que o estudo teológico é fundamental para todo cristão, e não apenas para pastores ou líderes. Afinal, a teologia nos ajuda a seguir a Cristo em todos os aspectos da nossa vida!
No Loop, nossa equipe oferece suporte pedagógico e trilhas de estudo personalizadas para seus interesses, permitindo que você aprofunde seu conhecimento teológico e lide de forma segura com as situações do dia a dia.
Referências bibliográficas
BONHOEFFER, Dietrich. Vida em comunhão. Trad. Vilson Scholz. 1. ed. São Paulo: Mundo Cristão, 2022. 128 p. Edição do Kindle.
BRAUN JR, Guilherme. Um método trinitário neocalvinista de apologética: Reconciliando a apologética de Van Til com a filosofia reformacional. Trad. Marcelo Lemos, Brasília, DF: Academia Monergista, 2019, 276 p.
DULCI, Pedro Lucas et al. Igreja sinfônica: um chamado radical pela unidade dos cristãos. 1ª ed. São Paulo: Editora Mundo Cristão, 2016. Recurso digital.
FRAME, John M. A doutrina do conhecimento de Deus. Trad. Odayr Olivetti. 1ª ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. p. 448