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Aconselhamento bíblico em uma sociedade de consumo

Artigo escrito por Paula Sales, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2024


Introdução

O objetivo deste artigo é ajudar os conselheiros bíblicos a perceberem a importância de direcionar os aconselhados para o restabelecimento dos vínculos com suas comunidades morais. Considerando que muitas das nossas práticas de aconselhamento já são voltadas para o alinhamento comportamental e para o ajuste de emoções e sentimentos através de um processo introspectivo, é salutar afirmar que o elemento social, quando biblicamente ajustado, também é fonte de bênção para aqueles que sofrem.

Ao criar Adão e dar-lhe uma tarefa, o Criador viu que a solidão não era boa1. A fim de que o homem pudesse cumprir sua vocação de guardar e cultivar o jardim, o próprio Deus proveu uma ajudadora à sua altura, Eva. Ambos deveriam multiplicar encher toda a criação da imagem de Deus através do trabalho criativo e protetor. Dessa maneira, Deus estabelece o início do que compreendemos hoje como um corpo social, bem ajustado, ordeiro e capaz. É nesse mesmo caminho de compreensão acerca do que significa ser um Ser Humano, em termos de trabalho e associação humana responsável2, que os conselheiros bíblicos podem ajudar os aconselhados a voltarem-se para as comunidades morais fundamentais, principalmente, a fim de restabelecerem o bem-estar individual e coletivo.

Essa questão se apresenta relevante para igrejas como as nossas, mergulhadas em uma cultura de consumo. Nesse ambiente de aquisição e descarte, o bem-estar está cada vez mais associado ao poder aquisitivo e ao acesso a bens e serviços, assim como à possibilidade de rompimento de contratos e promessas. A ideia de que o bem-estar cresce à medida do crescimento da autenticidade do sujeito, está presente tanto nas teorias humanas e sociais, que por vezes são a base das atividades de aconselhamento, quanto nos discursos mercadológicos que rompem qualquer bolha ideológica.

O processo terapêutico que funciona

Discutindo sobre a relação entre psicologia e fé cristã, o pastor e teólogo Guilherme de Carvalho (2024) faz referência a um tipo de risco que o terapeuta pode enfrentar em seu trabalho. Isto é, caso o profissional ignore os elementos adoecedores presentes na cultura, poderia utilizar desses mesmos elementos a fim de tratar os sintomas da doença estabelecida nos pacientes. No que diz respeito à cultura do self, Carvalho alerta para o fato de que muitas vezes a psicologia pode cair no erro de adotar uma abordagem individualista que acaba aprofundando os problemas psicológicos do homem moderno que se encontra em um estado de desenraizamento. Ao invés de ajudar as pessoas a se reintegrarem nas suas comunidades morais e assumir suas responsabilidades, o terapeuta pode guiá-los em um processo de mais introspecção e maior procura por autenticidade subjetiva, adequando-se à cultura atomizada onde está inserido: “Na cultura do self, os indivíduos aprendem a desprezar seus vínculos e responsabilidades comunitárias e focam sua felicidade e autenticidade no desenvolvimento pessoal acima de tudo”3.

Embora a psicologia possa ajudar os indivíduos a se livrarem dos sintomas de seus desajustes e a obterem êxito em seus objetivos estabelecidos por si mesmos, isso não significa que os objetivos das pessoas ao serem alcançados garantirão o bem-estar que elas almejam. Quem poderia, então, estabelecer os objetivos de um processo terapêutico? Ora, depende-se para isso de um reconhecimento claro de autoridade. Enquanto muitas das nossas abordagens de aconselhamento possam estabelecer como autoridade a vontade e objetivos do aconselhado, o conselheiro bíblico pode e deve ajudar as pessoas a reconhecerem nas Escrituras a verdadeira fonte de autoridade para a vida humana. Assim, tratar dos desajustes humanos depende de ouvir das Escrituras o que de fato é o problema e qual é o remédio que ela fornece. Nesse sentido, podemos ter a segurança de que a fé cristã não se opõe à terapia, mas utiliza a ferramenta terapêutica tendo como fonte de autoridade não a vontade do indivíduo, nem a voz da ciência, mas o discurso escritural. Não é possível adotar uma abordagem neutra ou “apenas científica”, afinal, “tudo o que dizemos, demonstra uma confiança em uma fonte de autoridade. Não há como fugir desta realidade”4.

Conquanto o processo terapêutico possa aprofundar o desenraizamento, quando realizado conforme as Escrituras, ele pode auxiliar homens e mulheres a caminhar em direção ao pertencimento e extrair dele recursos seguros para a compreensão da identidade. O pastor e teólogo Wadislau Gomes (2021)5 aborda essa questão da identidade vinculada ao pertencimento comunitário ao exemplificar que “eu só me chamo Wadislau porque você me chama. Se vocês não existissem, eu poderia ser chamado de psiu – oi, psiu! Mas minha identidade está na nossa comunhão”. Essa comunhão, afirmada anteriormente, diz respeito ao serviço, à doação de conhecimento e afetos de um sujeito em relação aos outros.

O desenraizamento faz parte da cultura moderna6. Nesse ambiente, a identidade é estabelecida pela noção de dignidade humana inerente ao sujeito enquanto indivíduo, ou enquanto self, ao invés de ser estabelecida mediante o reconhecimento da comunidade e das responsabilidades que mantém nele e para com ela. A arquitetura do mercado de consumo ajuda nesse processo reducionista de solução de problemas, ao incentivar cada vez mais que o bem-estar pode ser obtido através de decisões pessoais do self voltado para ele mesmo. Já as Escrituras nos ensinam a pertencer uns aos outros. Essa é de fato uma abordagem contracultural e contra-intuitiva.

Bem-estar e capital moral

Conquanto possa parecer que a fé cristã não se preocupa com o bem-estar individual, esse não é o caso. Embora o bem-estar não seja um bem supremo para fé, pois esta admite e celebra a cruz, a revelação bíblica aponta para um fim glorioso de bem e paz, ou melhor dizendo, para o definitivo shalom. Nesse Reino vindouro, espera-se não a concretização da autenticidade do self, mas a celebração da comunhão plena entre os filhos de Deus e o próprio Deus. O pertencimento sem rupturas é a esperança da humanidade. Experimentamos já agora, de maneira ainda insatisfatória por causa do pecado, essa realidade quando procuramos preservar os vínculos morais. Essa é precisamente uma ferramenta que os conselheiros bíblicos podem e devem usar em seus aconselhamentos.

Quem fornece uma luz acerca desse assunto é Roel Kuiper ao tratar das comunidades morais como ambientes de segurança e conforto, forjadas no pacto entre os homens, que se aliançam com base em promessas e agem em benefício uns dos outros. Ao contrário do bom selvagem rousseauniano, Kuiper vê o homem como aquele ser dependente desde o início, que já nasce integrado em uma sociedade e carece dela para sua sobrevivência. Longe dos bens morais como a preocupação e a solidariedade, os bebês não têm chance alguma. Sem esses valores, “a cultura do desprendimento seguirá em sua obra disruptiva. A menos que a sociedade possa ser vista de uma nova maneira em relação a tais valores morais, a alienação e a desconexão continuarão sendo forças atuantes”7.

Ajudar os aconselhados a aprofundar suas raízes através das responsabilidade e compromissos duradouros, na igreja e na família, por exemplo, possui um caráter terapêutico prático. A sabedoria presente no aconselhamento é tanto de caráter explicativo, quanto prático. A sabedoria bíblica nunca se apresenta como apenas discursiva, mas sim como um discurso sobre a realidade material e que pretende orientar a prática na realidade material. 

É verdade que o aconselhamento lida com questões do coração e almeja a redenção do coração, mas isso não quer dizer que ela seja reduzida ao subjetivo ou à abstração. Questões práticas, quando bem fundamentadas, intencionalmente elaboradas com vistas à redenção, são muito bem vindas.8

Refletindo sobre o caráter moral da igreja, Girardello (2022) comenta sobre como o pacto estabelecido tem reflexos na vida prática dos cristãos:

É na comunidade moral que haverá exortação de pecado, aconselhamento sobre casamento e ensino sobre criação de filhos, por exemplo. É um cuidado com a vida do outro de maneira completa, com todas as dinâmicas envolvidas. Não é só uma questão de levar pessoas a Cristo, mas também de ensinar como caminhar.9

Não é possível florescer longe do caminho estabelecido por Deus na criação. Os sujeitos carecem uns dos outros a fim de experimentarem a própria condição humana. Ainda que a Psicologia e o Mercado falhem no reconhecimento dessa verdade, a Igreja não pode abrir mão dela.


1  Gênesis 2.18.

2 Para uma discussão mais aprofundada sobre Teologia Bíblica da Sociedade, ver mais em: https://www.youtube.com/watch?v=tQJkTI8GeNQ&t=5192s. Jonathan Freitas 14min a 1h09min.

3  Psicologia e religião com Guilherme de Carvalho – Luminus Podcast #07. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AZet2ja22dw&t=2322s. 16:22 ao 18:10

4  LAMBERT, Health. Teologia do aconselhamento bíblico. Editora Peregrino, 2017. p. 44

5 GOMES, Wadislau. A Identidade está na Comunhão. Igreja Presbiteriana Paulistana. São Paulo, 2021. 1 vídeo (1:24). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sJKIKwKhk4M

6 TRUEMAN, Carl. Ascensão e triunfo do self moderno. 1ª edição. Editora Cultura Cristã, 2024. 522 p.

7 KUIPER, Roel. Capital moral: o poder de conexão da sociedade. Tradução Francis Petra Janssen. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019, p. 23.

8 ULIANA, João. Extraído de um email-resposta enviado pelo canal de dúvidas do Inc destinado aos estudantes. Novembro, 2024.

9 GIRARDELLO, Marlon. A igreja como um pacto: as contribuições da teologia pactual para um modelo eclesiástico. In: blog Invisible College. The Invisible College. Disponível em: https://theinvisiblecollege.com.br/a-igreja-como-um-pacto-as-contribuicoes-da-teologia-pactual-para-um-modelo-eclesiastico/. Acesso em 01 dez 2024.


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Referências

KUIPER, Roel. Capital Moral: O Poder de Conexão da Sociedade. São Paulo: Monergismo, 2019. 310 p.

LAMBERT, Health. Teologia do aconselhamento bíblico. Editora Peregrino, 2017. 364 p. 

Psicologia e religião com Guilherme de Carvalho. Luminus Podcast #07, 10 abr 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AZet2ja22dw&t=2322s. Data de acesso: 01 dez 2024.

TRUEMAN, Carl. Ascensão e triunfo do self moderno. 1ª edição. Editora Cultura Cristã, 2024. 522 p.

GIRARDELLO, Marlon. A igreja como um pacto: as contribuições da teologia pactual para um modelo eclesiástico. In: blog Invisible College. The Invisible College. Disponível em: https://theinvisiblecollege.com.br/a-igreja-como-um-pacto-as-contribuicoes-da-teologia-pactual-para-um-modelo-eclesiastico/. Acesso em 01 dez 2024.

GOMES, Wadislau. A Identidade está na Comunhão. Igreja Presbiteriana Paulistana. São Paulo, 2021. 1 vídeo (1:24). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sJKIKwKhk4M