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As sementes da filosofia da ciência moderna, a Reforma Protestante e a busca por uma epistemologia bíblica

Ensaio escrito por Fernanda Martins, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2023


O período final da Idade Média, marcado pela escolástica tardia, pelo Renascimento e pela Reforma Protestante, carrega as sementes do que mais tarde resultaria na Revolução Científica, inaugurando a Modernidade. A Revolução Científica mudou radicalmente a maneira como se produzia conhecimento e como a relação entre fé e razão era entendida. Assim, o objetivo deste breve ensaio é explorar algumas dessas sementes da ciência moderna oriundas desse período e o papel da Reforma Protestante nesse contexto. Destaca-se a relação entre as sínteses de pensamentos e a preponderância em termos de poder, processos interdependentes que se retroalimentam e contribuem para a formação da mentalidade predominante na Idade Moderna.

Tomás de Aquino já carregava a semente do que seria o secularismo característico da Idade Moderna. Ao inverter a ordem entre fé e conhecimento, entre natureza e graça, o teólogo e filósofo medieval abriu a porta para a emancipação do exercício racional de sua dependência da graça divina. Para Tomás de Aquino, o homem, mediante a razão, poderia produzir conhecimento a partir dos seus sentidos e sua experiência da realidade (TOMÁS DE AQUINO, 2011). Assim, o papel da graça divina, no esquema de Tomás, era suplementar/complementar à razão, completando as lacunas deixadas pela razão com a revelação divina (TOMÁS DE AQUINO, 2011). Essa lógica invertia a ordem prevalecente em Santo Agostinho (2017) e Santo Anselmo (2016), onde a fé e a revelação ocupavam posição precedente ao exercício racional.

Ao inverter a ordem do esquema entre fé e razão, Tomás de Aquino abriu a porta para a emancipação da razão humana de sua relação com Deus para a produção do conhecimento acerca do mundo. Essa emancipação foi posteriormente completada com a Revolução Científica e o início da Idade Moderna. O método científico baseado na observação e na experimentação é dependente dos sentidos humanos e de sua razão e não possui espaço para explicações que não possam ser observadas ou experimentadas pelos sentidos humanos (KENNY, 2014). Assim, o divórcio entre fé e ciência foi se concretizando à medida que explicações causais de cunho transcendental não encontraram espaço no método científico.

É importante ressaltar que Tomás de Aquino era um homem comprometido com a Igreja e com a Palavra de Deus, mas seu pensamento foi fruto da conjuntura social, política, econômica, filosófica e teológica de seu tempo. No esforço de se engajar com os debates e questões prevalecentes da época, Tomás de Aquino fez sínteses com conceitos oriundos de filosofias pagãs que geraram afastamento da filosofia bíblica do conhecimento. A questão das sínteses com pensamentos pagãos e estranhos à Palavra de Deus é um problema recorrente no processo de produção do conhecimento por homens e mulheres cristãos. No esforço de se engajarem com a cultura de seu tempo, respondendo às demandas sociais vigentes e lidando com as estruturas de poder dominantes, o processo de síntese acaba acontecendo a fim de mediar e simplificar a relação com o contexto contemporâneo de cada autor.

A Idade Média, diferente do que costumeiramente se pensa a seu respeito, foi um período marcado por uma multiplicidade de pensamentos filosóficos e teológicos resultantes de décadas de sínteses entre filosofias e diferentes pensamentos, processo reforçado pela translação dos estudos e a presença de traduções árabes de clássicos gregos na Europa desse período. A posterior redescoberta dos textos em suas línguas originais também favoreceu um novo momento de síntese e resgate de conceitos gregos, mas agora a partir dos textos em suas línguas originais. Todavia, essa pluralidade de pensamentos, principalmente no que tange ao pensamento teológico, estava concentrada na mão das figuras clericais da Igreja.

Rèmi Brague (2023) apresenta o conceito de “romanidade”, que, em suma, trata da capacidade do Império Romano de dialogar com diferentes culturas e promover sínteses entre diferentes pensamentos, o que, em alguma medida, favoreceu a manutenção e expansão do Império. Nas teorias da política internacional, assume-se que o poder dominante tem monopólio e um caráter proselitista quanto às ideias e valores dominantes (GILPIN, 1981; IKENBERRY, 2011). A “romanidade”, a capacidade de agregar elementos de outros pensamentos, é um elemento que ajuda a explicar essa dinâmica de preponderância intelectual do poder dominante e a legitimidade atribuída a seu domínio. Esse ponto revela que há uma relação íntima entre poder e preponderância intelectual onde os dois elementos se retroalimentam. Assim, é possível entender que o processo de síntese de pensamentos que marca a evolução da filosofia ocidental caminha, em alguma medida, pari passu com a dinâmica de poder, tanto no sentido macro, sobre Impérios e sua ascensão e declínio, quanto no sentido micro, no que tange às relações sociais de poder nas unidades políticas.

O movimento de emancipação da razão foi acompanhado pelo afastamento do conhecimento considerado válido do conhecimento resultante da fé. Assim, o movimento de síntese com pensamentos pagãos e a construção de argumentos que dialoguem com a filosofia vigente do período podem ser vistos como resultado da tentativa da Igreja de manter sua relevância intelectual frente à sociedade e não perder seus espaços nos círculos de poder sociais. A proximidade com o poder político e intelectual exige barganhas e compromissos que se manifestaram nas sínteses com pensamentos pagãos.

A Reforma Protestante foi uma reação a esse processo de sínteses e a multiplicidade de ideias existentes na Igreja que se afastavam do Evangelho e das Escrituras. Nesse sentido, a Reforma foi um esforço de zelar pelo Evangelho de Cristo em meio às muitas sínteses feitas com pensamentos pagãos que descaracterizavam a Palavra do Senhor e a prática política e social da Igreja. O objetivo da Reforma e de seus promotores não foi fragmentar a Igreja, mas resgatar as doutrinas centrais de forma coerente com a Palavra de Deus.

Há grande discussão sobre o papel da Reforma e em que medida esta contribuiu para a secularização que seria característica da Idade Moderna (KENNY, 2014). O objetivo deste ensaio não é argumentar a favor ou contra este argumento, mas apontar a relevância de uma constante reforma no engajamento da Igreja de Cristo com a cultura das diferentes épocas. O processo de síntese de pensamento não é restrito ao período anterior à Reforma, ele é constante e possui desdobramentos até os dias atuais, onde novas sínteses são feitas, muitas vezes, em nome de projetos políticos de poder ou de uma tentativa da Igreja de manter rua relevância frente à cultura de sua época.

O principal efeito negativo das sínteses com pensamentos pagãos é o afastamento do entendimento sobre Deus e a Criação revelados na Palavra divina. Muitas vezes, pontos fundamentais da doutrina bíblica são colocados sob tensão para que haja adequação à cultura contemporânea e aos projetos políticos de poder dominantes ou que instrumentalizam a proximidade com a Igreja para alcançar dominância. Assim, se queremos nos manter fiéis aos princípios da Palavra de Deus em nossa prática eclesiástica e em todos os âmbitos da vida, precisamos agir constantemente de forma reformadora, buscando identificar as aproximações de valores e sínteses com pensamentos que não são coerentes com a Palavra de Deus, o que exige diligência, disciplina e rigor no estudo da sua revelação.

Em suma, na busca por uma epistemologia coerente com a Palavra de Deus e derivada da filosofia bíblica, é preciso que o pensamento crítico seja constante, tendo a Palavra de Deus como parâmetro, principalmente nas epistemologias voltadas para o conhecimento das dinâmicas sociais, como é a política internacional. É preciso ter um proposital afastamento de projetos políticos de poder a fim de diminuir a possibilidade de que compromissos e barganhas incompatíveis sejam feitos com a Palavra de Deus. Ademais, é preciso ter rigor no resgate de uma epistemologia bíblica comprometida com a produção de conhecimento que tenha verdadeiro potencial para transformar a realidade social corrompida pelo pecado.


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Referências Bibliográficas

BRAGUE, R. Europa, a via romana. Trad. Jair Santos. 1. ed. Araçoiaba da Serra: Editora Mnema, 2023.

GILPIN, R. War and Change in World Politics. Nova York: Cambridge University Press, 1981. Número de páginas.

IKENBERRY, J. G. Liberal Leviathan: The origins, crisis, and transformation of the American World Order. Princeton: Princeton University Press, 2011.

KENNY, A. Uma nova história da filosofia ocidental: O despertar da filosofia moderna. Trad. Carlos Alberto Bárbaro. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014. v. 3.

SANTO AGOSTINHO. Confissões. Trad. Lorenzo Mammì. São Paulo: Penguin-Companhia, 2017.

SANTO ANSELMO. Proslógio. Trad. Sérgio de Carvalho Pachá. Porto Alegre: Editora Concreta, 2016.

TOMÁS DE AQUINO. Verdade e Conhecimento. Trad. Juvenal Savian Filho. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes. 2011.