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Beleza reconstruída: a questão ambiental numa abordagem escatológica

Escrito por Davi Tito Prima, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2023


Introdução

A arte é uma das variadas atividades humanas que refletem o caráter de Deus, uma vez que fomos feitos à Sua imagem e semelhança. Ela espelha o dom criativo do Criador, mesmo com a contaminação do pecado, podendo exprimir verdades e virtudes, de sorte que o cristão deve reconhecer o seu valor. Em Beleza Destruída, canção de Djavan e interpretada por ele em parceria com Milton Nascimento, nos deparamos com o eu lírico em estado de aflição diante dos diversos aspectos da questão ambiental que assola o planeta: a crise hídrica, as queimadas, problemas inerentes à chuva, a questão indígena, animais ameaçados de extinção, entre outras pautas preocupantes. Observemos os seguintes versos:

O mundo é lindo, mas não é infindo, temos que cuidar

Pra não ver acabar

Tantos lagos, assim como os rios podem fenecer

Dar lugar, mas a quê?

A mata queimando

Joga a esperança na mais cruel solidão, solidão

Chuva demais pra uns e de menos pros demais

Causando mais sofrer, mais sofrer

[…]

Ver indígenas e bichos implorando pra existir

Faz tão mal, faz tão mal

Mas o homem cego por dinheiro, só saber dizer

Dizimar, dizimar

Ver tanta beleza destruída

Encolhendo a própria vida, sim, é o fim

Pra quem hoje o fruto do não conta

Logo vai ter conta pra pagar pra viver

(DJAVAN, 2022)

No evangelicalismo brasileiro, é bastante comum uma visão escatológica que leva à inferência de que, quando Cristo retornar ao mundo, este será completamente destruído por Deus. Esta interpretação remonta à narrativa presente na série de livros Deixados para trás. Desse modo, defende-se que não deveríamos ficar consternados com o desequilíbrio na natureza frequentemente denunciado pelos ambientalistas. Afinal, por que preservar algo fadado à destruição? As Escrituras, contudo, nos instruem a uma postura distinta, dando-nos indicativos de que este mundo, em Cristo Jesus, há de ser restaurado.

Diante disso, o presente artigo versa sobre a relação entre o meio ambiente e os eventos posteriores ao segundo advento de Cristo. Partindo da noção de reino de Deus, temos como objetivo apontar os erros escatológicos no tocante ao futuro do planeta Terra e as suas consequências, defendendo uma visão bíblica e responsável acerca do comportamento cristão mediante à natureza e os seus finitos recursos.

A noção de Reino de Deus e sua implicação ética

A fé cristã está alicerçada em um Deus pactual, que estabelece uma aliança com o seu povo, a despeito dos seus pecados. O Antigo Testamento nos fornece informações do processo histórico e legal nos quais se deu o relacionamento entre Deus e Israel, construindo o cenário em que viria aquele que feriria a cabeça da serpente1, realizando a obra que o ser humano, em sua condição caída, não foi capaz de realizar. O primeiro Adão não cumpriu o pacto das obras, cabendo, portanto, a Cristo, o segundo Adão, a missão de cumpri-lo, garantindo então o pacto da graça, por meio da qual todo o povo de Deus, independentemente da etnia, encontra salvação e a promessa de uma profunda restauração do seu ser, vivendo em parte a realidade do reino de Deus.

Assim, a noção de reino deve ser considerada para que se enxergue a importância que o Criador confere ao planeta, sendo percebida no ministério de Cristo, conforme aponta Geerhardus Vos:

De acordo com os Sinóticos, a primeira mensagem de Jesus no início de seu ministério público era sobre o “reino de Deus”. Era uma mensagem usada antes dele por João Batista, em cuja perspectiva ela especialmente se adequava. O “arrependei-vos”, que a precede, aponta para o julgamento pelo qual o reino vindouro deve ser introduzido. Consequentemente, a mensagem é praticamente escatológica, e o reino do qual ela fala é um estado escatológico de coisas (VOS, 2019, p. 447).

Muitos teólogos costumam ressaltar o caráter bilateral da ideia de reino, distinguindo o reino presente do reino escatológico. Prevalece a visão de que o ministério de Cristo deu início à manifestação do reino na terra num processo gradual, o qual foi continuado não apenas pelos discípulos contemporâneos a Jesus, mas também por seus seguidores dos dias atuais. Este esforço dos cristãos há de ser dedicado ao longo dos séculos até que Deus ponha em execução o desfecho da ordem mundial vigente, introduzindo um evento que resulte no estado escatológico do reino (VOS, 2019, p. 454).

Considerando o aspecto escatológico do reino de Deus e a sua implicação no mundo imanente, partimos, então, ao combate à ideia errônea de que a Terra será destruída e os homens salvos habitarão eternamente em uma região imaterial. Esta visão, na verdade, remonta ao gnosticismo, corrente que despreza a materialidade das coisas, atribuindo a ela a condição de maldade e depravação, em detrimento daquilo que é espiritual. Uma vez que se assume a instauração definitiva do reino de Deus no mundo, não há espaço para a crença de que o planeta será erradicado. Nas palavras de Craig Bartholomew e Michael Goheen:

Embora o cristianismo tenha muitas vezes sido acusado de ser alheio a este mundo, nesta altura deve estar claro que o início da história bíblica não encoraja pessoa alguma a se sentir separada dele ou de algum modo superior a ele: um mundo de espaço, de tempo e de matéria. A Bíblia descreve o mundo material e criado como o próprio teatro da glória de Deus, o reino sobre o qual ele reina. (BARTHOLOMEW; GOHEEN, 2017, p. 47).

Portanto, a maneira com que enxergamos o fim dos tempos é um fator determinante para a forma de vida que adotamos. Se compreendemos o valor intrínseco às coisas criadas e que elas não serão descartadas com o advento do reino escatológico, a consequência é uma relação saudável e responsável com os recursos naturais e todo o meio ambiente. Todavia, se insistirmos no pensamento dualista que põe em guerra o material e o imaterial, continuaremos desprezando o clamor de um planeta em constante flagelo:

Uma visão de mundo (uma ontologia) na qual o espírito é separado da matéria, e uma visão dos humanos (uma antropologia) na qual a alma é separada do corpo, com o primeiro sendo mais valioso do que o último em cada um dos casos, facilmente conduz a uma visão do futuro (uma escatologia) na qual não há razão para se preocupar com a Terra. A escatologia  molda a ética. (BOUMA-PREDIGER, 2021).

Conclusão

Em suma, o mundo, em seu estado original, é bom2. Ele fora amaldiçoado em virtude do pecado, porém encontra-se na expectativa da redenção. Assim sendo, o plano redentivo não se restringe ao homem, mas abrange toda a criação. Em Cristo, a dissonância provocada pelo pecado chega ao seu fim, dando lugar a uma sinfonia na qual cada nota e cada acorde são executados conforme a partitura intencionada por Deus desde antes da criação do mundo. Nesta canção, cada elemento do cosmos possui o seu papel, animais, vegetais ou seres microscópicos: A criação de Deus é “boa” e a virtude de sua criação só realça as incomparáveis bondade, sabedoria e justiça do próprio Criador. Somente ele é o Rei sábio sobre o grande reino de tudo que existe (BARTHOLOMEW; GOHEEN, 2017, p. 42).

Além de boa, a criação é bela e esta beleza, por ora parcialmente destruída, certamente será reconstruída pelas mãos do próprio Deus. Haja vista que a permanência da natureza está nos planos divinos, não há razão para que hoje, no reino presente, desprezemos os problemas ambientais emergentes. Não é razoável negar a nossa responsabilidade, mesmo que tudo seja reconstruído na instauração plena do reino dos céus. Se, neste momento, nós verdadeiramente experimentamos este reino, nos cabe viver de acordo com os seus princípios, zelando por aquilo que deve ser mantido e, sem dúvida, os elementos criacionais estão inclusos.


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1 Cf. Gn 3:15.

2 Cf. Gn 1:31.


Referências 

BARTHOLOMEW, Craig G.; GOHEEN, Michael W. O drama das Escrituras: encontrando o nosso lugar na história bíblica. Tradução de Daniel Kroker. São Paulo: Vida Nova, 2017. 288 p. 

BOUMA-PREDIGER, Steven. O fim dos tempos e o meio ambiente. In: Associação Brasileira de Cristãos na Ciência. 27 de abril de 2021. Disponível em: <https://www.cristaosnaciencia.org.br/fimdostemposemeioambiente/>. Acesso em 22 de mar. 2023.

BÍBLIA DE ESTUDO DE GENEBRA. Edição Revisada e Ampliada. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil; São Paulo: Cultura Cristã, 2009. 1984 p.

DJAVAN. Beleza Destruída. Rio de Janeiro: Sony Music Entertainment Brasil ltda. 2022 (4:40 min).
VOS, Geerhardus. Teologia Bíblica: Antigo e Novo Testamentos. Tradução de Alberto Almeida de Paula. São Paulo: Cultura Cristã, 2019, 2ª ed. 496 p.