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Caleidoscópio: o processo artístico em perspectivas

Escrito por Darli Nuza, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2022


Uma pergunta rotineira que chega aos artistas é: “Que arte você está fazendo?” Esta questão possui desejo por beleza e ainda ganhamos a oportunidade de expor particularidades do processo criativo. Este processo é um percurso onde ideias são selecionadas e desenvolvidas em prol de uma obra final. Nesse espaço-tempo de realização, o artista imagina, conecta afetos e experiências, experimenta materiais, compondo e registrando a obra. Os processos artísticos possuem características da organização do artista e muitas das etapas são síncronas.

Para muitos artesãos, o processo criativo tem sido um papel bidimensional, focado em descrição e exposição, por exemplo. Para outros, um tempo profundo e desgastante onde o subjetivismo exaure todas as forças, oferecendo um trabalho focado nas emoções e seus efeitos.

Tendo em vista a possibilidade de extremos na produção artística, este artigo apresenta o triperspectivismo como uma abordagem equilibrada para pensarmos tais processos. Esse prisma nos oferece uma ótica para além da sequência de métodos ou autoentrega demasiada no preparo da obra. Enquanto perspectivas, não são três partes de um procedimento, mas o mesmo processo de conhecimento visto de ângulos distintos que projeta uma visão mais ampla, não reducionista das produções de arte. 

Em vez de olharmos para a produção criativa do artista por um único aspecto, somos convidados a girar esse caleidoscópio, vendo sua tridimensionalidade, dinâmica, diferentes cores, as perspectivas e os seus resultados. 

O processo criativo e seu cenário

Os artistas trabalham com a criatividade, processando pensamento, imaginação, emoções e decisões para compor uma obra de arte. Nesse percurso, lidam com questões para além do concreto: o transcendente. Interpretam a realidade de diferentes jeitos e proporcionam novas formas de ver essa realidade por meio da obra. É um ofício de organizar materiais e subjetividades, trazendo novas composições à existência. 

Nesse processo — em meio à cultura e suas demandas — surgem convites para o artista mergulhar e se manter em perspectivas fragmentadas que reverberam no empobrecimento do labor e sua completude. Por vezes, encontramos artistas que buscaram no empirismo seu bem supremo, deificando este aspecto, produzindo obras definidas e sustentadas pelas experiências (FRAME, 2010, p. 126). Por outro ângulo, também são reais alguns processos de arte caracterizados pela inclinação demasiada no racionalismo. Perde-se, então, a oportunidade de expor novos olhares às situações, com subjetividade e poética.

Diante de uma escultura, você observa de uma única posição ou aproveita seus 360 graus e contempla por diversos ângulos? Esta questão nos faz pensar em nossas abordagens, nos levando a atentar para os possíveis reducionismos. Nossos processos criativos não são só experiências entre artista e obra, mas possuem tridimensionalidade, carregam critérios, moldam hábitos e situações. Por isso, podemos caminhar ao redor desse objeto, desfrutando de uma visão mais ampla na produção de arte, ou seja, um percurso para ser vivido e visto por uma perspectiva caleidoscópica. 

Um caleidoscópio é um objeto óptico formado por três espelhos em forma de prisma. Com pequenos fragmentos de vidro colorido, recebe a luz exterior e apresenta inúmeras combinações de efeitos visuais. Três perspectivas trabalhando em um único procedimento: gerar a imagem. No seu livro A doutrina do conhecimento de Deus, John Frame nos apresenta esse caleidoscópio, o triperspectivismo. Ele explica que essa abordagem envolve a aplicação da Escritura (perspectiva normativa) por pessoas (perspectiva existencial) às situações (perspectiva situacional) (FRAME, 2010, p. 97). 

Sendo assim, podemos compreender e desenvolver melhor nossos trabalhos de artes, auxiliados por essas perspectivas. Produzir arte envolve normas e critérios éticos, para nós artistas, em situações e contextos. Com intencionalidade, esses três ângulos podem ser explorados e desfrutados, concomitantemente.

O processo criativo e seus critérios

Para usufruir de um caleidoscópio com bons efeitos visuais, temos normas mínimas para seguir. Por exemplo, medidas corretas dos espelhos, harmonia entre as pequenas peças, um lugar com luz abundante. Por mais breves que sejam os nossos trabalhos, é uma inverdade dizer que os processos artísticos são aleatórios e isentos de preceitos. É impossível esvaziá-los dos critérios. Sendo assim, é válido sondar: Quais normas e raízes ancoram nossas produções? 

Makoto Fujimura, em seu livro Arte e fé, traz o processo criativo tanto como um trabalho estético quanto como um trabalho teológico, tendo em vista que ele está lidando diretamente com as normas de Deus, o Criador. Apontando as Escrituras como regra mor, ele ressalta que “a Palavra de Deus é o meio central para explorar a criatividade do Criador. Deus, o artista, é quem se comunica primeiro conosco” (FUJIMURA, 2022, p. 20).

Em tempo, as Escrituras, como norma eficiente, propõem muito mais do que possibilidades artísticas (pinturas, cenas, desenhos, músicas, etc.). Elas penetram e oferecem uma conduta ética para o artista, virtudes que refinam suas habilidades e parâmetros para o diálogo com as artes e os demais campos. Como artistas, olhar para as Escrituras e ver somente a possibilidade de reproduzir ilustrações é reducionista e empobrecedor.

Assim, precisamos nos perguntar sobre as diretrizes, as circunstâncias e motivações que estão embasando nosso processo criativo. Qual a real intenção do nosso coração com a obra e suas ideias? Quais são as referências?  Qual lugar e peso elas ocupam na produção? Que materiais usaremos e por quê? Quais são as linguagens artísticas escolhidas e como reverberam no contexto? Devemos combiná-las? Os nossos registros e mídias levam ao público a mensagem desejada? Essas são algumas das perguntas que nos convidam a olhar a criação artística, possibilitando analisar, avaliar o processo e suas reverberações.

O artista e o processo criativo

O filósofo Calvin Seerveld lembra dos artistas como mordomos: seres humanos imaginativos que abençoam o mundo com bênçãos estéticas. Para o autor, essa mordomia é “a implementação fiel de recursos apropriados para gerar shalom” (SEERVELD, 2009, n.p.). Para oferecer essas bênçãos estéticas, deve haver perseverança no trabalho e sensibilidade para harmonizar a diversidade de temas com as diferentes perspectivas, sem reduzi-las. O dilema é que o artista, em sua sensibilidade, é tentado a mergulhar no subjetivismo, se tornado deus de si (FRAME, 2010, p. 237). Daí, as obras surgem com foco na exibição egocêntrica e o que era para ser, também, bênção estética para o público, se torna uma exposição terapêutica. Cabe ressaltar que o subjetivo é inerente aos processos criativos, mas não deve ser o único a sustentar e definir processos, causando esses reducionismos.

Precisamos atentar ao pressuposto de que o senhorio de Cristo está sobre todas as coisas e não a nossa sensibilidade, razão ou experiências. Viver essa premissa evita trocar o Criador pela criatura ou transformar as habilidades em ídolos. A sensibilidade é um presente do Criador, que nos deixou critérios de como usá-la para frutificar bênçãos estéticas em muitas situações. O artista é dotado desta percepção aguçada e, muitas vezes, é impelido a focar nela, somente. É preciso lembrar da integralidade do coração e se desviar de concepções que fragmentam o ser humano e suas habilidades.

Então, como seres limitados, o que pode cooperar para o aprimoramento dos artistas? A maturação existencial do artista requer paciência, coragem, amor e serviço em comunidade (dentre outros). Paciência para as demandas da vida que, conectadas, reverberam na produção artística. Curadoria e foco exigem tempo, recomeços, humildade e coragem para lidar com o trabalho, suas relações com o sistema de arte e o público.

Nesta trajetória, conhecer a si, o mundo e a Deus, requer amor, obediência, relacionamento. Falando sobre o conhecimento de Deus para nós, Geerhardus Vos lembra que o saber está ligado diretamente ao amor, “a experiência íntima da vida, e não só a capacidade de reproduzir a realidade de uma coisa na consciência” (VOS, 2019, p. 19). Nesta dinâmica relacional, Deus apresenta seu conhecimento aos artistas. O intelecto, as emoções, a vontade, a imaginação, a sensação (os sentidos) os dons de habilidades naturais e espirituais — todas essas coisas — contribuem para conhecermos a Deus, a nós e o mundo (FRAME, 2010, n.p.).

Com amor e verdade, nos relacionamos com diferentes comunidades1, partilhando as bênçãos estéticas, bem como recebendo feedbacks. Essa exposição e troca beneficiam a autocrítica e nos faz ver as pontas soltas da obra, proporcionando cada vez mais o refinamento do processo criativo. 

Contudo, é bem verdade que o artista pode não encontrar na academia ou na comunidade eclesiástica o espaço desejado para suas partilhas. Então, é preciso construir diálogos, gradual e continuamente. No livro Contemporary Art and the Church: a conversation between two worlds, a escritora Katie Kresser2 (2017) considera o artista um “diplomata cultural”. Este artista representaria, por exemplo, o campo das artes para seus amigos — de diferentes comunidades — e os convidam a explorar esse mundo e se envolver. Em potencial, existe um mundo de arte para ser edificado e erguido em cada comunidade, sendo uma oportunidade para exercermos essa diplomacia cultural. Em Êxodo, o capítulo 35 nos fala sobre dois artistas que receberam de Deus a plena capacidade artística e a habilidade de ensinar os outros. Então, por que não seria você — como Bezalel e Aoliabe foram — o artista diplomata em seu contexto e comunidade? 

Portanto, que possamos desfrutar mais de nossos processos criativos em sua tridimensionalidade, nos esquivando dos reducionismos e aproveitando os ângulos, formas, nuances e cores caleidoscópicas. E quando perguntarem “Que arte você está fazendo?”, partilharemos sobre as nossas produções,  ensinando com harmonia e contribuindo com beleza para o nosso contexto.


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1 Ambiente eclesiástico e outras organizações como, por exemplo, a universidade.

2 Katie Kresser in: W David O Taylor and Taylor Worley, eds. Contemporary Art and theChurch: A Conversation Between Two Worlds.Worley. Downers Grove, IL: IVP Academic, 2017. 280 p.


Referências bibliográficas

A BÍBLIA. Livro de Êxodo. Tradução de João Ferreira Almeida. Antigo Testamento e Novo Testamento. RJ: King Cross Publicações, 2008.

FRAME, John M. A doutrina do conhecimento de Deus. Trad. Odayr Olivetti. São Paulo: Ed. Cultura Cristã, 2010. 448 p.

FUJIMURA, Makoto. Arte e fé: uma teologia do criar. Trad. Rodolfo Amorim. 1. ed. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil. 2022. 208 p.

SEERVELD, Calvin. How Should Christians Be Stewards of Art? Journal of Markets & Morality Volume 12, Number 2 (Fall 2009): 377–385. 2009. Disponível em: https://www.marketsandmorality.com/index.php/mandm/issue/view/7 

TAYLOR, W David O.  and WORLEY, Taylor (eds). Contemporary Art and the Church: A Conversation Between Two Worlds.Worley. Downers Grove, IL: IVP Academic, 2017. 280 p.