Escrito por Herbert de Souza Cordeiro, estudante do Programa de Tutoria – Turma Avançada 2021
Ao longo do tempo, a humanidade não tem sido capaz de se satisfazer com as coisas do mundo, seja em seus pensamentos, seja em sua vida. A ideia de um “paraíso”, ou a perspectiva de um desenvolvimento futuro onde as coisas estarão “em uma ordem maior e mais sagrada” está presente nas mais diversas culturas e nações através de uma visão de mundo sobrenatural religiosa. Esta cosmovisão tem como pressuposto a existência de uma realidade transcendental que se faz conhecida ao ser humano a partir de uma revelação. Apenas com o advento do Iluminismo, a cosmovisão religiosa deu lugar a uma cosmovisão empírico-científica, que tenta conferir ao mundo uma existência independente, dispensando a necessidade de um Criador e de uma revelação. Esta nova cosmovisão julga ser possível encontrar na realidade as respostas para tudo aquilo que a religião e a ciência podem vir a se indagar.
Contudo, ao colocar o sobrenatural e a religiosidade de lado, esta visão de mundo acaba por ser incapaz de suprir o vácuo religioso no coração humano, bem como seu anseio pela eternidade[1]. Deste ponto em diante, a própria perspectiva de evolução e desenvolvimento, por terem um ponto de partida teleológico e teísta, precisaria ser revisada para se adequar a este novo modo de interpretar a realidade. Seja por meio do naturalismo materialista, seja do humanismo, uma doutrina mecanicista da evolução foi construída sobre a negação da existência, ação e revelação de um Deus que cria o mundo e o dirige. A única “revelação” que poderia ser considerada real estava na própria natureza e naquilo que o homem pode experimentar racionalmente. Deste modo, ao fim do século XVIII, pairava sobre a academia a crença de que as ciências naturais modernas, com sua doutrina de evolução, tinha levado o princípio do naturalismo a um triunfo definitivo[2].
Conforme o teólogo holandês Herman Bavinck argumenta em sua obra “Filosofia da Revelação”, entre os séculos XIX e XX ocorreu uma importante mudança em relação a esta visão de mundo. Os principais investigadores abandonaram a tentativa de explicar a realidade de maneira mecânica para propor uma concepção dinâmica da natureza, na qual mesmo a evolução proposta por Charles Darwin não apontaria para um mundo fruto de acidentes causados pelas leis da natureza, mas designado para uma melhoria progressiva. Esta virada foi ocasionada por que quando levado às últimas consequências, o empirismo pode dar boas descrições da natureza e da sociedade, mas é incapaz de alcançar a sua essência.
Esta nova perspectiva garantiu o retorno da revelação para a pauta da filosofia e da ciência em seu empreendimento de compreender a realidade. Assim, se tornou urgente a busca por respostas quanto à natureza da revelação: como ela se dá? Qual o seu conteúdo? Ao tentar responder estas questões o ser humano encontra dois caminhos.
O primeiro deles é a deificação do próprio homem em uma espécie de nova religião, ou “nova teologia”. Aproximando-se de uma cosmovisão panteísta, este caminho veste de forma religiosa a visão de mundo dita “científica” e afirma serem idênticas as essências de Deus e da criatura. Contudo, “uma religião que nada tem a oferecer, a não ser um deus imanente e idêntico ao homem […] jamais pode satisfazer as necessidades religiosas e éticas do homem”[3].
O segundo caminho é encontrar nas religiões a resposta transcendental para a natureza da revelação. Bavinck afirma que a revelação que as religiões reivindicam são formadas por algo essencialmente diferente daquilo que a “nova teologia” propõe. A revelação neste sentido não tem como ponto de partida a experiência racional, mas parte da suposição de que existe algum aspecto ou valor que transcende a própria realidade. A religião cristã dá um passo além ao fazer uma distinção clara entre a revelação de Deus através da natureza e os erros que se deduzem a partir dela, e a “revelação especial que ele concedeu ao seu povo” que “proclamam enfaticamente, como uma verdade fundamental, que Jeová, que se revelou a Moisés e aos profetas, é o verdadeiro Deus vivo (e pessoal), e que todos os deuses dos pagãos são ídolos e coisas sem valor.” Deus se revela em toda a criação, contudo se esta revelação não for interpretada à luz de Cristo, ela é insuficiente para se chegar ao conhecimento de Deus, levando o coração humano a conceber uma série de equívocos reducionistas e idólatras.
Seja o materialismo, naturalismo, panteísmo ou qualquer outra filosofia, ciência ou religião que não parta da revelação de Deus, é por si só incapaz de fazer jus a toda diversidade presente na realidade, reduzindo-a a um aspecto ou outro. Ao confrontá-las com a realidade e sua essência multiforme, percebe-se que apenas a religião cristã e a revelação de um Deus pessoal[4] é capaz de conferir uma resposta satisfatória ao anseio do coração humano pela unidade de todas as coisas. A própria realidade está sustentada na revelação e apenas ela é capaz de valorizar cada aspecto seu ao invés de os reduzir, pois a revelação tem um caráter “tanto pactual no foco, quanto cósmico no escopo”[5].
O coração humano não anseia por uma unidade apenas na realidade material, mas também nas questões culturais, históricas e sociais. O senso de progresso não diz respeito apenas a evolução material e tecnológica, mas também a um desenvolvimento ético, estético, histórico, cultural e moral. As ciências humanas, ou como os alemães as nomearam, ciências da mente (geisteswissenschaften) lidam de maneira muito mais direta com o problema da unidade, e correm um profundo risco de cair num ciclo de subjetivismo no qual a realidade como um todo é relativa a cada indivíduo, em cada época e em cada localidade. Para encontrar a unidade, é necessário pressupor um critério de valoração universal que possibilite o julgamento de fatos e indivíduos. Segundo Bavinck, filósofos como Heinrich Rickert criam que era possível postular a existência desses valores absolutos transcendentes e ao mesmo tempo negar a existência de uma realidade transcendente. Ao fazer tal movimento, no entanto, cai-se numa perigosa contradição: não é possível conceber que uma ideia, sendo ela apenas isso, possa estar fundamentada na natureza do mundo, podendo concretizar a si mesma. “E caso seja realmente capaz de fazê-lo, então ela deve ser mais do que uma ideia” e só pode ser concebida como atributo de um Deus pessoal. Quanto mais se aprofunda nas reflexões sobre a essência da realidade, “mais ela há de se apresentar como que enraizada e sustentada na revelação”[6].
De modo semelhante a natureza, apenas na revelação especial de Deus é que a unidade da natureza humana, em toda a sua diversidade, – étnica, vocacional dentre outras características – é incluída na explicação do desenvolvimento histórico e cultural. Todo ser humano tem parte no drama bíblico, e cada história move-se dentro dessa “grande história” cujo centro é Cristo, seja em direção a ele para adorá-lo ou em rebelião a ele.
“A revelação especial que chega até nós em Cristo não somente nos dá a confirmação de certas suposições das quais a história parte e deve partir, mas também nos oferece a história, o centro e o conteúdo verdadeiro de toda a história.”[7]
A revelação especial é o ponto de partida de toda a teologia e filosofia cristã e também a chave para compreender a realidade da maneira como ela é. Por estar repousado sobre a revelação, o cristianismo possui um conteúdo que transcende a razão. A revelação é, neste sentido, o desvelamento daquilo que nenhum ponto de partida humano ou natural pode alcançar: é aquilo que é dado a conhecer. Na criação, Deus revela o seu poder, na revelação, que é centrada na redenção, Deus escancara seu coração.
Através do cânon bíblico, da natureza e mais diretamente em Cristo Jesus, Deus oferece descanso para a angústia presente em todas as criaturas vivas. Ele oferece resposta para toda a inquietação do coração humano. Em Cristo, Deus estava reconciliando consigo todas as coisas por meio do seu Amor.
A revelação nos ensina que Deus é o Senhor de todas as coisas. A finalidade da natureza é testificar do poder de Deus de criar e restaurar a realidade, e desnudar a miséria a pequenez do homem, o colocando em seu lugar e o convocando para glorificar a Deus. A finalidade da história é a plenitude do Reino de Deus e seu domínio que abrange todas as coisas; é Cristo sendo tudo em todos. Todo conhecimento humano ainda é incompleto e tem de partir de um fundamento de fé. A fé, depositada na auto revelação do Deus vivo, garante alento para toda inquietação humana e resposta para os anseios mais profundos do seu coração, na esperança daquilo que lembra o Apóstolo Paulo:
“Agora, pois, vemos apenas um reflexo obscuro, como em espelho; mas, então, veremos face a face. Agora conheço em parte; então, conhecerei plenamente, da mesma forma com que sou plenamente conhecido.”[8]
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[1] Eclesiastes 3:11 (NVI) : “Ele fez tudo apropriado ao seu tempo. Também pôs no coração do homem o anseio pela eternidade; mesmo assim ele não consegue compreender inteiramente o que Deus fez.”
[2] BAVINCK, Herman. A filosofia da revelação. Trad. Fabrício Tavares de Moraes. Brasília, DF: Editora Monergismo 2019, p. 63.
[3] Id, 2019, p. 67.
[4] Ibid., p. 148.
[5] VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução de Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016, p. 152
[6] BAVINCK, op. cit., p. 169.
[7] Ibid., p. 173.
[8] 1 Coríntios 13:12 (NVI).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAVINCK, Herman. A filosofia da revelação. Trad. Fabrício Tavares de Moraes. Brasília, DF: Editora Monergismo 2019.
VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução de Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016.