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Confissões profundas em uma era de justificativas rasas

Escrito por Damaris Ferreira, estudande do Programa de Tutoria Filosófica – Turma 2021

INTRODUÇÃO

Se não há culpados não é preciso perdão. Vivemos em um tempo onde temos para tudo uma resposta, uma justificativa. A culpa tornou-se ofensa. Suavizamos a mensagem do Evangelho onde ela se parece pesada, para que não se transforme em mais um fardo aos homens. Dos nossos púlpitos emanam palavras formosas, de consolo e amor, atenuando os pecados alheios e os escondendo atrás de uma falsa compreensão de amor e misericórdia de Deus. Ressignificamos tudo que está ao nosso alcance e que julgamos ser o melhor para nós. Afinal de contas, a vida já é amarga demais.

1. O QUE É O PECADO?

Pecamos quando transgredimos a lei[1]. Não só em nossas ações más, ou quando, podendo, deixamos de fazer o bem. Antes de todas elas serem expressas, pecamos em nossa mente e coração. Se não há conformidade com Deus, há rebelião contra Ele.

Agostinho de Hipona, na parte IV do Livro Segundo de Confissões, narra um dos episódios mais famosos de sua vida: O furto das peras. A forma como confessa seu pecado, em nossos dias, pode causar a nós certo estranhamento:

“É certo, Senhor, que tua lei castiga o furto, lei de tal modo escrita no coração dos homens, que nem a própria iniquidade a pode apagar. Que ladrão há que suporte com paciência que o roubem? Nem mesmo o rico tolera isto ao que o faz forçado pela indigência. Também eu quis cometer um furto, e o cometi, não forçado pela necessidade, senão por penúria, fastio de justiça e abundância de iniquidade, pois roubei o que tinha em abundância, e muito melhor. Nem me atraía ao furto o gozo que me proporcionava seu resultado, mas atraia-me o mesmo furto em si, o pecado.”[2]

No trecho anterior, vemos com quanta intensidade o autor confessa seu pecado. É quase impossível não nos compararmos a ele e nos perguntar se agiríamos de forma semelhante frente a essa situação. Estamos acostumados a justificar nossos erros, a procurar transferir nossa culpa e isso é só mais um dos reflexos da queda. Não foi Adão que respondeu ao Senhor: “foi a mulher que tu me deste”[3], quando questionado sobre o fruto que lhe fora proibido comer? Culpamos pessoas, acusamos a Deus.

Agostinho deixa evidente que não o fez por necessidade, um motivo que talvez relativizaríamos, mas simplesmente pelo prazer de fazer o mal. É nesse exagero, se é que podemos definir assim, que nos deparamos com uma diferença desmedida entre pecado e desculpa. C. S. Lewis em sua obra O Peso da Glória traz uma reflexão sobre o perdão de Deus e nossas tentativas frustradas de nos justificar:

“Pense primeiro sobre o perdão de Deus. Percebo que quando penso que estou pedindo que Deus me perdoe, estou, na realidade (a não ser que eu esteja me vigiando cuidadosamente), pedindo a ele que faça algo completamente diferente. Não estou pedindo que ele perdoe, mas que ele aceite minha justificativa. Há, porém toda a diferença do mundo entre perdoar e dar uma justificativa”.[4]

Agostinho não tentou se justificar, ao contrário, expôs o seu pecado, mesmo que ninguém tenha sido gravemente prejudicado. Ainda que não tão grave, aos nossos olhos, o furto das peras que, mais tarde, foram dadas aos porcos, não era a questão principal, mas, sim, seu amor pelo pecado, seu prazer pelo mal. “O único motivo para o roubo foi o próprio roubo. Ele amava o mal pelo próprio mal, só pelo prazer de fazê-lo”[5]. 

O autor Timothy Keller em sua obra A fé na era do ceticismo, fala sobre a definição de pecado cunhada pelo filósofo dinamarquês, Søren Kierkegaard e a pontua como acessível ao indivíduo contemporâneo: “Pecado é: em desespero não querer ser quem se é diante de Deus”[6]. Todo pecado tem origem no orgulho, na idolatria. Pecamos toda vez que substituímos ou estabelecemos como central qualquer outra coisa que não seja nosso relacionamento com Deus. Pecamos toda vez que almejamos tomar o lugar de Deus.

O desejo de conhecer o bem e mal, a ânsia de ser como Deus, nos fez cair. E de lá pra cá, nada mudou. “Pois a mentalidade da natureza humana é sempre inimiga de Deus. Nunca obedeceu às leis de Deus, e nunca obedecerá”[7]. Tudo que coloca em risco nosso valor, autoestima e identidade nos move a transgredir sua Lei, a pecar contra o Senhor. Nossos altares são frágeis e nossos esforços para mantê-los nos escravizam. A ansiedade impulsiva nos deixa cegos e perdemos o senso de reconhecimento de pecadores miseráveis que somos. Fora Dele não há descanso. Nas palavras do Bispo de Hipona, “nosso coração está inquieto enquanto não encontrar em ti descanso”[8].

2. SENSO DE PECADO

Nessa era de relativismo, onde nada é absoluto e tudo tem um porquê ou uma motivação a ser avaliada, caminhamos a passos largos de admitir nossas fraquezas e pecados. Uma cosmovisão secularizada tem contaminado nossas pregações e esfacelado os princípios cristãos. Não somos capazes de nos reconhecer pecadores, as doutrinas cristãs do pecado nos bombardeiam, nos confrontam e o confronto não nos agrada. Nosso senso de pecado é pouco ou inexistente.

Gordon Clark em seu livro de história da filosofia, De Tales a Dewey, em um trecho onde versa sobre o problema do mal em Agostinho nos diz que:

“Aqueles que têm pouco senso de pecado, porque têm pouco senso de Deus, têm também pouco reconhecimento do problema do mal. Agostinho com sua ênfase perfeitamente cristã sobre a maldade extrema da rebelião contra Deus escapa a qualquer acusação de ter minimizado o problema”.[9]

Nossa minimização do pecado tem evidenciado o pouco reconhecimento do mal que a queda nos causou. A falta de conformidade à Lei de Deus é refletida em nossas ações. Optamos pelo mal e não nos responsabilizamos por isso.  Ressignificamos nossas ações e intenções, vamos às últimas consequências para nos justificar. O mal que fazemos não mais tem afetado nosso coração e consciência, permanecemos cegos, insensíveis. Erramos, e fazendo menção a famosa frase de conforto dos últimos tempos, e está tudo bem.

“Essa deformidade moral é dinâmica: o pecado permanece patente como uma energia em reação irracional, negativa e rebelde ao chamado e comando de Deus, lutando contra Deus com o intento de manipulá-lo”.[10]

É isso que somos, manipuladores. Não podemos responder a Deus sem seu favor, sem sua graça. Somos totalmente incapazes de nos redimir, mas buscamos em tentativas falhas e miseráveis auto justificar-nos. Atenuamos o pecado e seus efeitos. Enquanto Agostinho lamenta e confessa toda sua devassidão, em um furto de peras junto a outras crianças, encobrimos nosso adultério, roubos, assassinatos, mentiras. Detratamos a misericórdia de Deus, o sacrifício de Cristo.

CONCLUSÃO

Como responderemos ao sacrifício de Cristo amenizando suas causas? A relativização dos valores morais tem aberto espaço para novos valores. Corrompemos a todo momento princípios cristãos, dando-lhe novas roupagens a fim de que sejam atraentes, e, para isso, suavizamos a mensagem da cruz, suprimimos a verdade pela injustiça[11]. Na cruz, Cristo se fez maldição por nós. Ele é o perfeito sacrifício. Não há dívidas, todas foram liquidadas. Fomos redimidos por seu sangue.

Não precisamos de desculpas ou justificativas, precisamos de confissões e arrependimento. Ao confessarmos, concordamos que ofendemos a Deus e que necessitamos do Seu perdão. 

“Se afirmamos que não temos pecados, enganamos a nós mesmos e não vivemos na verdade. Mas, se confessamos nossos pecados, ele é fiel e justo para perdoar nossos pecados e nos purificar de toda injustiça”.[12]


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1 Cf. 1 João 3.4.

2 AGOSTINHO. Confissões. Petra: 2020, p. 55.

3 Cf. Gênesis 3.12.

4 LEWIS, C. S. O Peso da Glória. Thomas Nelson Brasil: 2017, p. 173.

5 CLARK, Gordon Haddon. De Tales a Dewey. Cultura Cristã: 2012, p. 204.

6 KELLER, Timothy. A Fé na Era do Ceticismo. Vida Nova: 2015, p. 194.

7 Cf. Romanos 8.7.

8  AGOSTINHO. Confissões. Petra: 2020, p. 19.

9 CLARK, Gordon Haddon. De Tales a Dewey. Cultura Cristã: 2012, p. 204.

10 PACKER. J. I. Teologia Concisa. Cultura Cristã: 2014, p. 77.

11 Cf. Romanos 1.18.

12 Cf. 1 João 1.8-9.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGOSTINHO. Confissões. Vol. 1.  Tradução: Frederico Ozanam. Rio de Janeiro: Petra, 2020.

BÍBLIA SAGRADA. Nova Versão Transformadora. São Paulo: Mundo Cristão, 2016.

CLARK, Gordon Haddon. De Tales a Dewey: uma história da filosofia. Tradução: Wadislau Gomes. São Paulo: Cultura Cristã, 2012.

KELLER, Timothy. A fé na era do ceticismo: Como a razão explica Deus. Tradução: Regina Lyra. São Paulo: Vida Nova, 2015.

LEWIS, C. S. O peso da glória. Tradução: Estevan F. Kirschner. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017.

PACKER, J.I. Teologia Concisa. Tradução: Rubens Castilho. São Paulo: Cultura Cristã, 2014.