Artigo escrito por Vanessa Soeiro Carneiro, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2024
1. Introdução
Cosmovisão é, segundo o Dicionário Priberam (2024), uma concepção ou visão de mundo. Apesar de esse conceito ser demasiado sucinto, por ora, ele nos será suficiente. Segundo os teólogos Brian J. Walsh e J. Richard Middleton (2010), todo ser humano possui uma cosmovisão. Embora as crianças não percebam e nem experienciem o mundo ao seu redor da mesma forma que um adulto, tal afirmação também as inclui. Isso acontece porque elas também são pessoas e não “pessoas em formação”. Em um artigo anterior (CARNEIRO, 2022), abordamos esse assunto explicando que os adultos não costumam perceber as crianças enquanto pessoas e nem tratá-las como tal. Pelo contrário, a nossa tendência é vê-las como se “fossem o futuro” e esquecemos que elas já são alguém no presente. Entender isso é de suma importância para sermos capazes de reconhecer que as crianças refletem a imagem e a semelhança de Deus, porém, assim como toda pessoa, também são pecadoras e necessitam de Cristo.
Entretanto, apesar de não serem “pessoas em formação”, elas, assim como todo ser humano, estão em um constante processo de formação e desenvolvimento. Enquanto cristãos, nosso objetivo deve ser nos aperfeiçoar até atingirmos a medida da estatura da plenitude de Cristo, conforme Efésios 4.13, ou, em outras palavras, e consoante a Gálatas 4.19, até que Cristo seja formado em nós. Se parecer cada vez mais com Cristo não é dever apenas dos cristãos adultos, mas de todos, independentemente da idade, que já foram alcançados pela graça salvífica de Jesus. Ou seja, essa incumbência também abarca os pequenos pequenos Cristos.
Além disso, uma das formas de se buscar parecer mais com Jesus é desenvolvendo uma cosmovisão biblicamente fundamentada. Levando isso em consideração, faz-se necessário ressaltar que, consoante o que explicamos a priori, as pessoas estão em um processo contínuo de desenvolvimento. Porém, no que tange às crianças, elas ainda estão nas etapas iniciais deste processo. Logo, para que um infante desenvolva uma cosmovisão cristã, a influência de cristãos mais velhos é necessária .
Isto posto, este artigo discorrerá sobre o papel da cosmovisão cristã na vida das crianças. Para tanto, ele dividir-se-á em três partes. A primeira traçará uma breve cronologia a respeito do conceito de cosmovisão. A segunda abordará o porquê é importante para as crianças possuírem uma cosmovisão cristã. E a terceira explicará como é possível, de maneira prática, auxiliar uma criança a desenvolver uma cosmovisão cristã.
2. Um breve histórico a respeito do termo “cosmovisão”
Cosmovisão não é algo recente. Segundo o professor Fabiano Oliveira, no prefácio do livro do Sire anteriormente mencionado — Dando nome ao elefante —, “‘cosmovisão’ é um termo tão antigo quanto a própria existência humana. É a consciência deste fenômeno com a consequente teorização deste assunto, por parte dos estudiosos, que é relativamente recente”. (OLIVEIRA in SIRE, 2012, p. 7). Em outras palavras, possuir cosmovisão é um dos aspectos criacionais do homem. No entanto, ele só foi capaz de perceber a existência desse fenômeno e nomeá-lo na contemporaneidade, de modo mais preciso, no século XVIII.
Ademais, o termo “cosmovisão” é, na verdade, a tradução da palavra alemã weltanschauung, cunhada por Immanuel Kant, em seu livro Crítica do juízo, publicado em 1790. Contudo, de acordo com Sire (2012), esse uso primário do termo foi passageiro. Isso significa que defini-lo ou se aprofundar em seu sentido não era o foco de Kant. Ainda assim, é possível extrair algum significado para essa palavra por meio do contexto no qual foi utilizada. O teólogo David Naugle faz isso muito bem ao afirmar que “várias frases no contexto dessa citação1 (…) sugerem que para Kant a palavra Weltanschauung, significava simplesmente a percepção do mundo pelos sentidos” (2017, p. 93-94).
Após sua estreia filológica, o termo weltanschauung ganhou notoriedade dentro do idealismo alemão e muitos outros filósofos passaram a utilizá-lo, contribuindo, assim, tanto para a sua implementação oficial no vocabulário alemão quanto para a sua conceituação. Não obstante, Wilhelm Dilthey foi o primeiro filósofo a dedicar um espaço de destaque para a weltanschauung em suas reflexões na segunda metade do século XIX (SIRE, 2012). A partir de então, a ideia de weltanschauung se expandiu até ultrapassar a fronteira alemã e, consequentemente, o termo começou a ser traduzido para diversas línguas.
Com o passar do tempo, a noção de cosmovisão difundiu-se não apenas dentro da filosofia, mas de várias áreas das ciências humanas, tornando-se importante também para as ciências sociais e naturais. Percebemos então que a cosmovisão passou a ser utilizada em diferentes contextos e, dessa forma, seu conceito foi sendo construído e adaptado conforme a necessidade de quem o utilizava.
Em meio a esse cenário, a ideia de cosmovisão foi introduzida no mundo cristão ainda na segunda metade do século XIX. De acordo com Naugle (2017), os principais responsáveis por isso foram os teólogos James Orr e Abraham Kuyper. O trabalho deles deixou um legado que perdura até os dias de hoje. Isso é ratificado mediante a comprovação de que a eles se seguiram vários outros teólogos cujas obras disseminaram ainda mais o conceito de cosmovisão, dentre os quais destacamos Gordon Clark, Carl Henry, Herman Dooyeweerd e Francis Schaeffer.
Por fim, no que diz respeito ao conceito de cosmovisão, utilizaremos, neste artigo, a definição proposta por James Sire por acreditarmos que ela é a mais completa e a que melhor explica o que o termo significa:
Cosmovisão é um compromisso, uma orientação fundamental do coração, que pode ser expresso por uma história ou num conjunto de pressuposições (suposições que podem ser verdadeiras, parcialmente verdadeiras ou totalmente falsas) que sustentamos (consciente ou subconscientemente) sobre a constituição básica da realidade, e que fornece o fundamento no qual vivemos, nos movemos e existimos (SIRE, 2012 p. 160-161).
Percebemos, então, que cosmovisão é algo mais profundo do que uma visão de mundo. Ela é uma convicção cujas raízes estão fincadas no coração do homem. A fim de compreendermos melhor essa ideia, precisamos primeiro entender o conceito bíblico de coração utilizado por Sire. Para tanto, recorremos a Naugle (2017, p. 344) ao explicar que “a preponderância das passagens bíblicas, contudo, fala do ‘coração’ como o elemento central e definidor da pessoa humana”. Outrossim, “o coração é o centro religioso, intelectual, afetivo e volitivo de uma pessoa” (NAUGLE, 2017, p. 345). Isto significa que, biblicamente, a palavra coração é utilizada em sentido metafórico para indicar a fonte dos nossos desejos, vontades e decisões. De certa forma, é como se o coração fosse o cérebro da nossa alma. Por conseguinte, as pressuposições com as quais comprometemos nosso coração são o que chamamos de cosmovisão.
Considerando que, em concordância com Provérbios 4.23, é do coração que procedem as fontes da vida, a cosmovisão de uma pessoa norteia o modo como ela enxerga o mundo ao seu redor. A partir disso, as cosmovisões tornam-se capazes também de orientar como alguém interage com a realidade e isso se reflete no comportamento das pessoas e em tudo que produzem. Isto nos leva a concluir que cosmovisão é uma convicção que é vivida por aquele que a possui.
Outrossim, sabendo que cosmovisão é um aspecto criacional do ser humano e que a queda do homem, descrita em Gênesis 3, corrompeu toda a criação, é possível afirmar que a cosmovisão humana também foi afetada. Como consequência, passaram a existir diferentes cosmovisões. Entretanto, por mais diversas que sejam, as cosmovisões podem seguir apenas duas direções: uma que vai ao encontro dos preceitos divinos ou uma que vai de encontro a eles.
A única cosmovisão que segue a primeira direção é chamada de cosmovisão cristã ou bíblica porque busca compreender o mundo a partir dos preceitos bíblicos. De acordo com os teólogos Goheen e Bartholomew: “Olhar o mundo por meio das Escrituras é, na verdade, olhar o mundo através de três lentes ao mesmo tempo: como algo criado por Deus, deformado pelo pecado e que está sendo resgatado pela obra de Cristo. Tire qualquer uma dessas lentes, e a cosmovisão bíblica ficará distorcida” (2016, p. 104). Retomando o conceito de Sire (2012), que afirma que as cosmovisões são expressas em forma de histórias, é possível afirmar que as lentes às quais os autores acima se referem, e que fundamentam a cosmovisão cristã, são os três atos que compõem a grande narrativa bíblica: criação, queda e redenção.
3. Cosmovisão e a identidade da criança cristã
Além de caída e dominada pelo pecado, a sociedade atual é pós-estruturalista e pós-moderna, se caracterizando por uma visão relativista da verdade. Sua aversão a macro-narrativas contribui para que também seja uma sociedade fragmentada, dominada por relações efêmeras e composta por indivíduos com identidades volúveis. Por conseguinte, o que define os dias atuais é a constante “busca por significado” (KAISER; SILVA, 2014, p. 9) e por uma identidade.
Ou seja, nossas crianças estão crescendo em um mundo que procura sistematicamente por uma fonte de sentido e estabilidade em uma pluralidade de cosmovisões corrompidas pelo pecado que fingem disputar entre si enquanto apontam cada vez mais para longe de Deus. Sobre essa guerra de cosmovisões, Naugle afirma que ela “é uma guerra sobre cosmovisões; isto é, uma megabatalha entre as forças da luz e as forças das trevas sobre a identidade ou definição do universo” (2017, p. 357 – grifo do autor).
Pelas razões acima, é de suma importância que nossos pequenos pequenos Cristos desenvolvam desde cedo uma cosmovisão cristã. Em primeiro lugar, ela concederá a eles as ferramentas necessárias para identificar as pressuposições falsas que fundamentam as demais cosmovisões, mesmo que estas venham a apresentar alguns aspectos estruturais verdadeiros. Em segundo lugar, por meio dela, as crianças conseguirão desenvolver um “retrato totalmente bíblico da realidade” (NAUGLE, 2017, p. 69) e de si mesmas. Dessa forma, poderão enxergar o mundo ao derredor de maneira integral e saberão que sua identidade está firmada em quem elas são em Jesus. Em terceiro lugar, é importante reforçar que as cosmovisões são firmadas em uma orientação do coração, isto é, em um compromisso de fé e isso significa que elas precisam responder a quatro perguntas básicas:
(1) Quem sou eu? Ou, qual é a natureza, a tarefa e o propósito dos seres humanos? (2) Onde estou? Ou, qual é a natureza do mundo e do universo onde vivo? (3) O que está de errado? Ou, qual é o problema básico ou o obstáculo que me impede de atingir a satisfação? Em outras palavras, como eu entendo o mal? E, (4) qual é a solução? Ou, como é possível vencer esse impedimento à minha realização? Em outras palavras, como encontro salvação? (WALSH; MIDDLETON; 2010, p. 32 – grifos dos autores)
A cosmovisão cristã responde a essas questões biblicamente e conhecer tais respostas resulta no fortalecimento da fé das crianças. Considerando o fato de que elas terão essa fé frequentemente questionada e desafiada por aqueles que não a reconhecem enquanto verdadeira, elas poderão recorrer à própria cosmovisão para não se deixarem abater. Por fim, é importante que uma criança salva possua sua cosmovisão bíblica regularmente nutrida por preceitos cristãos. Desta forma, ela desenvolverá uma identidade moldada pela palavra divina e alicerçada no Deus único e verdadeiro, transcendente e imutável. Portanto, ela terá condições de se manter firme em meio a um mundo instável e volúvel.
Em relação às crianças não salvas, embora a ausência de conversão signifique que elas não podem desenvolver uma cosmovisão verdadeiramente bíblica, sua exposição a esta atua de forma evangelística e apologética. Isso é possível porque, conforme afirma o teólogo Cornelius Van Til “a apologética é a vindicação (defesa) da filosofia de vida cristã em contraste com as várias formas de filosofia de vida não cristãs” (2010, p. 19).
4. Como moldar a cosmovisão de uma criança
A cosmovisão é inata ao ser humano, entretanto, ninguém nasce com ela já formada. Para Naugle: “Certamente, desde a infância uma quantidade torrencial de conteúdo é despejada no reservatório do coração de fontes aparentemente ilimitadas de qualidade variável, algumas puras, algumas poluídas. (…) As cosmovisões, de uma forma ou de outra, são sempre obras em progresso” (2017, p. 346 – 347). Isso significa que as cosmovisões, assim como os seres humanos, estão em um contínuo processo de desenvolvimento. Por estar nas etapas iniciais desse processo, a criança, sozinha, não consegue filtrar as influências puras das poluídas. Logo, ela não pode cultivar intencionalmente uma cosmovisão bíblica sem que adultos atuem como mediadores.
Contudo, é preciso enfatizarmos que não é possível se ensinar uma cosmovisão porque elas “não são produtos do puro pensamento, mas nascem das dinâmicas da experiência humana” (NAUGLE, 2017, p. 185). Portanto, a cosmovisão de uma criança é moldada a partir da influência das pessoas com quem mais convive. Sendo assim, ela necessita se relacionar com pessoas cuja cosmovisão seja bíblica. O ideal é que isso ocorra primeiro na família e depois por meio da interação com a Igreja. Ademais, Naugle afirma:
Antes que as fontes de vida fluam do coração, algo deve primeiro e inclusive continuar fluindo dentro dele. O coração não expressa a vida dentro dele somente, mas também a recebe do exterior. As coisas são internalizadas antes de serem externalizadas. Pois, com efeito, o conteúdo do coração que modela a vida é determinado não somente pela natureza ou por predisposições orgânicas, mas também em grande parte pelo alimento (2017, p. 345-346 – grifos do autor).
A partir disso e considerando que as cosmovisões se expressam por meio de narrativas sendo que, de acordo com Kaiser e Silva (2014), esse gênero literário constitui um terço da estrutura da Bíblia, inferimos que é possível auxiliar uma criança a desenvolver uma cosmovisão cristã alimentando seu coração com doutrinas bíblicas. Com esse propósito, é necessário ensinar a Bíblia para as crianças e trabalhar com elas – seja em casa, na EBD ou no culto infantil –, a teologia bíblica. Para tanto, é preciso fazer uso de uma boa hermenêutica para traduzir adequadamente as doutrinas bíblicas para a linguagem das crianças.
5. Considerações finais
Considerando que cosmovisões são convicções vividas, antes de se “ensinar” a cosmovisão cristã para uma criança, é necessário vivê-la. As crianças aprendem, principalmente, por meio do exemplo que lhes é mostrado. Logo, de nada adianta tentar orientar uma criança a enxergar o mundo por meio das lentes da fé cristã e agir como se Cristo não fizesse parte do seu dia-a-dia. Para ensinar uma criança “como ser cristã”, é necessário primeiro ser cristão.
Isso posto, ao ajudarmos uma criança a comprometer seu coração com a fé em Cristo e com as doutrinas cristãs, desenvolvendo, assim, uma cosmovisão bíblica, estamos ensinando-a a perceber o mundo como uma grande história da qual ela também faz parte. Dessa forma, ela tornar-se-á apta para reconhecer cosmovisões falsas, confrontá-las e até rebatê-las.
Uma criança comprometida com a fé cristã é alguém disposto a crescer em Cristo e fazer parte do seu corpo. Ela é capaz de fazer uma enorme diferença no ambiente em que vive, levando a verdade em amor em um mundo dominado por pressuposições errôneas e mostrando que Cristo é a verdadeira fonte do significado que ele tanto anseia.
1 O autor se refere ao texto original no qual Immanuel Kant usou a palavra weltanschauung.
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Referências
BÍBLIA. Português. Bíblia de estudo de Genebra. Tradução: João Ferreira de Almeida. 2ª edição. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil; São Paulo: Cultura Cristã, 2009. 1969 p.
CARNEIRO, Vanessa. Por uma hermenêutica abrangente: o fazer hermenêutico aplicado às crianças. In: << https://theinvisiblecollege.com.br/por-uma-hermeneutica-abrangente-o-fazer-hermeneutico-aplicado-as-criancas/ >> Acesso em 29 de fevereiro de 2024
Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. In: << https://dicionario.priberam.org/cosmovisao >> Acesso em 01 de março de 2024
GOHEEN, Michael W. BARTHOLOMEW, Craig G. Introdução à cosmovisão cristã: vivendo na intersecção entre a visão bíblica e a contemporânea. Tradução: Mario Loureiro Redondo. 1ª edição. São Paulo: Vida Nova, 2016. 272 p.
KAISER, Walter C Jr. SILVA, Moisés. Introdução à hermenêutica bíblica: como ouvir a palavra de Deus apesar dos ruídos da nossa época. Tradução: Paulo C. N. dos Santos; Tarcízio J. F. de Carvalho; Susana Klassen. 3ª edição. São Paulo: Cultura Cristã, 2014. 288 p.
NAUGLE, David K. Cosmovisão: A história de um conceito. Tradução: Marcelo Herbets. 1ª edição. Brasília: Editora Monergismo, 2017. 488 p.
SIRE, James W. Dando nome ao elefante: Cosmovisão como um conceito. Tradução: Paulo Zacharis e Marcelo Herberts. 1ª edição. Brasília: Editora Monergismo. 2012. 186 p.
TIL, Cornelius Van, Apologética cristã. William Edgar. (org.) Tradução: Davi Charles Gomes. 2ª edição. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. 158 p.
WALSH, Brian. MIDDLETON, J. Richard. A visão transformadora: Moldando uma cosmovisão cristã. Tradução: Valdeci Santos. 1ª edição. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. 189 p.