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Cosmovisão cristã: um antídoto para si mesma

Escrito[1] por João Luiz Uliana Filho, estudante do Programa de Tutoria —  Turma Avançada 2020

Introdução

Stanley Grenz, teólogo, escritor e pastor protestante, em sua conhecida obra Pós-Modernismo: um guia para entender a filosofia do nosso tempo [2] diz que na pós-modernidade [3], “o mundo não tem apenas um significado, ele não tem nenhum centro transcendente para a realidade como um todo” (Grenz, 2008: 18). Ou seja, citando o filósofo americano Richard Rorty, Grenz diz que a concepção última de verdade deve ser abandonada, seja ela de natureza da mente, seja da linguagem. Segundo Rorty, devemos nos contentar apenas com a interpretação, com o objetivo de “dar prosseguimento ao diálogo e não à descoberta da verdade” (GRENZ, 2008: 18). 

Dando sequência ao projeto iluminista, a “era pós-moderna marca o fim do universo – o fim da cosmovisão que tudo abrange” (GRENZ, 2008: 64). E além disso “contenta-se simplesmente em falar de muitas visões e, consequentemente, de muitos mundos.” (GRENZ, 2008: 64)

Dito isto, perguntamos – é possível falar de cosmovisão inerentemente cristã, abrangente e total da cultura e da realidade, sendo relevante para uma sociedade secularizada que reduziu o cristianismo meramente “a uma questão íntima e privada” [4]?

1. Iniciando: a questão do relativismo pós-moderno

Conforme aponta David Naugle em Cosmovisão – a história de um conceito, a expressão alemã Weltanschauung [cosmovisão] foi cunhada pelo destacado filósofo prussiano Immanuel Kant, na sua obra Crítica do Juízo, publicada em 1790. Citando o próprio Kant, diz Naugle que “várias frases no contexto [da] citação, como ‘mera aparência’ e o ‘mundo dos sentidos’, sugerem que para Kant a palavra Weltanschauung significava simplesmente a percepção do mundo pelos sentidos” (NAUGLE, 2017: 94). A partir daí o conceito se expande e percorre toda a filosofia posterior, desde o idealismo alemão, o existencialismo de Kierkegaard, filósofos de peso como Hegel, e não só filósofos mas também sociólogos, psicólogos e linguistas, todos dando considerado valor ao conceito, que chega na pós-modernidade com grande força, moldando e sendo moldado pelas características de cada época.

Por conseguinte, desde Kant, inúmeras possibilidades revelaram-se historicamente válidas para o desenvolvimento e cristalização de uma visão de mundo abrangente, que fornecesse sentido e direção da realidade, afinal, responder às questões últimas da realidade, é e sempre foi um desejo do coração humano, bem como um exercício rigorosamente filosófico.

“O mundo livre é, sob este ângulo, um espetáculo de ambiguidades.” [5] A citação é de Karl Jaspers, influente filósofo alemão nascido no final do século 19. Ao falar criticamente de políticos “carentes de vocação”, que se submetem “a qualquer força que lhes ofereça aparente segurança”, Jaspers aponta, com um exemplo bastante claro e prático, a confusão fundamental dos nossos dias – homens incoerentes, comprometidos apenas consigo mesmos sendo moldados pelas circunstâncias. “O espírito perde densidade”, ele afirma, e “o que se tem por cultura não passa de bolhas de sabão num salão literário” (JASPERS, 2011: 81).

O pensamento psicológico de Jaspers elucida o ponto em que chegamos no conceito de cosmovisão, a saber, num emaranhado de respostas, de possibilidades por vezes contraditórias, mas razoáveis, visto que “os pós-modernos adotaram uma visão pluralista do conhecimento […] um desejo de permitir que existam, lado a lado, construções concorrentes e aparentemente conflitantes.” (GRENZ, 2008: 69). Tudo está justificado. Ao analisar o pensamento de Jaspers, Naugle afirma:

Assim, o encontro com as situações últimas na vida faz com que os diferentes tipos de espírito respondam de diferentes formas, e as várias respostas dos diversos tipos de espírito geram uma variedade de concepções de mundo. Esse é o aspecto objetivo da Weltanschauung. (NAUGLE, 2017: 172)

James W. Sire [6], teólogo protestante e notável articulador do tema da cosmovisão, autor de O Universo ao Lado, expõe a questão dizendo que na pós-modernidade, “o próprio saber se encontra sob fogo cruzado, em especial a noção de que há verdades de correspondência. O relativismo conceitual […] atende agora não apenas à experiência religiosa, mas a todos os aspectos da realidade” (SIRE, 2018: 239).

2. Cosmovisão como uma questão teológica

De fato, o conceito de cosmovisão traduz uma ideia filosófica, e isso levanta algumas suspeitas para aqueles que desejam explorar o conceito a partir de um ponto de vista cristão. Karl Barth, importante teólogo suíço, apontou essa dificuldade, e recusou-se a aceitar um modelo de cosmovisão para a fé cristã. Para o teólogo de Basiléia, uma cosmovisão não passava de uma opinião (NAUGLE, 2017: 421).

A preocupação, legítima, de Barth, pairava sobre a “importância da Bíblia como a Palavra de Deus e de sua centralidade na experiência e pensamentos cristãos” (NAUGLE, 2017: 423). Lembrando da proposta de Kevin Vanhoozer em O Drama da Doutrina, para a teologia cristã, o cânon das Escrituras é questão de primeira ordem, e jamais a filosofia deve usurpar dele tal primazia. Uma cosmovisão não pode ser um molde segundo o qual a fé deve se adaptar para sobreviver enclausurada, reduzida à questões de foro íntimo; a Revelação da Palavra de Deus deve conduzir a experiência da realidade, e dirigi-la, sob todos os aspectos da soberania divina.

Barth tinha razão, e seguindo seu argumento podemos compreender, ainda que ligeiramente, o surgimento de ideologias e cosmovisões que diluem o Evangelho em um mar de filosofias, segundo interesses humanos e alienados da Revelação.

Aqui certamente chegamos num divisor de águas para o conceito de uma cosmovisão cristã, realmente relevante, abrangente e também necessária. Tendo a Escritura como autoridade última sobre qualquer assunto, uma cosmovisão cristã não será uma entre tantas outras, mas a única capaz de superar o relativismo cultural em favor da verdade, com uma proposta abrangente que resulta não num projeto da especulação humana, mas na soberana vontade de Deus.

3. Atravessando a fronteira

James W. Sire, traz uma definição bastante rigorosa e contemporânea do conceito de cosmovisão, que nos ajudará a atravessar esse mar revolto da cultura pós-moderna. Resumindo suas palavras, “cosmovisão é um comprometimento, uma orientação fundamental do coração” (SIRE, 2018).

A partir da definição de Sire, encontramos um princípio fundamental para a cosmovisão, que higieniza o conceito de cosmovisão de sua corrupção filosófica. Ao refletir sobre a natureza teológica da cosmovisão, Naugle aponta para a natureza do pecado no coração humano, e nisso é bastante claro: “a diversidade e relatividade das cosmovisões devem ser rastreadas até a idolatria e os efeitos noéticos do pecado sobre o coração humano” (NAUGLE, 2017: 352). O que está exposto então até aqui é que toda essa contingência e relativização circunstancial é fruto de um coração não regenerado, marcado pela realidade do Pecado e, portanto, distante da verdade da fé cristã e incapaz de alcançá-la por si só.

Não obstante, a cosmovisão pode ser, como dissemos, higienizada, limpa de suas mazelas, através de um coração regenerado que então torna-se apto para enxergar com clareza a autenticidade e o centro transcendente de significado que foi abandonado pela pós-modernidade. Esta é a verdade fundamental do cristianismo, que Abraham Kuyper, teólogo e estadista holandês apresentado aqui por Naugle, compreendeu. Para ele,

“a experiência de palingenesis [7], que altera radicalmente o conteúdo da consciência humana e remodela a cosmovisão, faz uma diferença decisiva na forma como o cosmo é interpretado e a ciência realizada” (NAUGLE, 2017, 49).

A regeneração nesse sentido é imprescindível para o desenvolvimento humano, como lhe convém, e não somente por esta ser uma linguagem religiosa e excludente, mas porquê, como irá apontar com sucesso Herman Dooyeweerd, legatário de Kuyper, todo compromisso do coração é em si mesmo religioso, ou seja, a razão – como a filosofia e mesmo a teologia têm demonstrado –, não é autônoma. “A religião não está mais incluída nos limites da razão, mas a razão está incluída nos limites da religião, como tudo na vida” (Naugle: 2017, 56); “a religião do coração é a causa; as filosofias e as cosmovisões são o efeito cognitivo” (NAUGLE, 2017: 57).

A tradição neo-calvinista de Kuyper e Dooyeweerd ajustam a cosmovisão dentro das Escrituras, compreendendo todo o roteiro canônico – criação, queda e redenção – resolvendo a questão do relativismo patente na pós-modernidade. É do coração que procedem as fontes da vida [8], ali estão nossos motivos e pressupostos, que dirigem e orientam nossas inclinações. Não se supera a relativização da vida com mais especulação ou filosofia construída sobre filosofia, mas apenas indo à fonte, de onde emana todo o resto, e a partir daí seremos capazes de enxergar o mundo a nossa volta como ele é de fato. Como escreve Chesterton:

O cristianismo veio ao mundo acima de tudo para afirmar com veemência que o homem não só não devia olhar para dentro, mas devia olhar para fora, contemplar com assombro e entusiasmo uma companhia divina e um capitão divino. O único prazer de ser cristão era que o homem não ficava sozinho com a Luz Interior, mas definitivamente reconhecia uma luz exterior, bela como o sol, clara como a lua, formidável como um exército com bandeiras. (CHESTERTON, 2008: 126)

Considerações Finais

“A fé, portanto, […] não é um salto no escuro, mas a jubilosa descoberta de um quadro mais abrangente das coisas, do qual fazemos parte” (MCGRATH, 2015: 14).

As cosmovisões podem se tornar um salto no escuro, como consequência de um coração ainda idólatra, que por si mesmo produz formas e tipos diferentes de idolatria.

A cosmovisão cristã, abrangente e verdadeira, é coerente com um coração regenerado, que adora e se submete ao Deus das Escrituras, e expande sua compreensão para a realidade do universo. A cosmovisão cristã não é um ingênuo artigo da vida privada, tampouco irracional, mas uma força coerente e abrangente da realidade, é culturalmente relevante, politicamente sólida e cientificamente necessária.

A cosmovisão cristã é, deste modo, uma fé para a vida, abrangente o suficiente para alcançar todas as esferas da realidade.

Referências Bibliográficas

BÍBLIA SAGRADA ALMEIDA SÉCULO 21: Antigo e Novo Testamentos. Coordenação das revisões exegéticas e de estilo da versão – Luiz Alberto Teixeira Sayão. São Paulo, SP: Vida Nova, 2013.

CHESTERTON, G. K. Ortodoxia T.radução de Almiro Pisetta. São Paulo, SP: Mundo Cristão, 2008.

GRENZ, Stanley J. Pós-modernismo: um guia para entender a filosofia do nosso tempo. Tradução de Antivan Guimarães Mendes. São Paulo, SP: Vida Nova, 2008.

JASPERS, Karl Introdução ao Pensamento Filosófico. Tradução de Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo, SP: Cultrix, 2011.

MCGRATH, Alister E. “Surpreendido pelo Sentido: ciência, fé e o sentido das coisas”; Tradução de Onofre Muniz. São Paulo, SP: Hagnos, 2015.

NAUGLE, David K. “Cosmovisão: a história de um conceito”. Tradução de Marcelo Herberts; Brasília, DF: Editora Monergismo, 2017.

SIRE, James W. “O Universo ao Lado: um catálogo básico sobre cosmovisão”; 5ª edição, tradução de Marcelo Herberts; Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018.


Notas

[1] Artigo apresentado para o segundo módulo da Tutoria Avançada do Invisible College – Uma Fé para a Vida: a compreensão holística da cosmovisão cristã. Fevereiro de 2020.

[2] GRENZ, Stanley J. “Pós-modernismo: um guia para entender a filosofia do nosso tempo”; tradução de Antivan Guimarães Mendes. São Paulo, SP: Vida Nova, 2008.

[3] Grenz destaca a publicação do ensaio “The Postmodern Condition: a report on knowledge” do filósofo francês Jean-François Lyotard, em 1979, como um marco descritivo das características culturais da época que ficou então conhecida como pós-modernidade.

[4] NAUGLE, David K. “Cosmovisão: a história de um conceito”; tradução de Marcelo Herberts. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2017.A questão é apresentada nesses termos por Arthur F. Holmes na Apresentação da obra (pág. 14).

[5] JASPERS, Karl. “Introdução ao Pensamento Filosófico”; tradução de Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo, SP: Cultrix, 2011.

[6] SIRE, James W. “O Universo ao Lado: um catálogo básico sobre cosmovisão”; 5ª edição, tradução de Marcelo Herberts – Brasília, DF Editora Monergismo, 2018.

[7] Palingênesis – regeneração espiritual.

[8] Bíblia Sagrada, Cf. Provérbios 4: 23

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