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Criando no mundo de Deus: a aplicabilidade da sabedoria hebraica no trabalho do artista cristão contemporâneo

Escrito por Pedro dos Anjos, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2022

Introdução

A literatura sapiencial hebraica nos coloca diante de uma teoria do conhecimento distinta das formas de racionalização que se encontravam à volta de Israel, seja na tradição do Antigo Oriente, seja na filosofia helenística, posteriormente. A forma de conhecer na Aliança, sempre manteve uma relação de antítese — embora apresentando interfaces culturais — com os modos de conhecimento das culturas vizinhas. Em Israel, a sabedoria era acessada por um constante diálogo com Deus e, numa atitude de dependência, extraída da interação com o Senhor, com o mundo criado e com a comunidade pactual.

O mundo das artes sempre foi uma esfera em constante contato com a Filosofia. A arte tem sido por séculos o reflexo sensorial e estético do que os processos de formação do pensamento humano têm produzido. Na pós-modernidade, a arte e o artista se deparam com questões desafiadoras que relativizam o valor que tanto beleza quanto imaginação possuem e põem à prova a própria identidade do artista e o sentido de sua obra. O artista cristão caminha e produz nesse contexto de grande ruído. 

Tendo em vista a necessidade que a nossa cultura demonstra possuir, de critérios que reforcem fundamentos sólidos para a criação artística, evitando ainda uma postura de nostalgia romantizada ou ressentimento cultural —  nos quais muitos em nossa época têm caído — e considerando a era presente, ao explorarmos as possibilidades que ela apresenta ao artista, haveria na sabedoria hebraica contribuições para o ofício artístico no contexto presente?

Sabedoria: opere bem as suas ferramentas

Em A escola do Messias, o autor Igor Miguel (2021, posição 1603) assinala que os modos de pensar moderno e pós-moderno estão constituídos sobre uma epistemologia subjetivamente imposta à realidade. Para Gregory Wolfe, a modernidade introduziu a negação da ordem transcendental, num processo que eleva e empodera o self moderno para depois o lançar no abismo da fragmentação e alienação pelo qual se caracteriza nosso presente tempo (WOLFE, 2015, p. 36).

Em Israel, nota-se logo na etapa inicial do desenvolvimento do conceito de sabedoria, o quão “mundana” é a sua concepção. Sabedoria (hokmah) significa perícia, habilidade, e o sábio (hakamim) é, semelhantemente ao Deus criador, um portador de habilidades para trabalhar a matéria, criando habilmente, dentro de um universo de possibilidades criativas e manuais (LÍNDEZ, 1995, p. 38-39). Este primeiro sentido para sabedoria é exibido naqueles que haviam sido dotados especialmente pelo Espírito para desenvolver o serviço santo da construção do tabernáculo: Bezalel e Aoliabe1, que presumivelmente já possuíam capacidades artísticas, mas que foram potencializadas pelo Espírito e direcionadas a um trabalho especial. Outros homens e mulheres também serviram como hábeis artesãos e tecelãs. Pessoas que desenvolveram habilidades técnicas ao longo de suas vidas, ao mesmo tempo em que eram capacitados pelo supremo Criador.

O desenvolvimento pessoal das próprias habilidades e a capacitação divina por meio de dons, nunca foram realidades excludentes. A tendência de colocá-los em oposição é um fenômeno moderno. Tanto os que reduzem a capacidade artística aos fatores treino x tempo, excluindo o chamado divino à co-criação, quanto os que entendem “dom” como um conceito de conotação puramente mística e descolada da realidade de um desenvolvimento e direcionamento gradual de aptidões, erram em não reconhecer a dinâmica pela qual se dá o interesse criativo e a evolução técnica de um artista. 

O artista sábio está convicto que suas habilidades o são dadas e impulsionadas pelo Espírito da Sabedoria. Ao mesmo tempo, entende que somente as desenvolverá com o esforço e o empenho próprios àqueles que reconhecem o valor que Deus dá aos talentos que Ele mesmo distribui — dos quais Ele virá certamente exigir investimento fiel.  Tal artista jamais criará um conflito entre as duas verdades. Sobre a necessidade do artista de sabedoria e a totalidade de seus efeitos, Philip Ryken conclui:

Mas não importa como esses termos são definidos, eles mostram que um artista precisa de insight espiritual tanto quanto de habilidade prática. Tomados juntos, perícia, habilidade e conhecimento se referem àquilo que o artista está pensando em sua mente e sentindo em seu coração, bem como o que está construindo com suas mãos. O trabalho artístico de Bezalel e Aoliabe partiu da totalidade de suas pessoas. (RYKEN, 2006, posição 94 — tradução nossa)

O artista cristão na contemporaneidade percebe então o valor da sabedoria como essa habilidade que o possibilita trabalhar a criação, moldá-la com perícia e comprometimento, gerando novos valores a partir do que lhe é dado inicialmente. Ele é chamado para a excelência, dentro de sua própria realidade. Em um mundo marcado pelas distrações, entretenimento barato, comodismo e proposições rasas para dilemas estéticos e culturais complexos, a imaginação de um artista precisa ser constantemente exercitada, ganhando forma por meio de mãos experimentadas na gramática peculiar à linguagem artística que tal pessoa almeja explorar. O artista cristão precisa ser o melhor que puder, dentro de seu chamado.

Os inimigos da imaginação e o antídoto da Sabedoria

O filósofo cristão contemporâneo Calvin Seerveld descreve bem o trabalho do artista como um “imaginador profissional” (SEERVELD, 1999, p. 1). Todavia,  a imaginação não é livre dos efeitos da Queda. Logo, a arte, muitas vezes, tem sido a hospedeira perfeita para falsidade, egoísmo, imoralidade e fragmentação. Quero propor que a sabedoria hebraica contém em si o antídoto necessário para tais males.

Por ser revelacional, a sabedoria é o antídoto contra o veneno da falsidade, que nos expõe a um mundo de absurdo, onde nada é confiável. As noções, sentimentos e realizações humanas são constantemente relativizadas. É fácil se perder nas versões falsificadas de realidade condensadas sensorialmente em muitas obras de arte. Dru Johnson caracteriza o processo de conhecimento como a tarefa de ouvir uma voz autoritativa e submeter-se às suas prescrições (JOHNSON, 2019). Um artista movido por esse fundamento consegue interpretar corretamente a realidade, denunciar mentiras culturalmente aceitas, lidar com elementos da condição humana que enquadram tanto a feiura e a debilidade, como também a beleza, esperança e o mistério presentes na realidade, não como uma ode a um tipo de tradicionalismo, mas sendo fiel a Deus, em seu próprio tempo.

Por ser comunitária, a sabedoria combate o egoísmo recorrente na arte. Ela surge num contexto de um povo que a invoca nos lares, no culto, em espaços de coletividade. Artistas têm sido vistos ao longo da história moderna como figuras excêntricas, ególatras, introspectivas. Porém, além de ser uma expressão pessoal do artista, a arte é serviço. Tal visão refreia o seu potencial de se tornar uma fuga autocentrada e vaidosa que por sua vez alimenta um tipo de consumo similar da arte por parte do público. Ela deve proporcionar uma conversação em que a comunidade é agraciada pelo resultado da execução técnica e imaginativa de alguém que se doa ao mesmo tempo em que o próprio artista é amadurecido pelas percepções, críticas, aplausos ou rejeição genuínos. O artista habilitado pela sabedoria oferece abundância a todos que entram em contato com sua criação.

Por ser santificadora, a sabedoria é o antídoto contra a imoralidade. O sábio é aquele que, segundo Provérbios 14.16, “[…] teme e se desvia do mal”, enquanto o tolo perde-se na sua maldade e arrogância ao confiar em si mesmo. A sabedoria hebraica possibilita ao artista ver as coisas como elas são, ou como deveriam ser, mas nunca com o valor aquém do que elas têm. Ela não permite ao artista objetificar pessoas, desprezar a natureza ou desvalorizar aquilo que é caro ao próprio Criador. Ele é capacitado a não romantizar aquilo que deveria ser objetivamente considerado mau. Aprende a não ceder à violência gratuita ou à pornografia para expôr uma verdade, mas o faz com um senso de sacralidade, de devoção a Deus e dignidade para com o seu próximo. Numa cultura que clama por transcendência sem saber onde encontrar, sua obra será uma seta apontando para o redentor da realidade.

Por fim, a sabedoria encarnada é o antídoto contra a fragmentação da existência e o perigo da dicotomia. O mundo da arte tem sido alimentado por diversas tendências e modismos que parecem promover um senso vazio de imaterialidade e efemeridade. Reproduções em massa de obras, o reducionismo presente em muito da arte conceitual, a especulação mercadológica por trás dos NFTs2, a arte como bandeira ideológica ou propaganda religiosa. No Logos, a sabedoria formadora do mundo habita entre nós, não como uma abstração conceitual, mas em carne e osso. Boa arte deve ser encarnacional, transformadora e reconciliadora, com artistas sujando as mãos de argila e tinta ou mesmo de pixels e bytes, de maneira a conectá-la com o mundo físico, enriquecendo a vida no cosmos.

Conclusão

O artista num relacionamento pactual com o Senhor da Sabedoria é introduzido neste mundo com o propósito de obedecer ao mandato imaginativo e criador que espelha e explora as possibilidades fornecidas por Deus. Como ocorre no livro de Provérbios, o artista sábio deve ofertar sua imaginação poética de maneira a criar cenários onde percepções mais corretas e belas a respeito de Deus, da existência e dos relacionamentos humanos, sejam possíveis. Há mais do que feiura e pobreza na contemporaneidade. Ela é o terreno onde artistas cristãos trabalharão, capazes de reconhecer e fomentar encantamento e vida em seus contextos particulares. Ser um artista sábio exige afirmar que este é o mundo de Deus, entender as demandas de seu tempo e, numa espécie de “vocação diaconal”, servir às mesas daqueles que estão famintos.


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1 Cf. Exôdo 31.

2 Sigla em inglês para Non-fungible-token, espécie de certificado digital em blockchain que pode atestar a originalidade de um arquivo digital.


Referências bibliográficas

BÍBLIA SAGRADA. Tradução: João Ferreira de  Almeida Revista e Atualizada. 2ª ed. Barueri: Sociedade  Bíblica do Brasil, 1999. 896p.

JOHNSON, Dru. Wisdom: Scientific, Biblical, and Otherwise. In: Center for Hebraic Thought. The Biblical Mind. 2019. Disponível em: https://hebraicthought.org/wisdom-in-the-bible-scientific-know

LÍNDEZ, José Vílchez. Sabedoria e sábios em Israel. Tradução: José Benedito Alves. 3. ed. São Paulo. Edições Loyola, 1999. 272 p.

MIGUEL, Igor. A escola do Messias: Fundamentos bíblico-canônicos para a vida intelectual cristã. 1.ed. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021. E-book. 208 p.

RYKEN, Philip Graham. Art for God’s Sake: A Call to Recover the Arts (English Edition). Phillipsburg: P&R Publishing, 2006. E-book. 64 p.

SEERVELD, Calvin. Creativity in Big Picture 1 (3), Trinity 1999: 5-6, 31-32. Disponível em: https://www.allofliferedeemed.co.uk/seerveld.htm. Acesso em 01/01/2022.

WOLFE, Gregory. A beleza salvará o mundo: recuperando o humano numa era ideológica. Tradução: Marcelo Gonzaga de Oliveira. 1 .ed. Campinas: Vide Editorial, 2015. 396 p.