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Da segunda navegação ao coração ferido: lendo Agostinho para o discipulado cristão

Escrito por Matheus Solino, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2022


Se alguém vem a mim e não aborrece a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs e ainda a sua própria vida, não pode ser meu discípulo.

Jesus Cristo1


A influência da filosofia de Platão no mundo Ocidental é alarmante. O filósofo grego estabeleceu um padrão de pensamento que perdura até hoje e influencia todas as ideias, inclusive o cristianismo. Inadvertidamente influenciados pela sabedoria platônica, muitos cristãos vivem um discipulado fundamentado nas ideias gregas estranhas ao pensamento da Bíblia.

O discipulado cristão é um dos pilares do cristianismo e tem como objetivo a transformação do discípulo à maturidade de pensamento de modo que ele desenvolva a mente de Cristo, isto é, pense como o seu Mestre e, assim, adquira a verdadeira sabedoria. O discipulado envolve o conhecimento doutrinário, porém não se limita a isso. O intelectualismo platônico que leva ao mundo ideal deve ser confrontado pela graça divina que ilumina o coração dos homens e os transforma.

O platonismo

Para Reale e Antiseri (REALE; ANTISERI, 2017, pág. 130), o ponto fundamental da filosofia platônica é a descoberta da realidade suprassensível não conhecida pela filosofia anterior à dele. Trata-se de uma dimensão suprafísica que contém a explicação que a filosofia naturalista da physis não pôde obter no plano sensível. Somente após essa descoberta podemos falar em “material e imaterial”, “físico e suprafísico”, “sensível e suprassensível”.

Esse plano foi descoberto na segunda navegação: um esforço próprio do filósofo, que se libertou dos sentidos e do sensível e partiu para “o plano do raciocínio puro e daquilo que se pode capturar com intelecto puro e mente pura” (REALE; ANTISERI, 2017, pág. 131). Esse plano, chamado mundo das Ideias ou Hiperurânio, é captado somente pela razão da alma humana. A viagem para o saber perfeito passa por graus de conhecimento e do próprio ser que, por meio do raciocínio puro, chega às Ideias, às essências dos objetos físicos captados por nossos sentidos.

Essa tarefa do homem é a “purificação da alma” para Platão. O processo de esforço do homem para ascender ao conhecimento suprassensível e chegar à verdadeira dimensão é chamado “conversão” moral. A verdadeira virtude está nessa purificação da alma (fuga do corpo e do mundo sensível), que se eleva ao conhecer. A salvação vem dessa busca pela verdade por meio da razão (REALE; ANTISERI, 2017, pág. 162).

O discipulado cristão platônico

Assim, compreendemos que o discipulado platônico consiste no esforço intelectual individual para alcançar o conhecimento verdadeiro das Ideias invisíveis e incorpóreas por meio da razão da alma. O discípulo de Platão deve conseguir fugir desse mundo, se despir de seu corpo e adentrar na realidade transcendental. Para saber que alcançou o conhecimento verdadeiro, o discípulo deve saber definir a essência do objeto por meio do discurso2.

O discipulado cristão contemporâneo parece seguir o mesmo caminho: uma jornada intelectual individual para chegar ao conhecimento puro sobre a Revelação de Deus, que diz respeito às realidades futuras e exclusivas da alma. A Igreja e a comunidade de cristãos ajudam a providenciar material correto para essa jornada, porém ela acontece na mente de cada cristão. A formação cristã está acontecendo totalmente baseada em ideias.

A ideia que se tem da educação caracteristicamente cristã é que ela diz respeito a ideias cristãs — o que, em geral, requer a defesa da importância da “vida da mente”. Desse modo, o objetivo de uma educação cristã é o desenvolvimento de uma perspectiva cristã, ou como se diz hoje em dia, de uma cosmovisão cristã, entendida como um sistema de crenças, ideias e doutrinas. (SMITH, 2018, pág. 17)

Autores como James Smith3, Kevin Vanhoozer4 e Dru Johnson5 têm chamado a atenção da comunidade cristã para esse reducionismo intelectual da vida e do discipulado cristão, que passaram a ser uma “vida da mente” e não mais de peregrinos no caminho. Smith questiona: “E se a educação não disser respeito primeiramente ao que sabemos, mas ao que amamos?”, e novamente: “a pedagogia da ‘crença’ será mesmo muito diferente da pedagogia ‘racionalista’?” (SMITH, 2018, pág. 18).

Vanhoozer busca diversificar a prática do discipulado cristão ao compará-lo ao drama, que envolve um chamado de Cristo e uma resposta do crente com o propósito de ordenar vidas ainda não conforme a doutrina (VANHOOZER, 2015). Portanto, não é que a doutrina deva ser deixada de lado, porém o discipulado vai além dela. A doutrina serve para andarmos nos caminhos de Jesus — o que está mais próximo do conceito de conhecimento hebraico.

Diferente do grego, não basta ao hebreu discursar corretamente sobre a essência do objeto para mostrar que tem conhecimento dele. Para Yoram Hazony, a verdade na Bíblia se refere à qualidade dos objetos, não a palavras. Conhecer um objeto significa confiar que ele irá exercer sua função prática e, portanto, envolve um relacionamento com o objeto que se conhece6.

Johnson chama a atenção para outras formas de conhecer que não a puramente intelectual: “qualquer sistema de teologia cristã parte de bases ilusórias se seus princípios epistemológicos não estão fundamentados na natureza corporal, social e ritual do conhecimento encontrada ao longo dos textos bíblicos” (JOHNSON, 2016, pág. 17). 

Essas diferentes perspectivas do discipulado cristão carregam uma antropologia não fundamentada na intelectualidade. Todas partem do pressuposto de que o homem não pode ser reduzido ao seu aspecto cognitivo e que ele apresenta outro centro de gravidade e outro motor propulsor: o coração e o amor, respectivamente. Nesse assunto, todos buscam a antropologia de Agostinho de Hipona.

Conforme a célebre expressão de Agostinho: “Porque nos criaste para ti, e o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em ti”. Não é uma questão de intelecto. Agostinho não está preocupado com o fato de que não “conhecemos” a Deus. O problema aqui não é a ignorância nem o ceticismo. O que está em jogo é um tipo de angústia visceral e uma inquietação cuja resolução se dará no “descanso” — quando nosso desejo pré-cognitivo se aquietar, finalmente, ao alcançar seu fim (o fim para o qual foi criado), em vez de ser constantemente frustrado pelos objetos de desejo que não nos dão de volta o amor que lhes devotamos (ídolos). (SMITH, 2018, pág. 77,78)

Antropologia agostiniana

Para conseguirmos entender porque é necessário deixarmos o modelo intelectualista que se fundiu ao discipulado cristão, devemos buscar uma antropologia alternativa. O bispo de Hipona nos oferece uma antropologia bíblica em sua obra autobiográfica. O Livro X das Confissões de Agostinho representa a mudança de rumo de sua vida, tendo um novo significado:

Fazei que eu vos conheça, ó Conhecedor de mim mesmo, sim, que vos conheça como de Vós sou conhecido. Ó virtude da minha alma, entrai nela, adaptai-a a Vós, para a terdes e possuirdes sem mancha nem ruga. É esta esperança com que falo, a esperança em que me alegro quando gozo de uma alegria sã. […] Agora que meus gemidos são testemunhas de que me desagrado, Vós me iluminais, me agradais e eu de tal modo vos amo e desejo, que já me envergonho de mim. Desprezo-me e escolho-vos. Só por vosso amor desejo agradar-vos a Vós e a mim. (AGOSTINHO, 2015, pág. 231)

O bispo apresenta um novo ponto de partida para o discipulado: a autorrevelação de Deus. O próprio Deus infunde o conhecimento dEle mesmo em Agostinho, que se adapta a ele e responde com esperança e alegria. A formação cristã de Agostinho não começa pelo escrutínio intelectual do ser de Deus, mas por um descanso dos seus anseios no relacionamento pessoal que agora possui. Ele pôde perceber quão fútil foi sua empreitada para tentar conhecer a Deus e a si mesmo a partir de sua razão sem se humilhar. 

O cristão, portanto, não nega que o conhecimento da verdade liberta o tolo, porém afirma que, antes de conhecer a verdade, o tolo precisa de uma libertação que não é fruto nem de uma reflexão sobre a verdade e muito menos de uma autorreflexão, mas, sim, de uma ação interna do Espírito, que, com efeito, liberta o tolo para o conhecimento da verdade. De fato, o platônico acerta quando diz que a condição primordial não é conhecer para ser liberto, mas ser liberto para conhecer. Todavia, equivoca-se quando entende que o poder que liberta é a mera reflexão. Nem mera reflexão nem conhecimento teórico algum poderão libertar o tolo para o conhecimento da verdade. (MADUREIRA, 2017, pág. 64)

A ferida aberta no coração pela Palavra de Deus desperta o amor do homem por Ele. Esse amor deve ser direcionado, fortalecido e provado, pois, se mal direcionado, cria um ídolo: “Dois diferentes amores geram as duas cidades: “o amor de si, levado até o desprezo de Deus, gerou a Cidade terrena; o amor de Deus, levado até o desprezo de si, gerou a Cidade celeste. Aquela gloria-se de si mesma; esta, em Deus” (AGOSTINHO apud REALE; ANTISERI, 2017, pág. 470). Para Agostinho, o homem é fundamentalmente um ser que ama.

O discipulado cristão

O discipulado cristão envolve conhecer a Revelação de Deus e agir de maneira correta ao ser transformado à semelhança de Jesus por meio da ação do Espírito Santo. Diferente da viagem intelectualista de Platão, o caminho do discípulo de Jesus envolve renovação do ser como uma unidade em meio às práticas individuais e comunitárias dependendo da ação do próprio Deus.

O crescimento no conhecimento de Deus não ocorre puramente por meios intelectuais, mas pelo poder do Espírito por meio das disciplinas espirituais que fortalecem o amor: adoração, sacramentos, oração, leitura das Escrituras, jejum, entre outros. Essas disciplinas foram deturpadas ou esquecidas completamente. Por exemplo, a adoração (culto público) tornou-se uma atividade facultativa e de performance individual; o jejum desapareceu e só é praticado em situações extremas. Ao focarmos exclusivamente na racionalidade da fé cristã, diminuímos a importância de outras práticas cristãs que constituem a vida do discípulo de Jesus.

O papel do Espírito Santo deve também ser relembrado pelos discípulos. Os discípulos de Jesus não podem se entregar à autonomia do processo intelectual, mas depender totalmente da ação divina que transforma o coração: “Só na grandeza da vossa misericórdia coloco toda a minha esperança. Dai-me o que me ordenais e ordenai-me o que quiserdes” (AGOSTINHO, 2015, pág. 259).

Conclusão

O modelo de discipulado cristão deve passar por uma reavaliação bíblica. Muitas igrejas têm implementado filosofias de discipulado sem analisar seus pressupostos e, como a filosofia grega tem grande influência no nosso pensamento, acabam adotando linhas de trabalho com influências estranhas à Bíblia. O papel da razão humana não deve ser desprezado e a doutrina deve ter seu lugar de importância, porém não podemos reduzir o homem ao seu intelecto, o discipulado a uma tarefa puramente mental e a razão como sua força motora. Agostinho nos lembra que o homem é dirigido pelo amor, seu coração é iluminado graciosamente pela Palavra e o Espírito realiza a transformação da mente para termos a mente de Cristo.


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1 Evangelho de Lucas, capítulo 14, verso 26.

2 EIS, Rabbi R. Yoram Hazony: como a Bíblia supera a dicotomia razão-revelação.

3  Para as obras do autor que abordam o tema, veja também: Você é aquilo que ama: o poder espiritual do hábito. Vida Nova, 2017; e Imaginando o reino: a dinâmica do culto. Vida Nova, 2019.

4 Além do artigo citado nesse texto, veja a produção do autor sobre o papel da doutrina e a dinâmica do discipulado também em: O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Vida Nova, 2016; e Discipulado para a glória de Deus: um guia pastoral para fazer discípulos através da Escritura e da doutrina. Vida Nova, 2022.

5 Além do livro citado neste artigo, veja também: Human rites: the power of rituals, habits and sacraments. William B. Eerdmans Publishing Company, 2019.

6 EIS, Rabbi R. Yoram Hazony: como a Bíblia supera a dicotomia razão-revelação.


Referências bibliográficas

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: J. Oliveira e A. Ambrósio de Pina. 28ª edição. Petrópolis/RJ: Vozes. Bragança Paulista/SP: Editora Universitária São Francisco, 2015. 389 p.

EIS, Rabbi R. Yoram Hazony: como a Bíblia supera a dicotomia razão-revelação. In: Rabbi Rafi Eis. The biblical mind. 28 de julho de 2021. Disponível em: https://hebraicthought.org/yoram-hazony-como-a-biblia-supera-a-dicotomia-razao-revelacao/ Acesso em 02 de Abril de 2022.

JOHNSON, Dru. Knowledge by ritual: A biblical prolegomenon to sacramental theology. Winona Lake, IN, USA: Eisenbrauns, 2016.

MADUREIRA, Jonas. Inteligência humilhada. 1. ed. São Paulo, SP: Vida Nova, 2017. 333 p.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Filosofia: Antiguidade e Idade Média. Tradução: José Bortolini. Ed. rev e ampl. São Paulo/SP: Paulus, 2017. 697 p.

SMITH, James K. A. Desejando o reino: culto, cosmovisão e formação cultural. Tradução: A. G. Mendes. São Paulo/SP: Vida Nova, 2018. 240 p.

VANHOOZER, K. J. Putting on Christ: spiritual formation and the drama of discipleship. 2015. 25 p. Journal of spiritual formation and soul care. Vol. 8, No. 2, 147-171. Biola University, 2015.