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Discipulado cristão: praticando as Escrituras

Escrito por Matheus Solino, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2023


A doutrina anuncia em discurso o novo estado das coisas ‘em Cristo’. O discipulado é o projeto de fazer a vida corresponder a esse estado das coisas. A formação espiritual é a parte do processo em que o espírito é moldado em uma identidade particular.

(Kevin Vanhoozer)


Introdução

“É incrível como eles (adolescentes americanos crentes e atuantes na igreja) não conseguem expressar sua fé, suas crenças e práticas religiosas, nem o significado ou lugar que isso tem em sua vida”. Essa foi a constatação de Christian Smith após anos de pesquisa entre adolescentes americanos, religiosos e atuantes em suas igrejas (SMITH apud VANHOOZER, 2018, p. 79)2. Outro pesquisador americano, Alan Wolfe, também percebeu o desaparecimento da doutrina nas igrejas e sua troca por uma “espiritualidade”: “assuntos como o céu, a condenação e até mesmo o pecado foram substituídos por uma linguagem neutra de compreensão e empatia” (WOLFE apud VANHOOZER, 2018, p. 78)3.

Parte da crise que a doutrina vive nas igrejas se dá pela má compreensão do seu papel na vida do cristão comum. Ao invés de ser um guia para o caminho da vida cristã, ela se tornou um conjunto de declarações sem contexto e sem uso ordinário. A “espiritualidade” aparece como uma alternativa mais prática à frieza e prepotência doutrinária. Para resgatar a doutrina, precisamos compreender sua natureza e sua vitalidade para uma vida cristã genuína.

O discipulado cristão

Para João Calvino, a vida cristã pode ser resumida em renúncia de nós mesmos (CALVINO, 2009, p.158). O chamado de Jesus em Lucas 14:25-33 estabelece essa renúncia como a marca do discípulo: o discipulado requer um amor a Deus acima de qualquer outro amor, uma disposição a todo tipo de sofrimento e uma renúncia de todos os projetos pessoais para dedicação exclusiva ao projeto do Reino.

O projeto de discipulado cristão é uma caminhada que envolve conhecer a Deus revelado em Jesus e ser transformado pelo Espírito em um certo tipo de pessoa que ama a Deus e menospreza a si mesma. O discipulado é o projeto de fazer a vida corresponder ao estado das coisas em Jesus Cristo e o meio pelo qual ligamos a doutrina à formação espiritual.

Essa convocação reconhece que no mundo há uma disputa entre projetos de formação espiritual, mas o discípulo de Jesus deve deixar as outras histórias e atuar como participante do drama que envolve segui-Lo. Todas as narrativas que contam outras formas de se viver e trazem outros conceitos do que é uma vida boa são relativizadas. A história da redenção nos conta que, em Cristo, Deus estava reconciliando o Seu povo consigo mesmo, refazendo-os como novas criaturas, verdadeiros seres humanos para viverem na realidade do Reino que já começou.

O direcionamento da vida cristã

Para viver como nova criatura, é preciso fazer morrer o velho homem e adquirir os hábitos compatíveis com a nova realidade da união com Cristo. Essa nova prática fundamenta-se no conhecimento da história da redenção. Não é possível agradar a Deus sem conhecê-Lo em sua autorrevelação. Portanto, a doutrina é necessária para guiar o nosso caminho e tornar nossa prática conforme as Escrituras.

Nesse sentido, Kevin Vanhoozer apresenta a metáfora do drama para entendermos a importância da doutrina e como ela está longe de ser meramente teórica e dispensável. Atualmente, muitas igrejas deixam a doutrina e as confissões de fé em busca de uma vida cristã mais autêntica (ou “espiritual”). Porém, Vanhoozer mostra como “a doutrina não procura simplesmente afirmar verdades teóricas, mas corporificar a verdade em modos de vida”4 (VANHOOZER, 2018, p. 32) A vida cristã é glorificar a Deus pensando, sentindo e agindo conforme a história que Ele mesmo escreveu. “A finalidade da doutrina é garantir que aqueles que levam o nome de Cristo andem no caminho de Cristo. Assim, longe de ser irrelevante para a ‘vida’, a doutrina dá forma à vida ‘em Cristo’” (VANHOOZER, 2018, p. 32)5.

Primeiramente, a doutrina apresenta o Deus Santo e Poderoso. Somente após essa percepção de quem Deus é torna-se possível perceber o quão longe o ser humano está dEle e que, para uma aproximação, é necessária a mediação de Cristo. Sem esse entendimento, é impossível viver para ele da maneira correta. Ao conhecer o que Deus está fazendo com Sua criação, é possível compreender que a vocação teológica de todos é uma vida em resposta ao chamado de Deus. A doutrina ensina como responder de maneira adequada a esse chamado mostrando como desempenhar a nova identidade em Cristo Jesus. 

Para praticar essa vocação de maneira adequada, as Escrituras narram a história escrita por Deus e como a nossa história está contida nela. As Escrituras não são um compêndio de doutrinas desconectadas das crises cotidianas. Pelo contrário, elas guiam os cristãos pelo projeto de discipulado de Jesus e os protege dos projetos de discipulado do mundo. Essa é a história que a doutrina conta e o contexto em que o discipulado ocorre. O discípulo de Jesus deve entender sua identidade e seu contexto para compreender os caminhos de Deus e ser orientado em uma vida que glorifica a Deus.  Aqui temos o devido lugar da doutrina: não como fim em si mesma, nem desnecessária para a caminhada do discípulo, mas como o roteiro para uma vida que glorifica a Deus.

A prática da doutrina cristã

A prática depende da doutrina, assim como chegar ao destino depende de pegar o caminho certo. A doutrina auxilia o discípulo ao apresentá-lo ao novo papel que ele desempenha (quem ele é em Cristo) e também ao adequá-lo a esse novo papel (o que ele deve fazer em Cristo). Esse é o processo de santificação, que se dá através de novos hábitos apreendidos das Escrituras e exercitados na vida cotidiana. Existe uma grande interdependência entre a doutrina e os hábitos. “A dieta da doutrina leva à boa forma espiritual incentivando hábitos e padrões de pensamento sadios (canônicos), que, por sua vez, dão origem a hábitos e padrões de vida sadios (contextuais)” (VANHOOZER, 2018, p. 390)6. Os hábitos do velho homem devem ser substituídos por novos de maneira intencional e com disciplina. Paulo exorta Timóteo: “Exercita-te, pessoalmente, na piedade” (1Tm 4:7). Portanto, o caminho para a santidade passa pela disciplina cristã, que corrige, molda e aperfeiçoa o nosso caráter.

Cada pecado que cometemos reforça o hábito de pecar, tornando-o mais fácil. Antes de Cristo em nossa vida, nos entregávamos a hábitos de impiedade, porém, agora, em Cristo, devemos desenvolver os hábitos de santidade (Rm 6.19). Esse é o processo de mortificação do pecado (Rm 8.13), o qual é totalmente dependente da ação do Espírito Santo.  Os principais meios pelos quais Deus nos santifica são: a Palavra de Deus, a oração e os sacramentos7. Esses hábitos devem ser fortalecidos na vida do discípulo, pois são as principais vias usadas pelo Espírito para nos aperfeiçoar no papel que recebemos como novas criaturas. 

O conhecimento das Escrituras é o principal caminho para a formação espiritual (Jo 17:17) e nenhum discípulo se mantém na caminhada sem receber esse alimento (1Pe 2:2). Os sacramentos complementam a Palavra e nos comunicam Cristo e a oração molda os nossos desejos e os conforma aos planos de Deus, demonstrando nossa dependência8.

Conclusão

O discipulado cristão sem doutrina forma discípulos que não sabem desempenhar o papel adequado para a história da qual participam, pois não compreendem a radicalidade da renúncia necessária para serem seguidores de Cristo. Portanto, a igreja precisa retornar às Escrituras para compreender a natureza da doutrina e seu papel na prática do discipulado cristão.


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1 VANHOOZER, K. J. Quadros de uma exposição teológica: cenas de adoração, testemunho e sabedoria da igreja. Tradução: Fabrício Tavares de Moraes. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018, p. 195.

2 Id. Encenando o drama da doutrina: Teologia a serviço da Igreja. Tradução: A. G. Mendes. São Paulo: Edições Vida Nova, 2016, p. 79.

3  Ibid., p. 78.

4 VANHOOZER, K. J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução: Daniel de Oliveira. São Paulo: Edições Vida Nova, 2016. p. 32

5 Ibid., p. 32.

6  Ibid., p. 390.

7 Catecismo Maior de Westminster, Pergunta 154.

8 BEEKE, J. R. Espiritualidade reformada. Tradução: Valter Graciano Martins. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2014, p.528-532.


Referências bibliográficas

BEEKE, J. R. Espiritualidade reformada. Tradução: Valter Graciano Martins. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2014. 600 p.

CALVINO, J. A Instituição da Religião Cristã. Tomo II. Livros III e IV. Tradução: Elaine C. Sartorelli e Omayr J. de Moraes Jr. São Paulo: Editora UNESP, 2009. 902 p.

VANHOOZER, K. J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução: Daniel de Oliveira. São Paulo: Edições Vida Nova, 2016. 512 p.

__________. Encenando o drama da doutrina: Teologia a serviço da Igreja. Tradução: A. G. Mendes. São Paulo: Edições Vida Nova, 2016. 352 p.

__________. Quadros de uma exposição teológica: cenas de adoração, testemunho e sabedoria da igreja. Tradução: Fabrício Tavares de Moraes. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018. 334 p.