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Evangelistas como pregadores: redescobrindo a função proclamadora dos evangelhos

Escrito por Jônathas Souza, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2023


Os evangelhos ocupam um espaço especial no nosso contato com as Escrituras. Isso se dá tanto por narrarem o ministério, sacrifício e ressurreição de Jesus Cristo quanto por conterem, em sua maior parte, narrativas e discursos que são fáceis de ler e aparentam simples interpretação. Contudo, na verdade, quanto mais nos debruçamos no texto, mais chegamos às perguntas: Por que quatro evangelhos? Por que essas discrepâncias cronológicas e/ou factuais? Afinal de contas, os evangelhos são historicamente verdadeiros? 

De início, é necessário entender que o texto bíblico não foi escrito pensando numa perspectiva moderna de historicidade. Todavia, também não podemos ir para o outro extremo, ou seja, ignorar a historicidade do texto bíblico em prol de uma “verdade espiritual”. Tal ideia é teológica e literariamente falha, pois desconsidera o caráter histórico das fundamentações da fé bíblica e as características do texto. Dessa forma, continuamos com o desafio de integrar nossas expectativas modernas com as particularidades das Escrituras.

Entretanto, é neste ponto que Moisés Silva, em seu livro Introdução à hermenêutica bíblica1, em coautoria com Walter Kaiser Jr., relembra uma informação importante. Apesar de os evangelistas esperarem que suas declarações fossem consideradas históricas, a historicidade não era o foco, mas, sim, o alicerce de um objetivo maior: contar a história da redenção e a boa-nova encarnada em Jesus Cristo. Os evangelistas, portanto, eram pregadores, sendo de sua apresentação inspirada dos fatos históricos que se origina a autoridade do texto bíblico.

Isso significa que a seleção de acontecimentos da vida de Jesus e de seus ensinamentos não foi guiada por inteligibilidade ou exatidão histórica (de uma perspectiva moderna), mas, sim, pelo propósito do evangelista ao escrever. Além disso, o trabalho dos evangelistas não foi apenas reunir tradições e fontes e então costurá-las lado a lado. Eles acrescentaram modificações próprias àquelas tradições e, com isso, deram ênfases específicas à história da vida de Jesus2. Não é preciso ir longe nos textos para perceber as diferenças — o início da história difere em cada um deles. Como mencionam Bartholomew e Goheen,

Marcos […] começa a história de Jesus com o ministério de João, o Batizador (ou Batista), para nos lembrar das profecias do Antigo Testamento do precursor que deve preparar o caminho para o Messias vindouro. O Evangelho de Mateus volta seus olhos mais para trás, arraigando o ministério de Jesus na história de Israel iniciada em Abraão: para Mateus, Jesus entra na história a fim de concluir a história de Israel. Lucas vai ainda mais longe — até Adão — para mostrar que a boa notícia a respeito de Jesus tem significado para toda a humanidade. E João nos leva a uma época antes da criação: Jesus é a Palavra eterna e incriada, presente com Deus desde o princípio3.

Não há dúvidas, portanto, de que a redação de cada evangelho foi impactada pelas decisões inspiradas de cada um dos evangelistas, preocupados com seu público e com que aspectos da mensagem gostariam de enfatizar. Contudo, é importante lembrar que, além de abrir a porta para uma abordagem crítica redacional do texto (que busca identificar e compreender as particularidades de cada evangelho em comparação com os outros), existem outros impactos hermenêuticos quando reconhecemos os evangelistas como pregadores.

Lembrando o sentido do evangelho

Como provavelmente nosso primeiro contato com os evangelhos foi através do texto bíblico escrito, parece lógico pensarmos que a relação evangelho-texto sempre existiu. Entretanto, o conceito de evangelho como gênero literário bíblico é algo que só apareceu no fim do primeiro século, com a compilação e uso dos textos canônicos4.

Desse modo, Pennington5 não deixa dúvidas: a mensagem do evangelho “é a do Reino de Deus, vinda na pessoa de Jesus mediante o poder do Espírito.”. Ao assumir a perspectiva dos autores como pregadores, entendemos que nada muda e o ‘evangelho’, na forma oral ou escrita, continua sendo “a mensagem abrangente e restauradora do Reino de Deus”. Assim, mais do que uma coleção de narrativas e ditos, os evangelistas desenvolveram um processo de biografia querigmática6, entendendo os fatos históricos como parte importante do progresso da revelação.

Assim, lembrar do propósito do evangelho, seja na forma oral, seja na escrita, nos ajuda a reconsiderar tanto como nos aproximamos do texto quanto como o aplicamos contextualmente, encontrando, por uma boa exegese, a mensagem de boas-novas em cada narrativa ou afirmação.

Mergulhando no contexto do autor

Se cada evangelista estava transmitindo o evangelho para uma comunidade específica, é ainda mais importante entender em que contexto o autor estava escrevendo, e qual a provável motivação para tal. Saber dessas particularidades — Marcos possivelmente escrevendo para cristãos romanos sem muitos conhecimentos das expressões culturais do povo judeu7, ou João provavelmente falando para judeus da diáspora8 — nos ajuda a interpretar melhor o texto bíblico e encontrar o significado original pretendido pelo evangelista. 

Além disso, prestar atenção ao contexto do autor e do texto abre outra oportunidade, a de olhar para os evangelhos como modelos hermenêuticos9, que nos ensinam a contar a história da redenção da mesma forma que os autores o fizeram para cada uma de suas comunidades-alvo. Se entendemos o que significa falar do Evangelho, e como podemos contextualizá-lo, tal como fizeram os evangelistas, só nos falta expor a mensagem de forma clara e biblicamente alicerçada. Como dito antes, os evangelistas lançaram mão do Antigo Testamento, dos fatos históricos e ditos de Jesus para apresentar a seus públicos a grande história de redenção.

Se vemos a pregação do apóstolo Pedro em Atos 2:14–40, podemos perceber uma estrutura análoga ao que vemos nos evangelhos: uma pregação baseada na vida, ministério e sacrifício de Jesus, interpretando o Antigo Testamento de forma cristotélica10, identificando nas Escrituras as confirmações de que Cristo é o Messias esperado de Deus; uma pregação que proclama arrependimento e mudança de vida. Assim, podemos usar das mesmas ferramentas para proclamarmos a mesma mensagem!

Conclusão

Os evangelhos continuarão a tomar a atenção de todos que se aproximam da Bíblia. Por isso, é importante entender que, mais do que contar histórias, eles foram e continuam sendo ferramentas nas mãos de homens e mulheres de Deus para proclamação da obra redentora de Cristo. Não basta nos preocuparmos com questões de historicidade; precisamos relembrar o papel dos evangelhos como boa-nova e do contexto e motivações do respectivo evangelista/pregador, para que nosso conhecimento do evangelho seja aprofundado radicalmente.

Por fim, é óbvio que a perspectiva homilética dos textos é mais evidente em alguns evangelhos do que em outros, mas isso não impacta nosso ponto. É necessário renovar nossa perspectiva do texto bíblico, entendendo melhor o autor, seu contexto e intenção, para podermos melhor contextualizá-lo e, assim, falar efetivamente do evangelho que transforma vidas.


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1 KAISER, Walter C. S.; SILVA, Moisés. Introdução à hermenêutica bíblica: como ouvir a Palavra de Deus apesar dos ruídos de nossa época. Tradução de Paulo C. N. dos Santos; Tarcízio J. F. de Carvalho; Susana Klassen. 3. ed. São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2019.

2 CARSON, D.A. MOO, Douglas; MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. Tradução de Márcio L. Redondo. São Paulo: Vida Nova, 1997. p. 44.

3 BARTHOLOMEW, Craig G.; GOHEEN, Michael. O drama das Escrituras: encontrando nosso lugar na história bíblica. Tradução de Daniel Kroker. São Paulo: Vida Nova, 2017. p. 156.

4 CARSON, D.A. et al., op.cit., p. 53.

5 PENNINGTON, Jonathan. Lendo os Evangelhos com sabedoria: uma introdução narrativa e teológica. Tradução. Rio de Janeiro: Central Gospel, 2019.

6 HENGEL apud PENNINGTON, op. cit., p. 22.

7 CARSON, D.A. et al., op.cit., p. 112.

8 CARSON, D.A. et al., op.cit., p. 195.

9 BARTHOLOMEW & GOHEEN, op.cit., p. 187.

10 A interpretação cristotélica (Cristo + telos [fim, objetivo]) procura demonstrar como cada texto específico se relaciona com Jesus Cristo conforme a história da redenção, sem desrespeitar o contexto histórico do Antigo Testamento. Ver AQUINO, João Paulo Thomaz. A hermenêutica cristotélica de Calvino. Fides Reformata, São Paulo, v. 2, ed. XXII, p. 99-115, 2017.


Referências bibliográficas

AQUINO, João Paulo Thomaz. A hermenêutica cristotélica de Calvino. Fides Reformata, São Paulo, v. 2, ed. XXII, p. 99-115, 2017.

BARTHOLOMEW, Craig G.; GOHEEN, Michael. O drama das Escrituras: encontrando nosso lugar na história bíblica. Tradução de Daniel Kroker. São Paulo: Vida Nova, 2017.

CARSON, D.A. MOO, Douglas; MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. Tradução de Márcio L. Redondo. São Paulo: Vida Nova, 1997.

FEE, Gordon; STUART, Douglas. Entendes o que lês?: um guia para entender a Bíblia com auxílio da exegese e da hermenêutica. Tradução de Gordon Chown e Jonas Madureira. 4. ed. São Paulo: Vida Nova, 2022.

KAISER, Walter C. S.; SILVA, Moisés. Introdução à hermenêutica bíblica: como ouvir a Palavra de Deus apesar dos ruídos de nossa época. Tradução de Paulo C. N. dos Santos; Tarcízio J. F. de Carvalho; Susana Klassen. 3. ed. São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2019.

PENNINGTON, Jonathan. Lendo os Evangelhos com sabedoria: uma introdução narrativa e teológica. Tradução. Rio de Janeiro: Central Gospel, 2019.