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Em que consiste uma vida feliz?

Escrito por Mateus Rigolin, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2023


Um evento que gerou mudanças na forma de se fazer filosofia entre o período antigo e o medieval foi a grande expedição de Alexandre Magno, a qual trouxe um “desmoronamento da importância sociopolítica da pólis1. Como consequência dessa mudança, o pensamento filosófico deixou de ser propriedade exclusiva dos gregos, bem como o foco passou de uma busca coletiva/política para uma procura individual/interior. Diante disso, o objetivo deste texto é apresentar brevemente como as principais escolas filosóficas desse período davam importância ao prazer e à busca da felicidade interior. Junto a isso, abordaremos uma proposta cristã da alegria a fim de refletirmos sobre seus possíveis contrastes.

Os caminhos da filosofia helenística em busca de prazer

Em primeiro lugar, as principais escolas filosóficas a que nos referimos são o cinismo, o epicurismo, o estoicismo e o ceticismo. Cada uma destas apresenta uma proposta diferente de como conduzir uma vida ética e como alcançar o prazer e a felicidade. O objetivo de cada um dos proponentes dessas escolas era encontrar a melhor forma de viverem em uma nova realidade onde a vida coletiva e política já não era mais tão valorizada. Para tanto, as propostas eram muito mais individuais do que coletivas – o indivíduo dependendo apenas de si mesmo e não mais de uma harmonia comunitária. Vejamos um breve comentário de cada uma delas.

A primeira dessas escolas, o cinismo, teve como símbolo Diógenes de Sinope. Este afirmava que não era possível alcançar uma vida feliz com tantas preocupações ao redor.  Apesar disso, para Diógenes, a felicidade estava à disposição de todos. Bastava que estes buscassem satisfazer “somente as necessidades elementares ligadas à sua animalidade (…) Portanto, é um animal que indica ao cínico o modo de viver (…) sem o conforto das comodidades oferecidas pelo progresso”2. Semelhantemente, o epicurismo também propunha uma visão de que a felicidade estaria ao alcance de qualquer homem e que, para alcançá-la, este precisaria apenas de si próprio3. No entanto, para Epicuro, “o verdadeiro prazer vem a ser (…) a ausência de dor no corpo (aponía) e a ausência de perturbação na alma (ataraxia)”4

Na sequência, o estoicismo, de igual modo propondo sua forma de alcançar a felicidade individual, enxergava a realidade como pronta e guiada pelo que chamava Providência. Ou seja, o homem não seria capaz de alterar o seu destino e, portanto, para alcançar a felicidade, deveria aprender a “uniformar as próprias vontades às do destino”5 – uma forma de apatia ao que acontecia. Por último, o ceticismo, com suas semelhanças e diferenças quanto às escolas anteriores, “negou o ser e resolveu tudo na aparência”6. Como consequência, proclamou a afasia – semelhante à ataraxia epicurista. Vivendo assim, o sujeito “despojaria completamente o homem” e viveria em paz consigo mesmo.

Em síntese, estas escolas procuravam uma forma de reagirem à nova realidade que lhes estava imposta com as mudanças sociais. Por concluírem que não poderiam mais alcançar uma paz coletiva através da política – como os filósofos anteriores propunham – os seus proponentes buscaram voltar-se para si mesmos, chegando a uma paz interior individual. Contudo, em nossa opinião, as conclusões às quais chegaram aparentam ser mais uma fuga da realidade, tentando inculcar em si mesmos mais uma falsa paz e felicidade do que propriamente a possibilidade de realização de uma felicidade real.

A felicidade contraintuitiva do cristianismo

Em contraste a essas concepções, para falarmos sobre uma perspectiva de alegria ou felicidade cristã, pegaremos como exemplo a introdução do Sermão da Montanha7, as bem-aventuranças. Em algumas traduções bíblicas, ao invés do termo “bem-aventurado”, é usado “feliz”. O que mais chama a atenção são as características daqueles que são considerados bem-aventurados – ou felizes: os pobres em espírito, os que choram, os humildes, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os pacificadores e os perseguidos8.

Logo, se percebe uma distinção das características helenísticas para as características do Reino de Deus. Diferem, por exemplo, dos estoicos que, por confiarem na Providência, procuravam uma certa apatia diante dos sofrimentos e dos acontecimentos que os cercavam, a fim de preservarem sua felicidade. Os cristãos, por sua vez, serão considerados felizes sofrendo as dores desta vida: quando percebem a injustiça ou são, eles próprios, injustiçados e perseguidos.

Em complemento a isso, o autor Michael Allen, em seu livro A esperança do céu – que acaba tocando, ainda que indiretamente, no tema da alegria – comenta as seguintes palavras comparando o estoicismo com o cristianismo: “Calvino expressamente condena o estoicismo e observa que a perseverança paciente à qual Cristo chama seu povo não é sem tristezas e, portanto, não pode ser empreendida sem angústia, paixão e dor”9.

Diante do exposto, podemos inferir que a diferença entre a felicidade helenística e a cristã reside não apenas em suas formas de serem buscadas, mas por serem consequências de cosmovisões distintas10. Semelhante aos gregos que sofreram com as expedições de Alexandre Magno – que teve como consequência a nova forma de pensamento filosófico apresentado –, os cristãos também sofreram com invasões e perseguições semelhantes. No entanto, a esperança cristã não pode ser abalada pela desestruturação de uma pólis terrena, uma vez que a sua pátria não é deste mundo11.

Por fim, a felicidade cristã não será encontrada mediante a apatia, a ataraxia ou a afasia diante do mundo. Pelo contrário, felizes são aqueles que se reconhecem pobres, que anseiam por uma justiça melhor e que se purificam, buscando serem mais parecidos com seu Mestre, ainda que lhes custe se envolverem com as dores deste mundo. Acima de qualquer coisa, os cristãos sabem que a maior alegria que eles poderiam alcançar já foi conquistada no Calvário e a esperança de uma verdadeira pátria é garantida. Portanto, mesmo com alguma perturbação, não haverá sofrimento que retire essa alegria que os guia em sua existência.


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1 REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Filosofia: Antiguidade e Idade Média, vol. 1. Tradução de José Bortolini. Ed. rev e ampl. São Paulo: Paulus, 2017. p. 255.

2 Ibid., p. 260.

3 Ibid., p. 266.

4 Ibid., p. 272.

5 Ibid., p. 285.

6 Ibid., p. 294.

7 É conhecido como Sermão da Montanha (ou do Monte) a passagem que se encontra no Evangelho de Mateus, capítulos 5 a 7. No Evangelho de Lucas, capítulo 6, dos versículos 17 a 49, também é possível encontrar uma versão menor deste mesmo sermão.

8  Mateus 5.3-12 NVI.

9 ALLEN, Michael. A esperança do céu: um resgate da visão beatífica. Tradução de Daniel Silva Supimpa. São José dos Campos/SP: Editora Fiel, 2022. E-book, p. 167.

10 “Cosmovisão é um compromisso, uma orientação fundamental do coração, que pode ser expresso como uma estória ou num conjunto de pressuposições (…) que sustentamos (…) sobre a constituição básica da realidade, e que fornece o fundamento no qual vivemos, nos movemos e existimos”. SIRE, James W. Dando nome ao elefante: Cosmovisão como um conceito. Tradução de Paulo Zacharias e Marcelo Herberts. Brasília/DF: Editora Monergismo, 2012. E-book, p. 119-120.

11  Filipenses 3.20; Hebreus 11.13-16.


Referências

ALLEN, Michael. A esperança do céu: um resgate da visão beatífica. Tradução de Daniel Silva Supimpa. São José dos Campos/SP: Editora Fiel, 2022. E-book. 194 p.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Filosofia: Antiguidade e Idade Média, vol. 1. Tradução de José Bortolini. Ed. rev e ampl. São Paulo/SP: Paulus, 2017. 697 p.

SIRE, James W. Dando nome ao elefante: Cosmovisão como um conceito. Tradução de Paulo Zacharias e Marcelo Herberts. Brasília/DF: Editora Monergismo, 2012. E-book. 186 p.