Escrito por José Bruno Pereira dos Santos, estudante do Programa de Tutoria 2020 – Turma Avançada
Introdução
Este artigo tem como objetivo demonstrar a importância do discipulado na formação de uma cosmovisão cristã [1], apresentando o conceito de cosmovisão perpassando os caminhos que James W. Sire trilhou até seu conceito refinado e a importância do coração como centro religioso da vida neste processo.
1. Revisando o conceito
Cosmovisão é um tema presente na filosofia desde Kant, mas que ganhou espaço dentro do Cristianismo a partir de dois autores, James Orr, o pioneiro e logo após, influenciado por Orr, Abraham Kuyper. Não obstante seu conceito ter nascido ligado a ideia iluminista da autonomia da razão, passou por várias alterações, mas manteve a ideia de lentes pelas quais vemos o mundo.
Um autor que se ocupou com a história do conceito e principalmente com o conceito em si foi James. W. Sire. Autor dos livros “O Universo ao Lado” e “Dando Nome ao Elefante”.
Sire publicou seu primeiro livro sobre cosmovisão – O Universo ao Lado – em 1976, o qual teve mais quatro edições, sendo que as três primeiras continham um conceito de cosmovisão que o próprio Sire chamou de “superficial” [2] e “inadequado” [3], embora tenha cumprido seu papel na época em que o livro foi publicado. Mas qual era o problema?
Nas primeiras edições de O Universo ao Lado, Sire (2012, p.29) apresentou cosmovisão como sendo “essencialmente… um conjunto de pressuposições (suposições que podem ser verdadeiras, parcialmente verdadeiras ou totalmente falsas) que sustentamos (consciente ou subconscientemente) sobre a constituição básica do nosso mundo”. Porém após algumas críticas ao seu conceito e o contato com obras sobre cosmovisão de autores como Arthur Holmes em 1983; Brian Walsh e J.Richard Middleton em 1984; Paul A. Marshall, Sander Griffioen e Richard Mouw em 1989; e por último a de David Naugle em 2002. Sire se ocupou em revisar seu conceito, demonstrando um enorme gesto de humildade, que resultou em 2004 no seu segundo livro sobre o tema: “Dando Nome ao Elefante – cosmovisão como um conceito”.
Nesse livro, Sire repassa os vários conceitos de cosmovisão ao longo da história, e apresenta suas características, sua hierarquia de prioridade, as perguntas que busca responder até chegar a seu conceito refinado e corrigido, que entende uma cosmovisão não mais como “um conjunto de pressuposições que sustentamos”, mas antes de tudo como:
Um compromisso, uma orientação fundamental do coração, que pode ser apresentado como uma estória ou num conjunto de pressuposições (suposições que podem ser verdadeiras, parcialmente verdadeiras ou totalmente falsas) que sustentamos (consciente ou subconscientemente, consistente ou inconsistentemente) sobre a constituição básica da realidade, e que fornece o fundamento no qual vivemos, nos movemos e existimos (Sire, 2012, p.179).
A conclusão que Sire chegou é que cosmovisão não é de natureza racionalista, “um conjunto de pressuposições que sustentamos”, mas religiosa, pois tem a ver com o coração. Cosmovisão é um compromisso religioso do coração.
2. A natureza pré-teórica da Cosmovisão
É comum que em algum momento no estudo sobre cosmovisão, achemos que ela se trata de uma filosofia, pois ambas se ocupam da totalidade de sentido do mundo. Principalmente se vemos cosmovisão como “um conjunto de pressuposições que sustentamos sobre a constituição básica do mundo”. Porém elas se distinguem quanto à natureza, pois enquanto as filosofias são teóricas, ou seja, ocupam-se com formulações racionais abstraídas da realidade feitas por um grupo seleto de pensadores, as cosmovisões são pré-teórica, ou seja, tratam da forma “intuitiva” com que lidamos com a realidade no dia-a-dia, e se fazem presente em todas as pessoas sem distinção alguma. Ninguém precisa ter uma alta formação intelectual para ter uma cosmovisão, pois como vimos se trata de um compromisso do coração.
O coração nas Escrituras não se refere na maioria dos casos ao conceito biológico de um órgão que bombeia sangue para nosso corpo. Antes o coração na Bíblia se refere ao centro do nosso ser, e é de natureza integral e religiosa, pois diz respeito ao homem todo como escreveu Salomão: “De tudo o que se deve guardar, guarde bem o seu coração, porque dele procedem as fontes da vida” [4]. É do coração que provém nossas ações, pois ele é a bússola que nos guia e é com ele que confiamos em algo ou alguém. O coração de acordo com Sire (2012, p.12) é o:
centro espiritual e, portanto, fundamentalmente religioso (doxológico) de nosso ser… é a instância central e originária de onde partem todos os influxos afetivos, motivacionais e fiduciários que fazem com que nos devotemos ao Deus verdadeiro ou a um ídolo. Estes pressupostos originários, de natureza religiosa, por sua vez, determinam o que aprendemos em termos de crenças, valores, certezas e ideias, condicionando a maneira como percebemos a realidade e agimos nela, inclusive o desenvolvimento da cultura.
Como vimos, podemos dizer que num nível superficial da realidade, o teórico, está a filosofia e a ciência, por exemplo. Num nível mais profundo, o pré-teórico, temos as cosmovisões. E no âmago de tudo, o supra-teórico, está o coração. E é supra-teórico porque é de natureza religiosa, logo está acima das formulações racionais quanto à realidade.
Uma vez que é do coração que provém as fontes da vida, estas fontes só podem ser de águas doces ou amargas, sujas ou limpas, boas ou ruins. Não há meio termo. Por isso que segundo o jurista holandês Herman Dooyeweerd, existem apenas duas orientações para o coração, que regula toda a nossa existência, e que são antíteses entre si: uma voltada à adoração ao Deus criador e a outra à apostasia e rebelião. Sendo assim, como todos somos seres caídos e por causa da queda temos um coração apóstata e rebelde, só seremos adoradores do verdadeiro Deus se tivermos um novo coração, ou seja, se formos regenerados.
3. Do Big Bang espiritual à formação espiritual
O novo nascimento não é algo que algum ser humano seja capaz de realizar, pelo contrário “o que é impossível para os homens é possível para Deus” [5]. Por isso que não podemos pensar em educar alguém em cosmovisão enquanto o coração desse alguém está em apostasia. Neste momento somente a pregação da Palavra terá o poder de transformar o coração caído, pois somente Deus pode tirar o coração de pedra e dar um coração carne.
Por outro lado, não podemos cair no erro de achar que a regeneração irá nos dar uma cosmovisão cristã pronta, pois a regeneração é apenas o início de tudo, o big bang espiritual a partir do qual o coração é transformado e uma cosmovisão cristã é formada e estruturada e para isto precisamos ser educados de tal modo que possamos pensar e agir no mundo, a realidade que nos cerca, e se relacionar com ele pelas categorias do Evangelho. Sobre isto Naugle (2017, p.56-57) nos diz: “O motivo-base do Espírito Santo é derivado da Palavra-revelação divina e a chave para compreensão da Bíblia: “o motivo da criação, queda e redenção por Jesus Cristo na comunhão do Espírito Santo””.
A formação espiritual que segue após a regeneração é o que irá formar e estruturar uma cosmovisão cristã. E esta formação se dá pelas vias do discipulado, que teoricamente possui dois sentidos, os quais são indissociáveis: o ato de seguir a Jesus e o ato de ajudar as pessoas a seguirem a Jesus. O discipulado diz respeito à imitação de Cristo. Logo neste processo se faz necessário o testemunho das Escrituras, “porque são elas que dão testemunho de mim” [6]. A exposição doutrinária não pode ser entendida como o ensino de proposições bíblicas ou como o testemunho experiencial do leitor ou como certos grupos entendem Deus. Mas segundo Vanhoozer (2016, p.35) como “direções dramáticas que moldam a vida” [7].
Ela é dramática porque exige uma resposta do leitor, que é uma resposta performática. O leitor deixa de ser um mero espectador (ou leitor) dos atos de Deus nas Escrituras e é convidado a participar do drama bíblico como ator coadjuvante. E é nesta interação performática que se estabelece uma cosmovisão cristã. O uso da doutrina no discipulado cristão é essencial, porque seu fim “é garantir que aqueles que levam o nome de Cristo andem no caminho de Cristo. Assim, longe de ser irrelevante para a “vida”, a doutrina dá forma à vida “em Cristo”” (Vanhoozer, 2016, p.32).
Devido à natureza dramática da doutrina, não há lugar para a dicotomia teoria e prática. Pelo contrário o discipulado deve ser um ensino performático, onde o discipulador ensina com suas palavras e com sua vida. Ele não é apenas alguém que diz o como viver, mas é um exemplo a ser seguido.
4. Vivendo em uma cosmovisão
Em sua refinação do conceito de cosmovisão, Sire percebeu que seu antigo conceito se limitava a teoria. E compreender cosmovisão assim foi reducionismo, pois ao se tratar de compromisso e orientação do coração, isto resulta em ação, prática e performance. Por isso que chegou a conclusão de que “toda cosmovisão operativa dirige uma ação.” (Sire, 2002, p.146). E é justamente a forma como vivemos que denuncia a nossa cosmovisão. Veja o caso dos fariseus, doutos na lei, homens conhecidos pelo seu zelo religioso, porém Jesus se dirigiu a eles várias vezes de forma dura e uma delas foi quando disse: “este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” [8].
Assim como a doutrina, uma cosmovisão é também um drama no qual participamos e explicamos as questões essenciais da vida. Porém a doutrina é o esteio sob o qual uma cosmovisão cristã é formada, ou melhor, é a matéria-prima com a qual formamos uma cosmovisão cristã. Se a doutrina é fé em busca de entendimento, a cosmovisão cristã é a aplicação criativa da doutrina nos mais distintos contextos da vida. Sobre isso Vanhoozer apud Serene Jones (2016, p.34-45) nos diz:
Doutrinas servem como lentes criativas através das quais se enxergam o mundo. Por meio delas, aprende-se como se relacionar com outras pessoas, como agir em comunidade, como entender verdade e falsidade e como compreender e se movimentar no diversificado terreno dos desafios da vida diária.” Doutrinas são “como roteiros, vagos mas definitivos, que as pessoas de fé encenam; doutrinas são o drama em que vivemos a vida”. Tudo isso é bastante motivador para discípulos que desejam superar a dicotomia teoria/ prática a fim de continuar seguindo o caminho.
Como “roteiros vagos, mas definitivos” as doutrinas estabelecem as cosmovisões cristãs [9], que Vanhoozer (2018, p.28-29) trata como imaginação, a qual nos “capacita a perceber o mundo de maneira que transcendem nossos sentidos empíricos ao nos intimar a apreender de modos diversos a totalidade provida de sentido subsumida “em Cristo””.
Doutrina e cosmovisão cristã andam de mãos dadas, porém não são a mesma coisa. De modo precário, podemos dizer que uma é a luva e a outra bola. Não há neste caso como segurar a bola sem usar a luva e não há razão de usar a luva se não for para jogar a bola. Precisamos das duas. Por isso não há como se falar em cosmovisão cristã alheia a doutrina. E não há como pensarmos em cosmovisão cristã sem um coração regenerado, o qual é o ponto de partida para estruturação de uma cosmovisão cristã e esta estruturação se dá através do discipulado, que opera através do ensino performático das doutrinas.
Referências Bibliográficas
NAUGLE, David K. Cosmovisão – a história de um conceito. Trad. Marcelo Herberts. Brasília: Editora Monergismo. 2017
SIRE, James W. Dando nome ao elefante: cosmovisão como um conceito. Trad. Paulo Zacharias e Marcelo Herberts. Brasília: Editora Monergismo. 2012
VANHOOZER, Kevin J. O Drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Trad. Daniel de Oliveira. São Paulo: Edições Vida Nova. 2016
_____________ Quadros de uma exposição teológica: cenas de adoração, testemunho e sabedoria da igreja. Trad. Fabrício Tavares de Moraes. Brasília: Editora Monergismo. 2018
Notas
[1] O uso do artigo indefinido se dá porque devido à existência de cosmovisões subjacentes, então temos várias cosmovisões cristãs, por exemplo, calvinismo e arminianismo, as pequenas narrativas. Porém quando usamos o artigo definido, o fazemos em menção a grande narrativa: criação, queda e redenção ou os cinco atos do drama bíblico: criação, Israel, Jesus, ressurreição e eschaton.
[2] SIRE, James W. Dando Nome ao Elefante. Trad. Paulo Zacharias e Marcelo Herberts. Brasília: Editora Monergismo. 2012, p.20
[3] Ibid.
[4] Provérbios 4.23
[6] João 5.39
[7] Kevin Vanhoozer a partir das descobertas das ilocuções, que são atos de fala, percebe que as Escrituras não trazem apenas as palavras de Deus, mas os atos de fala de Deus. Porque aquilo que Deus diz, Ele faz. Por exemplo, quando disse haja luz, houve luz. De modo semelhante aquilo que Deus nos diz Ele faz através do seu Espírito, o que nos torna também coadjuvantes do drama divino.
[8] Marcos 7.6
[9] VANHOOZER, Kevin J. Quadros de uma exposição teológica. Trad. Fabrício Tavares de Moraes. Brasília: Editora Monergismo. 2018
1 comment
Raiene
Show! Muito bom!