Escrito por Éverton Wilian dos Reis, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2022
Introdução
A influência da filosofia platônica para a formação do espírito ocidental contemporâneo é inegável por todos aqueles que se debruçam sobre a história das ideias. Tomado pela ontologia parmediana na busca por um ser abstrato, distante da experiência, e também pela mentalidade pitagórica que procurava plasmar misticismo e intelectualidade, Platão deu origem a uma forma de se relacionar com a realidade pela qual todos os filósofos da posteridade tiveram que balizar seu pensamento, tornando-se, assim, o patrono espiritual do Ocidente.
No entanto, não apenas filósofos foram influenciados por Platão. Por que os puritanos se opunham à música, à pintura e ao ritual vistoso da Igreja Católica? A reposta pode ser encontrada no décimo livro da República. Por que as crianças são forçadas a aprender, na escola, a aritmética? Os motivos são fornecidos no livro sétimo (RUSSELL, 2015, p. 162).
Desse modo, muito do desdobramento da teologia ocidental operou sobre os esforços objetivados pela segunda navegação de Platão, de acordo com a qual o acesso ao mundo suprassensível, fora da filosofia naturalista, seria aberto pelo pensamento e pela reflexão (REALE & ANTISERI, 2003, p. 138). O fazer teológico e o modo de se relacionar com Deus, localizado agora no suprassensível, estaria embarcado em uma rota sem retorno em direção à luz do Sol platônico. O pastor cristão, portanto, não teria outra função que não auxiliar os fiéis a valorizar a vida desconectada das contingências inferiores da realidade, inerentemente má, e a buscar o encontro com o divino por meio das disciplinas espirituais e da reflexão que apenas a alma consegue exercitar. À semelhança do filósofo platônico, as atividades dos clérigos estariam mais conectadas ao mundo suprassensível, devendo, eles mesmos, com suas almas iluminadas, retornar ao interior desta caverna intra-mundana para ensinar aos laicos acorrentados pelo corpo o caminho para cima – a vida superior divina.
Toda e qualquer idolatria, seja ela da matéria ou do pensamento, necessariamente fragmentará a vida em compartimentos distintos, e, enquanto operar sobre fundamentos idólatras, tornar-se-á impossível integrá-la novamente. Assim, cabe-nos perguntar: Qual é o modo de superarmos esses dualismos que impedem os pastores de exercerem um ministério integral para poderem proclamar “toda a vontade de Deus” (At 20.27, grifo nosso) e ensinar “toda a sabedoria, para que apresentemos todo homem perfeito em Cristo (Cl 1.28)? Sem dúvida essa trajetória passa por uma redescoberta do ministério pastoral que, à luz da Palavra de Deus, terá seus pressupostos dualistas expostos e destruídos.
Um edifício de dois andares
Nosso percurso em direção à fidelidade a Deus deverá necessariamente expor alguns dualismos da filosofia grega que subjazem à nossa compreensão da vida e da espiritualidade. O jurista e filósofo Herman Dooyeweerd afirmou que “o motivo básico religioso é sempre de caráter comunal central e dá expressão a um espírito comum que une aqueles que por ele são governados” (DOOYEWEERD, 2018, p. 76). Figurando como elemento primeiro na formação da cultura ocidental está o espírito da consciência grega, que
continuou e continua até hoje a operar tanto no catolicismo romano quanto no humanismo. Embora tenha sido o famoso filósofo grego Aristóteles a cunhar a expressão “forma-matéria”, esse motivo controlou o pensamento e a civilização gregos desde o surgimento das cidades-estados gregas (DOOYEWEERD, 2018, p. 29).
Aristóteles foi quem reconheceu que a força motriz das cidades-estado gregas era, na verdade, a síntese de dois motivos básicos que se tensionavam: a matéria, com origem nas antigas religiões naturais dionisíacas, e a forma, operante na mais recente religião apolínea. A filosofia grega não nasceu em um vácuo, mas do choque entre essas duas forças antagônicas. As religiões da natureza foram herdadas pelos gregos de culturas anteriores a eles. “O que estava em jogo nesse motivo básico era a deificação de um fluxo de vida cíclico e informe” (DOOYEWEERD, 2015, p. 30). O fluxo constante da vida e da morte era visto de modo divinizado e inescapável. Já a religião da forma era moldada por forças harmônicas, belas e idealizadas que, inspiradas nos deuses olímpicos, buscavam impor controle sobre o mundo imperfeito e natural. O dualismo do dionisíaco e do apolíneo permaneceu presente nos pensadores, até influenciar Agostinho de Hipona. Esse filósofo cristão desenvolveu o conceito de natureza e graça (AGOSTINHO, 2017), advogando que a natureza humana foi totalmente corrompida pelo pecado, mas que a graça de Deus poderia redimi-la por meio do encontro interior da alma com a graça por intermédio da razão – bem superior do homem (AGOSTINHO, 1995, p. 80-85). A Igreja da chamada Idade Média se veria vendida a esse dualismo por um longo período, fadada a suprimir em um andar inferior tudo o que fosse material, natural e físico, por estar quebrado pelo pecado, e a elevar a um patamar superior o único lugar do possível encontro com Deus para a redenção da natureza caída: a alma incorruptível e imortal. Os clérigos cristãos medievais seriam influenciados por esse pensamento, tornando-se aqueles que receberam o elevado encargo de usar as faculdades do espírito para auxiliar as almas presas aos corpos mortais no seu encontro definitivo com Deus.
Em Platão há algo que não pode ser visto em nenhum filósofo anterior a ele, mas que moldaria incontornavelmente os filósofos que se seguiram a ele. Trata-se da teoria das ideias. Segundo a lógica e a metafísica platônicas, a realidade depreende-se em dois andares: um superior onde se localizam as ideias (ou formas), um mundo suprassensível de inteligibilidade, incorporeidade, imutabilidade e perfeição, alcançado apenas por meio da razão e sem via de acesso pelo outro mundo; um andar inferior (da matéria), um mundo de aparência, corporeidade, mutabilidade e imperfeição (REALE & ANTISERI, 2013, p. 141). O filósofo verdadeiro se ocupa com o mundo das ideias e não com o mundo como ele se apresenta aos sentidos. Ele precisa driblar a aparência do mundo material por meio do exercício da razão, pela qual ele alcança a verdade (aletheia). Diferentemente das pessoas comuns, que formam opiniões (doxai) a respeito das suas experiências, o filósofo é o único que consegue enxergar a verdade, porque ele se devota aos exercícios de esquecimento do corpo e de libertação da alma. Pois o filósofo sabe que a alma, perfeita e imortal que é, consegue ter acesso ao mundo das ideias mediante a reminiscência, isto é, das lembranças que lhe foram fecundadas quando do encontro prévio com o suprassensível.
O cerne da teologia cristã foi implacavelmente atingido pela filosofia platônica de modo que a antropologia, a cristologia e a escatologia bíblicas, por exemplo, passaram a ser interpretadas segundo lentes gregas sem que nem ao menos percebêssemos. Foi assim que a superioridade da alma em relação ao corpo, a valorização dos exercícios religiosos em detrimento das atividades cotidianas, as dificuldades com a encarnação de Cristo e o esvaziamento da esperança cristã, reduzida ao escapismo das almas desincorporadas com a destruição da matéria, se tornaram tão comuns entre nós. Termos bíblicos, como “alma”, “vida eterna” e “conhecimento” passaram a ser interpretados ao sabor da filosofia grega, em uma síntese velada e quase despercebida. Esse ensino dualista platônico tem chegado ao coração da igreja por intermédio dos seus pastores, que receberam do seminário uma formação recheada da filosofia grega, beberam-na indiscriminadamente e a ofereceram à igreja do mesmo modo. O mistério divino foi desvendado e sistematizado pela razão grega que inquire “O que é Deus?”1 na tentativa de dissecar a divindade objetiva e sistematicamente, chegando-se a conclusões lógicas elaboradas sobre premissas abstratas. Buscam-se respostas na revelação bíblica lançando mão de perguntas feitas sob categorias pagãs. As atividades diárias, empreendidas no ambiente corporativo de segunda a sexta-feira, são vistas pelos cristãos como um mal necessário e não como o locus da missão de Deus dada à igreja. Dualismos, como o secular-sagrado, esvaziam e enfraquecem tanto o sentido formativo, comunal, escatológico e missional das atividades dominicais da igreja quanto retardam a maturação da vida cristã responsável na sua relação com a cultura. Este mundo físico, criado por Deus, tornou-se apenas uma adendo à verdadeira espiritualidade, não podendo ser redimido, apenas destruído. Finalmente, pastores enxergam sua vocação como “sagrada” e “espiritual” em detrimento da vocação dos membros das suas igrejas. A dedicação à leitura, à oração e à pregação são vistas como superiores às atividades de dirigir vans, vender sapatos ou obturar dentes e outros afazeres da vida “ordinária”. Tudo isso tem seu nascedouro na ontologia dualista platônica acerca da realidade expressa em dois andares. Assim como o filósofo que não se interessava pela cultura, pelas artes e pela ciência natural, também os pastores aprenderam, não com a Bíblia, a desprezarem este “mundo”, reproduzindo, assim, na igreja uma mentalidade subalterna de missão.
Conclusão: A Pedra angular
A única forma de superação da aporia platônica sintetizada com o cristianismo é recorrendo ao fundamento bíblico acerca do mundo, fundamento esse não cindido ou dicotômico, mas unificado na pessoa de Cristo. A tríade Criação-Queda-Redenção oferecida pelo enredo do teodrama bíblico é a única forma de implodir as bases do edifício platônico dualista. Pela criação, sabemos que o mundo não foi criado por um demiurgo como cópia ilusória e enganosa de um mundo ideal, mas pelo Criador para servir como palco da sua glória (Sl 19.1). O homem foi criado por Deus como ser integral para, em todas as suas atividades e facetas da vida, ser objeto do seu amor e instrumento da sua graça no exercício dos mandatos espiritual, social e cultural que recebera de Deus (Gênesis 1.26s). Ou seja, a natureza do ser humano total é compartilhada da natureza divina e se relaciona com todos os âmbitos da criação! Por isso, para o cristão, “continua sendo completamente impossível explicar por que Deus não se contentou com o mundo das ideias” (RUSSELL, 2015, p. 172). O mundo platônico é impessoal, mas a criação bíblica é relacional desde o começo, uma vez que “se Deus habita no mundo superior, ele não tem relação conosco: ele não pode ser nosso senhor e nós não podemos ser seus escravos; ele não pode nos conhecer e nós não podemos conhecê-lo.” (CLARK, 2012, p. 82). A encarnação de Cristo assinala o movimento contrário ao platônico, pois Deus não seria conhecido em sua plenitude por meio do acesso intelectual à transcendência supra-histórica e invisível, mas no evento histórico, visível, concreto e imanente de Cristo. Aliás, todas as Escrituras não oferecem caminhos para se acessar Deus no céu, mas são produto da revelação acessível aos olhos, aos ouvidos e coração humanos. Jesus não realiza uma navegação platônica para acessar o suprassensível mediante a razão, mas anda, ele mesmo, sobre as águas para revelar que todos os elementos da criação natural, inclusive os maus, estão sob sua autoridade. A ressurreição de Cristo, do mesmo modo, é a afirmação da criação como boa, ao mesmo tempo em que a redime do pecado e a redireciona. Por isso o edifício cristão não é erigido sobre ideias, mas sobre uma Pessoa (1Pe 2.6-8). Ele não é formado por conceitos, mas por homens e mulheres (Ef 2.21). Nele, os pastores são “cooperadores de Deus” a fim de edificar sua igreja: “lavoura de Deus e edifício de Deus” (1Co 3.9, Ef 4.11-16), não chamados a construir um templo religioso separado do resto do mundo, mas a gerar e equipar a nova humanidade criada à semelhança de Deus (Ef 4.24, 2.15).
Acreditamos que o estudo teológico é fundamental para todo cristão, e não apenas para pastores ou líderes. Afinal, a teologia nos ajuda a seguir a Cristo em todos os aspectos da nossa vida!
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1 Ao invés da pergunta “Quem é Deus?”, que se aproximaria mais da abordagem relacional da Bíblia em sua longa trajetória revelacional.
Referências
AGOSTINHO, Santo. O Livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1995, 294 p.
______. Patrística – Graça (I) – Vol. 12. Tradução de Agostinho Belmonte. 1ª ed. São Paulo: Paulus Editora, 2017, 328 p.
CLARK, Gordon Haddon. De Tales a Dewey. Tradução: Wadislau Gomes. 1. Ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2012, 480 p.
DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental: estudo sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. Tradução Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza – Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018, 276 p.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia: filosofia antiga, v. 1. Tradução de Ivo Storniolo. 3ª ed. São Paulo: Paulus, 2003, 385 p.
RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental – Livro 1: A Filosofia Antiga. Tradução: Hugo Langone. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2015, 364 p.