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Atualizar a Bíblia: uma ideia atual?

Escrito por Pedro Alencar San Martin, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2022

Ao observarmos os púlpitos das igrejas evangélicas brasileiras, é provável que encontremos fenômenos curiosos: sermões que utilizam trechos da Bíblia para justificar conclusões e posições políticas que parecem pouco ter a ver com o que neles estão escritos; passagens inteiras sendo classificadas como ultrapassadas ou desatualizadas frente a comportamentos e desejos do leitor e até mesmo revelações que dizem o verdadeiro oposto daquilo que, a princípio, está escrito. Uma das nossas principais tentações é imaginar que esses casos que têm ganho cada vez mais destaque em nosso meio, são inéditos e exclusivos a nossa geração, o que não é necessariamente o caso. 

O estudo da hermenêutica e da evolução das perspectivas de interpretação bíblica através dos séculos podem nos ajudar a diagnosticar melhor a situação. A história da hermenêutica nos mostra que desde que a igreja se viu capaz de superar a tradição teológica medieval, por ocasião da Reforma Protestante, criou-se espaço para diferentes abordagens hermenêuticas das Sagradas Escrituras que não necessariamente levam a ortodoxia cristã em seu âmago (PORTELA, 2021, p. 31). 

Das diversas distorções que podem ser observadas na interpretação bíblica, uma que particularmente está presente em nosso tempo é a supervalorização do leitor durante a interpretação da Escritura. Afinal, não é raro vermos textos sendo aplicados para defender determinado comportamento, grupo, ideologia política ou até mesmo candidato não importando muito com o que texto em si diz, ou a intenção do autor ao escrevê-lo, mas sim a leitura do interlocutor ao lê-lo. Apesar de as ênfases na subjetividade e relatividade da interpretação bíblica serem algo extremamente características da hermenêutica contemporânea, suas raízes são muito anteriores ao nosso tempo:

As raízes desta perspectiva podem ser encontradas na filosofia do pensador do século XVIII Immanuel Kant, cujo trabalho foi sem dúvida um importante ponto de transição entre o pensamento moderno e tudo que o precedeu. O efeito da contribuição de Kant tece um caráter tão amplo e tão fundamental que nenhuma disciplina intelectual pode escapar ao seu impacto – nem mesmo a interpretação bíblica, embora tenha levado um bom tempo para os exegetas perceberem o que estava acontecendo. (SILVA, 2014, p. 232)

Já no século XVIII, com o pensamento de Kant, a centralidade do papel do leitor na interpretação da realidade e, consequentemente, das Escrituras mediante a experiência fenomenológica humana. Desse modo não é um exagero afirmar que podemos encontrar aí um protótipo dos intérpretes contemporâneos que buscam ler apenas a luz de seus pressupostos políticos e ideológicos.

 Friedrich Schleiermacher, por sua vez, apresenta uma visão que também enfatiza o leitor, mas agora o seu sentimento. Para ele, o sentimento passa ainda mais central, sendo a base da consciência que o ser humano tem sobre Deus de modo que “a religião não deveria mais originar-se de um livro, da razão ou de qualquer coisa externa; sua fonte primária poderia ser encontrada em nosso sentimento de dependência de outro alguém.” (KAISER; SILVA, 2014, p. 218). É nesse pensamento que encontramos o embrião do pregador contemporâneo que subverte a autorrevelação divina completamente a sua experiência sentimental pessoal, mesmo que esta esteja em flagrante contradição com a Escritura.

Os pensamentos de Kant e Schleiermacher nortearam o liberalismo alemão e sua influência se estendeu pelas academias do Ocidente durante as transformações sociais e industriais das eras pré-moderna e moderna, cristalizando esses conceitos em gerações de teólogos e intérpretes das escrituras (PORTELA, 2021, p. 30). Essa visão descola o sentido do texto da intenção autoral e a visão do leitor se torna praticamente independente e mesmo que tenham tido alguns períodos de inflexões é uma visão bastante presente na hermenêutica contemporânea. Essas ideias foram exacerbadas pelo pós-modernismo, que expandiu ainda mais a independência de diferentes correntes de pensamento individuais como lente para interpretação:

O pós-modernismo, portanto, não é uma escola de pensamento que apresenta as suas próprias proposições, mas uma persuasão contemporânea que admite a coexistência pacífica de muitas assertivas. (…) Essa desconsideração resulta em formulações teológicas fluidas nas quais a apreensão humana é colocada como norteadora da compreensão do transcendente. (PORTELA, 2021, p. 30)

Essa mudança do pêndulo da interpretação para longe da intenção autoral e do texto para cada vez mais perto da percepção independente e criativa de cada leitor aliada com a fragmentação do pensamento pós-moderno é um dos principais viabilizadores das tantas correntes teológicas identitárias. Não é raro encontrarmos hoje, no debate teológico, argumentos a favor de teologias negras, feministas, homoafetivas dentre outras, que propõem uma leitura das Escrituras à luz de suas lutas, demandas e conceitos por vezes rejeitando passagens inteiras ou até mesmo conclamando por atualizações do texto bíblico e de seu significado.

Se a hermenêutica nos ajuda a diagnosticar e traçar as origens dos males que afligem a igreja em nossos tempos, ela também pode nos ajudar com o antídoto as distorções na interpretação do texto bíblico. Apenas estando cientes de quais são os exageros contemporâneos, podemos buscar corrigi-los em nossos exercícios de interpretação das Escrituras e buscar encontrar sempre o equilíbrio entre autor, texto e leitor.


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Referência Bibliográfica

KAISER, W. C.; SILVA, M. Introdução à hermenêutica bíblica: como ouvir a Palavra de Deus apesar dos ruídos da nossa época. Trad. Paulo C. N. dos Santos; Tarcízio J. F. de Carvalho; Suzana Klassen. 3. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2014. 288 p.

PORTELA, S. Desconstrução e reconstrução: O pós-modernismo, da teologia da esperança à teologia da nova era, e seus reflexos no campo educacional. FIDES REFORMATA, São Paulo, Vol 26, n 1, p. 29 – 46, 2021.