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Entre memoriais e proibições: a sabedoria hebraica como método pedagógico e a vida cristã 

Escrito por Luiz Fernando Ribeiro Nunes, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2024


Introdução

A sabedoria hebraica, ancorada nas Escrituras Sagradas, destaca-se não apenas pela proibição de criar deuses e ídolos, mas também pela promoção ativa da criação de memoriais como método pedagógico. Diante disso, este ensaio busca explorar a interconexão entre esses dois aspectos, examinando como a proibição da feitura de ídolos se harmoniza com a promoção de memoriais e como essa abordagem ressoa na prática litúrgica contemporânea na igreja.

Perante isso, o texto se apresenta da seguinte maneira: na primeira parte, apresentam-se os fundamentos do ensaio, a saber, as proibições de imagens, os memoriais na Escritura e o seu papel pedagógico. Em seguida, parte-se para o entendimento sobre como as proibições e os memoriais impactam nossa vida, bem como isso se aplica na contemporaneidade. Logo após, gastar-se-á tempo em reflexão sobre desafios e possibilidades da vida litúrgica contemporânea e as considerações finais.

O mandamento e os memoriais na sabedoria hebraica

Os mandamentos que proíbem adoração a outros deuses e o mandamento que proíbe a feitura de imagens, deuses ou ídolos (Êx 20) são centrais para a ética hebraica. Neste ensaio, nos deteremos, especificamente, no mandamento que proíbe a confecção de ídolos (Êx 20:4-6), embora este esteja intrinsecamente ligado ao primeiro mandamento mencionado. No entanto, paradoxalmente, a mesma tradição que proíbe imagens incentiva a criação de memoriais. Estes não são ídolos, mas recordações físicas de eventos e princípios significativos. 

A tensão entre a proibição de ídolos e a criação de memoriais revela uma compreensão única da relação entre o imaterial e o material, o tangível e o intangível. Como exemplo desses memoriais, podemos citar as festas de Israel ou colunas de pedras levantadas com um único objetivo: lembrar o povo de Israel do que o Senhor fez por eles. Isso fica claro no episódio da travessia do Jordão (Js 4). O memorial tem um propósito muito claro, além de envolver uma ritualística. Para a construção do memorial em si, ele é um grande lembrete dos feitos do Senhor, como nos deixa claro o próprio relato bíblico nos versos 21 a 24 do capítulo 4 de Josué:

E Josué disse aos filhos de Israel: — Quando, no futuro, os filhos perguntarem a seus pais: “O que significam estas pedras?”, expliquem aos filhos de vocês, dizendo: “Israel passou em seco este Jordão”. Porque o Senhor, o seu Deus, fez secar as águas do Jordão diante de vocês, até que vocês tivessem passado, como o Senhor, o seu Deus, fez com o mar Vermelho, que ele secou diante de nós, até que tivéssemos passado. Para que todos os povos da terra saibam que a mão do Senhor é forte, a fim de que vocês temam o Senhor, seu Deus, todos os dias.

É notável observar que Deus, com Sua infinita sabedoria, considera a limitação de conhecimento que caracteriza cada nova geração. Consciente de que os pais muitas vezes falham em transmitir integralmente todos os Seus feitos, tanto para si mesmos quanto para as futuras gerações, Deus instruiu Israel a erguer memoriais como testemunho de Sua grandiosidade. Esses memoriais, simbolizados pelos montes de pedras, desempenhariam o papel de recordatórios perenes, destinados a evocar a intervenção divina, como o milagre da abertura do mar. Tal orientação transcende as adversidades cotidianas de um hebreu, imbuindo cada aspecto da vida com uma consciência mais profunda da presença e providência divinas. 

Para além da evidente armadilha da idolatria associada à criação de imagens, Deus, em Sua compreensão profunda da natureza humana, reconhece nossa necessidade de tangibilidade. Ele nos formou com essa característica intrínseca, a necessidade de ver e tocar. Nesse contexto, Deus não apenas permite, mas ordena a construção de memoriais. Os ídolos, por sua vez, tornam-se memoriais deturpados, desviando a glória que pertence a Deus, como claramente ilustrado na narrativa do bezerro de ouro (Êx 32). Por meio dos memoriais legítimos, somos capacitados e incentivados a oferecer nossas homenagens e adoração a Deus, em reconhecimento à Sua grandiosidade.

A função pedagógica dos memoriais na tradição hebraica

Os memoriais, na sabedoria hebraica, não são simples recordações passivas. Eles servem como dramatizações, são métodos pedagógicos ativos, transmitindo lições morais, éticas e teológicas de forma viva. As festas de Israel (Lv 23), por exemplo, são memoriais que não apenas lembram eventos históricos, mas convidam o povo a vivenciar e encenar essas verdades em sua própria existência. Do mesmo modo, na festa dos tabernáculos, era proposital o povo se colocar em desconforto — no caso, dormir em cabanas por uma semana — para lembrarem que foi o Senhor quem os tirou de um lugar de sofrimento no Egito (JOHNSON, 2022, n.p.). Essa prática memorial não é apenas uma celebração, mas um ensino em ação.

Os efeitos ritualísticos, litúrgicos, disso são bem marcantes. Observe que todo o corpo é utilizado nesses memoriais. Deus, como Criador, nos mostra que somos, em nossa inteireza, seres litúrgicos. Absolutamente, todo o povo de Israel deve adorar ao seu Libertador e o deve fazer com todo o seu ser. Outros povos cultuavam seus deuses com todo o corpo também, por vezes até tirando seu próprio sangue (1Rs 18). O deus Moloque pedia o sacrifício de crianças, o que nos mostra que a liturgia do culto dele também envolvia um apelo emocional. E assim, neste cenário, onde ídolos tripudiam sobre a criação de Deus, Israel é convocado a fazer de seu corpo palco da glória do Grande Eu Sou.

A necessidade dos memoriais é importante na manutenção da identidade de Israel. Entretanto, também tem seu papel na sua restauração. Ao retornar do exílio, o povo comemora a Páscoa, logo após reconstruir o Templo. São sete dias de festa (Ed 6:19-22) e podemos observar que a Festa dos Tabernáculos também é restaurada rapidamente em Israel (Ne 8). A restauração do povo e sua volta ao Senhor passa por encenar a redenção voltando às práticas memoriais.

Jackie Hill Perry, ao falar sobre idolatria, diz o seguinte: “Os idólatras não querem o Deus verdadeiro; eles querem ser Deus. Fazem todos os esforços possíveis para criar uma espécie de distanciamento entre eles e seu Criador. Constroem uma realidade alternativa na qual são seu próprio senhor e rei” (PERRY, 2022, p. 97). Nesse sentido, memoriais são um dos antídotos contra a idolatria, pois são lembretes dos feitos do Senhor, não dos nossos. Eles nos ajudam a lembrar que podemos querer fugir do Senhor, mas Ele nos achará. Memoriais fincam nossos pés na realidade enquanto prendem nossos olhos nos feitos do Senhor.

Conexões com a vida contemporânea na igreja brasileira

Antes de explorarmos como esse tema impacta nossas vidas atualmente, no contexto sincrético brasileiro, é imprescindível fazer a distinção entre liturgia e superstição. A superstição representa a tentativa de manipular o sagrado, de influenciar a vontade de Deus, de movimentar os céus. Ela equivale à idolatria, expressa, por exemplo, ao virar a imagem de Santo Antônio de cabeça para baixo para conseguir um marido ou ao dar três pulinhos para São Longuinho. Essas práticas buscam subjugar o sagrado à vontade individual, tornando-se uma afronta à essência da verdadeira adoração.

Por outro lado, a liturgia se contrapõe a esse viés. Ela consiste em sincronizar nossas vidas com a vontade divina. Essa sintonia se manifesta nos rituais e festividades, conforme evidenciado em Levítico, ou monumentos, conforme evidenciado em Josué 4. Deus ordena e espera a obediência do Seu povo. Este alinhamento com a liturgia representa uma resposta humilde e reverente à grandiosidade divina, em vez de uma tentativa de subjugá-la às nossas vontades individuais.

 A prática de criar memoriais e viver as verdades ensinadas remonta aos princípios hebraicos e percebemos um despertar para essa abordagem na igreja contemporânea. Liturgias, encenações e a ênfase na vivência da vida cristã não são apenas cerimônias formais, mas uma resposta ao convite hebraico de viver as verdades de Deus. Essa tendência reflete um anseio por uma fé prática e encarnada. 

Proibição de ídolos e a experiência contemporânea

Ao considerar a proibição hebraica de criar ídolos, podemos interpretá-la como um chamado para evitar a simplificação e a cristalização de Deus em formas físicas. A promoção de memoriais destaca a importância de incorporar as verdades espirituais na experiência tangível. Essa dicotomia ressoa na busca contemporânea por uma fé que transcende rituais vazios e incentiva uma conexão viva com Deus. Esse interesse por uma fé inteira, que envolve também o material, pode ser notada por um interesse por publicações recentes que causaram impacto no evangelicalismo, tais como o livro Liturgia do ordinário (2021) da pastora anglicana Tish H. Warren e o devocionário Lecionário. 

Qualquer igreja evangélica já tem memoriais, tais como a Ceia do Senhor e o batismo, mas podemos criar nossos próprios memoriais. Edith Schaeffer, em seu livro Celebração do matrimônio (2019), fala sobre isso. A teóloga mostra como sua família celebrava o aniversário dos seus membros: aquele era o dia inteiro da pessoa, sua cadeira na mesa, com café da manhã, era cheia de balões e aquela pessoa era celebrada. Podemos observar que era algo simples, porém memorável. Todos os anos a família Schaeffer tinha um dia para olhar cuidadosamente para cada membro da família. Podemos imaginar como se sentiam vistos, amados, celebrados. Fazendo um trocadilho com o livro de Francis Schaeffer, ali todos aprendiam que não há gente sem importância (2019). 

Considerações finais 

Ao adotar a abordagem hebraica de estabelecer memoriais, a igreja contemporânea trilha um caminho rumo a uma fé mais vibrante e envolvente. Na atualidade da igreja brasileira, vislumbramos um eco dessa tradição na crescente ênfase em liturgias vivas e na busca por uma fé encarnada. Ao observar a proibição de ídolos e, simultaneamente, promover a criação de memoriais, a igreja encontra um terreno propício para uma experiência de fé que transcende o vazio ritualista, almejando uma conexão mais profunda com as verdades espirituais, com as verdades de Deus. 

Num mundo marcado pela velocidade e efemeridade, a instauração de memoriais revela-se como um testemunho inestimável, resgatando a essência da celebração tanto a nível individual quanto coletivo. Diante das grandezas operadas pelo Senhor, é imprescindível celebrar e conceber meios que nos impeçam de esquecer Suas proezas. “Recordarei dos feitos do Senhor; certamente me lembrarei das tuas maravilhas da antiguidade” (Sl 77:11, NAA).


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Referências Bibliográficas

HILL-PERRY, Jackie. Santo, santo, santo: como a santidade de Deus nos leva a confiar nele. Tradução: Cecília Eller. 1.ed. São Paulo, SP: Mundo Cristão, 2022. 144 p. 

JOHNSON, Dru. Filosofia bíblica: a origem e aos aspectos distintivos da abordagem filosófica hebraica. Tradução: Igor Sabino. 1.ed. Rio de Janeiro, RJ: Thomas Nelson Brasil, 2022. 400 p. 

SCHAEFFER, Edith. Celebração do matrimônio. Trad. Elizabeth Portela. 1.ed. São Paulo, SP: Cultura Cristã, 2019. 96 p.