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Entre o cosmos e a subjetividade: em busca de respostas

Escrito por Cristina Valotta, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2023


A filosofia antiga deixou de se ocupar majoritariamente com o cosmos e na época medieval se dirigiu à subjetividade humana. Questões compartilhadas no coletivo da praça pública se deslocaram para a individualidade. Novos arranjos sociais e transformações da vida comunitária direcionaram o pensamento para a subjetividade. 

Perguntas antigas sobre como alcançar a paz e o prazer, o conceito de ética, o equilíbrio entre renúncias e conquistas, voltaram à agenda atual na discussão sobre identidade e nas queixas clínicas dos pacientes em sofrimento emocional. A busca medieval por respostas à subjetividade humana resultou em filosofias reducionistas e resultados insatisfatórios para a compreensão do sujeito.

Sobre isso, Paulo Dalgalarrondo, um dos colaboradores do livro Introdução à filosofia da psiquiatria (SPREMBERG, 2018), aponta que o estudo da ética do filósofo Epicuro pode ser útil à reflexão atual sobre o sofrimento humano e seu tratamento. Ele faz um tipo de apropriação do pensamento da antiguidade e busca inspiração para questões atuais.

Nesse sentido, pretendemos incluir nessa discussão outras filosofias helenistas para compreender os transtornos emocionais atuais. Diante disso, buscamos neste ensaio indicar a relação entre aspectos persistentes das filosofias helenistas e o sofrimento na contemporaneidade, apresentando uma nova direção para a compreensão do sujeito, já indicada por Aurélio Agostinho de Hipona1 no período medieval e reiterada por filosofias contemporâneas, como a de Herman Dooyeweerd2. Se a resposta não está na praça pública, da mesma maneira não está no isolamento do indivíduo e na sua subjetividade. Apontaremos o ajuste necessário para a jornada da compreensão da identidade e do sofrimento humanos.

1. Filosofias helenistas e transtornos emocionais

As filosofias helenistas, datadas do quarto século a.C., derivam da fusão entre as culturas grega e oriental, explorando questões sobre a ética e a felicidade. Buscavam a ataraxia3, faziam diálogos com os pré-socráticos e se apresentavam predominantemente autárquicas e imanentes4. Nesse sentido, demonstraremos que uma breve descrição e histórico das propostas apresentadas pelo epicurismo, pelo cinismo, pelo estoicismo e o ceticismo apontam para o discurso atual do indivíduo com transtorno emocional.

1.1. Epicurismo

O objetivo da filosofia de Epicuro é possibilitar a felicidade e extinguir o medo da morte, maior obstáculo à tranquilidade, adotando uma epistemologia pela experiência sensorial e prática no cotidiano. Seu fundador passou a residir em Atenas em 306 a.C., estudou sob orientação de um seguidor de Demócrito5 e fundou mais de uma escola nas ilhas gregas. Entre seus seguidores no Jardim, havia mulheres e escravos que viviam isolados e alimentavam-se de maneira moderada e simples (KENNY, 2011, p. 125).

Epicuro acreditava no prazer como o começo e o fim da vida feliz. Alimento, bebida e sexo seriam prazeres inferiores e intermináveis, porque a satisfação deles traz uma renovação do desejo. Por isso, o filósofo propunha os prazeres calmos, como a amizade (KENNY, 2011, p. 126). A busca por riqueza e poder serviria apenas para adiar a morte. O epicurismo argumenta que os temores afirmados pela religião, como o sofrimento após a morte, são contos de fada e a compreensão do mundo deve ser científica6. A alma é formada de átomos que se dispersam no momento da morte.

1.2. Cinismo

Por sua vez, o cinismo, um modo de vida que desprezava a riqueza e a propriedade convencional, baseado na crítica radical à cultura e à razão, buscava a autenticidade. Considerava o prazer, a riqueza e o poder como grandes ilusões e somente valorizava a natureza, tendo como alvo a dinâmica da vida dos animais.

1.3. Estoicismo

Os estoicos, à semelhança dos epicuristas, buscavam a tranquilidade, mas por um caminho diferente. Zenão de Chipre, fundador do estoicismo, migrou para Atenas em 313 a.C. e foi discípulo de Crates, o cínico. Zenão não aderiu ao cinismo nem abandonou o convívio social. Fundou sua própria escola com um currículo baseado em três disciplinas7: lógica, ética e física.

A concepção básica de Deus no estoicismo é uma matéria constituinte do cosmos, muito diferente das religiões bíblicas. O sistema estoico compreende o início e o fim como fogo, gerador e destruidor dos outros elementos, que faz a história se repetir como um ciclo. O sistema de concepção divina é denominado natureza, sendo o nosso objetivo na vida viver em comunhão com a natureza (KENNY, 2011, p. 130).

O sistema ético estoico estava baseado na submissão à natureza. A aceitação voluntária das leis da natureza, que constitui a virtude, é necessária e suficiente para a felicidade. Devido à sociedade ser natural para o ser humano, um homem bom, em sua busca de harmonia com a natureza, irá desempenhar algum papel na sociedade e cultivar as virtudes sociais (KENNY, 2011, p. 130).

1.4. Ceticismo

O ceticismo ensinava que nada poderia ser conhecido. Pirro de Elis, considerado o seu fundador, não escreveu nenhum manuscrito, mas seus discípulos trouxeram o ceticismo à Atenas, no século III a.C. Eles negavam princípios evidentes que pudessem servir de base científica e sustentavam discursos contra e a favor do mesmo assunto (KENNY, 2011, p. 131). Criticavam os estoicos por alegarem sua busca da verdade em impressões mentais incapazes de engano e defendiam que a probabilidade deveria ser o guia epistemológico para a vida (KENNY, 2011, p. 131).

Todavia, a busca epicurista da sabedoria simples e prática para a felicidade, a autenticidade e a vida natural dos cínicos, a aceitação estoica das leis da natureza e a probabilidade como fonte epistemológica do ceticismo foram propostas de jornadas insuficientes para a compreensão da subjetividade. A despeito da insistência do retorno na atualidade de pensamentos imanentistas e autárquicos, o homem não encontra satisfação nessa direção, porque  não controla a longo prazo suas emoções e não tem autonomia para compreender a própria identidade. 

As Escrituras sagradas apontam a formulação da identidade humana, composta por duas partes. A primeira é dada pelo Deus Criador, que escolheu criar o homem à sua imagem e semelhança. A segunda é uma construção da história individual, cumprindo o mandato que Deus conferiu ao homem na vida comunitária. 

Assim, a compreensão de si mesmo e o enfrentamento do sofrimento deve acontecer pelo resgate da identidade do indivíduo nos aspectos subjetivos e, concomitantemente, da sua participação comunitária. A rota escolhida pela filosofia medieval, do cosmos para a subjetividade, foi redirecionada pelo cristianismo, que mostrou outra argumentação para a compreensão de todas as coisas, tanto no cosmos como na subjetividade.

2. Vivendo em comunidade: voltando para o todo sem suprimir o individual

Na transição entre a filosofia antiga e a medieval, ocorreu uma migração das questões coletivas para as individuais. Agnes Heller, em seu livro O cotidiano e a história, discute a existência de contraposição entre o individual e o comunitário, valorizando a vida comunitária e o compartilhar da substância axiológica. A despeito da autora considerar que o desenvolvimento da individualidade está no compartilhar valores com o outro, posição discordante do motivo-base cristão da filosofia reformacional de Herman Dooyeweerd8, ressaltamos a importância que ela expressa sobre o pertencer a uma comunidade. O tipo de comunidade e o desenvolvimento da individualidade encontram-se em interação. A vida em comunidade implica em converter os interesses privados para impulsionar os interesses gerais. O interesse individual e a ilusão do desenvolvimento livre, fora de qualquer comunidade, levaram a experiências de solidão, infelicidade e sofrimento (HELLER, 2008, p. 104).

Por outro lado, a filosofia bíblica, baseada na epistemologia hebraica, defende que o conhecimento acontece nos rituais cotidianos, por um processo no qual fragmentos da experiência tomam forma e ganham sentido. Os acontecimentos e as experiências cotidianas são as fontes epistêmicas (JOHNSON, 2022, p. 343), enquanto, para Heller, o homem deve escolher a comunidade com base na explicitação da substância axiológica, ou seja, a possibilidade de compartilhar valores, ética, estética e aspectos espirituais (HELLER, 2008, p. 107).

Não obstante, o enfrentamento do sofrimento humano requer uma compreensão filosófica do sujeito e suas relações, ou seja, considerar os aspectos individuais e comunitários. A compreensão do sofrimento não depende exclusivamente da percepção sensorial e prática do indivíduo, como no cientificismo epicurista, nem da crítica à cultura e à razão, como no cinismo; também não pode ser fundamentada na simples aceitação estoica dos acontecimentos e nem na justificativa epistemológica do ceticismo.

Desse modo, a comunidade eclesiástica, como estratégia de auxílio para construção da identidade e dos valores, ao compartilhar valores axiológicos, pode auxiliar no enfrentamento do trauma emocional, porque através da compreensão cristã sobre a história individual, as situações adversas que trazem sofrimento são contextualizadas na compreensão do todo, numa filosofia cosmonômica.

A filosofia da Ideia Cosmonômica considera a necessidade da análise e qualificação dos aspectos da vida do sujeito, sem excluir a identidade da experiência vivida. Ela não diminui a importância do conhecimento especializado para a análise da situação, mas coloca o desafio, ao profissional de saúde cristão, de recompor a síntese da situação relatada pelo paciente, encaminhando propostas de saúde com implicações integrais e significativas para a vida. 

Portanto, a intervenção em saúde, tanto na elaboração do diagnóstico como na indicação do processo terapêutico, precisa considerar o ponto arquimediano e a origem da queixa apresentada. Dooyeweerd defende que essa busca deve ser transcendente, mais especificamente na esfera da religião. O profissional cristão encontrará o ponto de partida na revelação de Deus ao homem, sendo este — e não o das filosofias helenistas — o ponto fixo para compreensão do ego e da experiência do sofrimento. 


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1 Aurélio Agostinho de Hipona. Ver www.pt.wikipedia.org/wiki/Agostinho_de_Hipona.

2 Dooyeweerd faz uma crítica ao pensamento ocidental, onde a ciência escolhe um aspecto para intervir no fenômeno. Em contraposição, ele adota o método transcendental para explicar a experiência humana e compreender a relação entre a razão, a moral, o direito e a fé. Propõe a análise dos aspectos modais para discernir a realidade, na perspectiva da ordenança criacional de Deus. Compreende a fonte divina (princípio de todas as coisas) como geradora de significado para a realidade. O pensamento imanentista busca esse sentido em uma parte da experiência, trazendo reducionismos e elevando esse fragmento priorizado a uma condição divina. Ver DOOYEWEERD, H. No crepúsculo do pensamento ocidental: estudo sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. Tradução: Guilherme Vilela Ribeiro, Rodolfo Amorim, Carlos de Souza. São Paulo: Hagnos, 2010. 301 p.

3 Ataraxia: palavra de origem grega que significa ausência de preocupação. Esse conceito ocupou o centro do pensamento das filosofias helenistas. Para outras informações ver: www.pt.wikipedia.org/wiki/ataraxia.

4 DULCI, Pedro . AULA 3.1: Novos arranjos sociais e a primeira filosofia helenística. Invisible College. Disponível em www.hubinvisiblecollege.com.br. Acesso em 30/03/2023.

5 Sobre o atomismo de Demócrito, ver http://allchemy.iq.usp.br/metabolizando/beta/01/atomista.htm. Acesso em 16/03/2023.

6 A descrição científica é retirada do atomismo de Demócrito. As unidades básicas do mundo são átomos perenes, imutáveis e indivisíveis. Estes se movem no vácuo em velocidade constante e igual. Eventuais colisões formaram todas as coisas existentes.

7 O estoicismo compara a filosofia a um pomar: muro (a lógica); árvores (a física) e frutos (ética). Ver DULCI, Pedro. AULA 3.3: Zenão e as várias faces do estoicismo do Pórtico. Invisible College. Disponível em www.hubinvisiblecollege.com.br. Acesso em 30/03/2023.

8 A filosofia reformacional compreende a fonte divina (princípio de todas as coisas) como geradora de significado para a realidade. O pensamento imanentista busca esse sentido em uma parte da experiência, trazendo reducionismos e elevando esse fragmento priorizado a uma condição divina.


Referência Bibliográfica

MANUAIS MSD. 2023. Rahway, NJ, EUA. Disponível em: www.msdmanuals.com/pt-br/.  Acesso em 15/03/2023.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. 2023. Pelotas, RS. Disponível em: www.ufpel.edu.br. Acesso em 15/03/2023.

DOOYEWEERD, H. No crepúsculo do pensamento ocidental: estudo sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. Tradução: Guilherme Vilela Ribeiro, Rodolfo Amorim, Carlos de Souza. São Paulo: Hagnos, 2010. 301 p.

HELLER, A. O cotidiano e a história. Tradução: Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder. 8.ª edição, São Paulo: Paz e Terra, 2008. 158 p.

JOHNSON, D. Filosofia Bíblica: a origem e os aspectos distintivos da abordagem filosófica hebraica. Tradução: Igor Sabino. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil/ Invisible College, 2023. E-book, 543 p.

KENNY, A. Uma nova história da filosofia ocidental: filosofia antiga, volume I Ed Loyola Trad: Carlos Alberto Bárbaro. Revisão técnica Marcelo Perine, 2.ª edição, 2011, 395 p.

SPREMBERG, A. N., ARAÚJO, L.F.C. Introdução à Filosofia da Psiquiatria  In: Série Dissertatio Filosofia. Disponível em http://nepfil.ufpel.edu.br. Editora UFPel. Pelotas, 2018. 175 p