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O lugar do coração na interpretação bíblica

Escrito por Geúckson Delfino Carvalho, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2023


A Bíblia considera o coração como o centro da personalidade. Todas as ações da vida fluem dele, “o que o pensamos, sentimos e realizamos emana do coração. Dessa fonte jorra toda a expressão do nosso ser”1. Provérbios afirma isso quando diz que “de tudo o que se deve guardar, guarde bem o seu coração, porque dele procedem as fontes da vida”2.

Da mesma forma, as Escrituras ensinam que o coração é falso e enganador. Conforme as palavras do profeta Jeremias, “enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto. Quem poderá entendê-lo?”3. Muitas vezes, o coração chama o mal de bem, dando falsas aparências às coisas. Matthew Henry afirma que “é especialmente verdadeiro, a respeito de toda falsidade e maldade do coração, que todos os seus artifícios, desejos, são corrompidos”4.

Assim, como acreditar no coração e no que ele produz, principalmente a respeito da interpretação bíblica, uma vez que o intérprete é uma das exigências para ocorrer a interpretação, com um autor e um texto?5 O que esperar de uma exposição acerca das Escrituras, visto que o coração “é, por assim dizer, uma perpétua fábrica de ídolos”?6 Como confiar na interpretação bíblica humana?

Para respondermos a essas perguntas, primeiramente devemos entender que não existe neutralidade. Moisés Silva é categórico ao afirmar ser uma “ilusão pensar que podemos nos aproximar dos textos das Escrituras sem nenhum preconceito em nossa mente”7. Em outras palavras, é impossível interpretar a Bíblia sem pressuposições, pois o coração não se manifesta puro, mas em sistemas, modelos, métodos, paradigmas que carregamos e sem perceber importamos para o texto.

Dessa forma, Moisés Silva declara que “todo leitor traz uma estrutura interpretativa para dentro do texto, cada leitor gera um novo significado e, portanto, cria outro texto”8, gerando um novo significado. O problema aqui é que não há uma busca pelo verdadeiro significado do texto, mas, sim, imprimir ao texto bíblico um significado que ele não tem.

Herman Dooyeweerd chama essa pressuposição do coração de motivo básico religioso, afirmando ser de caráter comunal central e que governa o homem mesmo quando este não está consciente da sua verdadeira natureza e “se esse motivo básico é de caráter apóstata, ele distanciará o ego (coração) de sua Origem verdadeira (Deus)”9. Ou seja, um coração apóstata faz o intérprete bíblico dar ênfase no leitor e não mais na própria Bíblia.

Não cair nesse tipo de armadilha não é fácil, pois desde a queda no pecado o coração humano está em apostasia. Conforme Dooyweerd afirma, “o homem fechou seu coração e afastou-se da Palavra de Deus, dando ouvido à falsa ilusão de ser alguém em si mesmo, isto é, de ser igual a Deus, a imago Dei foi radicalmente obscurecida nele, e ele caiu vítima da morte espiritual”10.

Para uma boa interpretação da Revelação, o coração precisa de uma reorientação, submeter-se ao Criador, ao Deus da Revelação. Isso só ocorre por intermédio do Espírito Santo “que redireciona o coração humano, por meio da regeneração, e permite a ele compartilhar da plena renovação da criação e entrar um vez mais na comunhão com Deus”11 de forma a estar submisso à Palavra de Deus e prisioneiro de Jesus Cristo.

Isso é testificado pelo apóstolo Paulo em sua carta aos Romanos quando ele diz que “graças a Deus que, tendo sido escravos do pecado, vocês vieram a obedecer de coração à forma de doutrina a que foram entregues”12. Em outras palavras, é Cristo, através do Espírito Santo, quem imprime nos corações o verdadeiro significado da sua Palavra.

Desta forma, é preciso entender que determinar o significado de um texto não é fácil, pois todos os pressupostos do coração vêm à tona quando lidamos com a interpretação de qualquer texto e no que se refere às Escrituras. Seu caráter divino exige de nós, além de treinamento especial, um coração que esteja realmente aberto para o Espírito Santo, de forma a encontrar-se cativo a Palavra de Deus.


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1 LOPES, Hernandes Dias. Provérbios: manual de sabedoria para a vida. São Paulo: Hagnos, 2016, p. 95.

2 Provérbios 4.23 (NAA).

3 Jeremias 17.9 (NAA).

4 HENRY, Matthew. Comentário Bíblico Antigo Testamento: Isaías a Malaquias. Tradução de Valdemar Kroker, Haroldo Jazen, Degmar Ribas Júnior. Rio de Janeiro: CPAD, 2010, p. 434.

5 C. KAISER, Walter; SILVA, Moisés. Introdução à hermenêutica bíblica. Tradução de Paulo C.N. dos Santos, Tarcízio J.F. de Carvalho e Susana Klassen. São Paulo:Cultura Cristã, 2014. Edição do Kindle, p. 229.

6 CALVINO, João. As Institutas. Tradução de Waldyr Carvalho Luz. São Paulo: Cultura Cristã, 2022, Volume único. p. 121.

7 C. KAISER, Walter; SILVA, Moisés. op. cit., p. 229.

8 Ibid., p. 235.

9 DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental. Tradução de Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza. Brasília, DF: Monergismo, 2018, n.p. Edição do Kindle. 

10  Ibid., n.p.

11  KALSBEEK, L. Contornos da filosofia cristã. Trad. Rodrigo Amorim de Souza. São Paulo: Cultura Cristã, 2015, p. 58.

12 Romanos 6.17 (NAA).


Referências bibliográficas

CALVINO, João. As institutas. Tradução de Waldyr Carvalho Luz. São Paulo: Cultura Cristã, 2022, Volume único. 1623 p.

C. KAISER, Walter; SILVA, Moisés. Introdução à hermenêutica bíblica. Tradução de Paulo C. N. dos Santos, Tarcízio J. F. de Carvalho e Susana Klassen. São Paulo: Cultura Cristã, 2014. 229 p. Edição do Kindle.

DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental. Tradução de Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza. Brasília, DF: Monergismo, 2018, n.p. Edição do Kindle. 

HENRY, Matthew. Comentário Bíblico Antigo Testamento: Isaías a Malaquias. Tradução de Valdemar Kroker, Haroldo Jazen, Degmar Ribas Júnior. Rio de Janeiro: CPAD, 2010. 1252 p.

KALSBEEK, L. Contornos da filosofia cristã. Trad. Rodrigo Amorim de Souza. São Paulo: Cultura Cristã, 2015. 288 p.

LOPES, Hernandes Dias. Provérbios: manual de sabedoria para a vida. São Paulo: Hagnos, 2016. 648 p.