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Dúvida: a antessala da certeza

Escrito por Annie Mucelini, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2023


Introdução

Muita tinta foi gasta em tentativas de lidar com “tempos de incerteza”. Em 1849, Mary Russell Mitford escreveu a peça Tempos de Incerteza: um drama em quatro atos. A peça tratava sobre dificuldades financeiras e incertezas quanto ao futuro do ponto de vista de uma família de classe média no interior da Inglaterra. Olhando para trás, aqueles tempos não pareciam tão incertos, mas bastante previsíveis. 

É fácil dizer depois que a linha do tempo foi definida. Todavia, o presente reclama cada vez maior incerteza quanto ao futuro. As instabilidades são maiores, as mudanças são mais rápidas. Não sabemos quais serão as profissões da próxima geração. Cada avanço tecnológico traz consigo uma dose a mais de instabilidade, mudança e incerteza. 

Curiosamente, a humanidade tem buscado previsibilidade no caminho da ciência e da tecnologia. Cada vez mais cética, já não se fala em certezas, mas em minimizar a dúvida, como se a certeza fosse um alvo reconhecidamente inalcançável. A famosa frase “só sei que nada sei” é atribuída ao filósofo Sócrates, que viveu cinco séculos antes de Cristo. O reconhecimento da sua ignorância é tido como um atributo que expressa humildade intelectual e abre as portas ao aprendizado.

O aumento da instabilidade e da incerteza e a frustração com a falta de respostas definitivas do racionalismo fazem da dúvida a única certeza dessa geração. Este é o ponto explorado no primeiro tópico deste artigo. Na sequência, falaremos sobre a definição de certeza de Herman Bavinck. O artigo termina com diferentes abordagens à dúvida na caminhada cristã, buscando, nas reflexões de Bavinck, o tratamento adequado para aqueles que têm dúvidas a respeito da fé.

A geração que desconfia

Entre fake news – notícias falsas fabricadas para manipular e influenciar o público – e inteligências artificiais que fabricam textos, imagens e até vídeos que parecem genuínos, os tempos de incerteza não falam mais sobre o futuro, mas sobre o presente. Aquilo que os nossos olhos veem precisa ser recebido com desconfiança porque a mentira pode estar muito bem-vestida.

Tamanha dificuldade em distinguir entre o verdadeiro e o falso gera uma crise de confiança. As informações precisam vir de fontes confiáveis, mas até essas fontes precisam constantemente provar e renovar a sua credibilidade com o público-alvo. Consequentemente, isso afeta como os jovens se relacionam com a igreja.

Um estudo publicado em 2016 elencou seis razões por que os jovens abandonam a fé1. Todos esses pontos, de certa forma, orbitam o tema da incerteza (falta de convicção doutrinária, incapacidade de dialogar com a ciência e a cultura etc.) e o sexto trata especificamente sobre isso: a Igreja é hostil com aqueles que manifestam dúvidas. Quando a conversão religiosa é vista como uma súbita e definitiva mudança, tal como a descrita por Bavinck a respeito de John Wesley2, qualquer expressão de dúvida pode ser tomada como um vacilo da fé, ou ausência total de conversão.

No entanto, se a conversão ao cristianismo não carrega todas as respostas sobre a vida, o universo e tudo mais à vida do crente, ainda haverá perguntas a serem feitas. Se há perguntas, há dúvidas. Neste ponto, é importante discernir que a certeza da fé não é uma certeza científica, embora seja plenamente racional. Para isso, vejamos o que Herman Bavinck tem a dizer.

A certeza de Bavinck

Herman Bavinck começa a discorrer quanto à certeza traçando a diferença com relação à verdade:

A verdade é a concordância entre pensamento e realidade […] uma relação entre os conteúdos de nossa consciência e o objeto de nosso conhecimento. [… Aquela,] todavia, não é uma relação, mas uma capacidade, uma qualidade, um estado do sujeito cognoscente.3

A pessoa pode assumir diversos estados de consciência em relação a objetos de conhecimento, proposições, afirmações. Ela pode ser indiferente ou ignorante, pode ter dúvida, confiança, expectativa ou certeza. A certeza existe quando “o espírito encontra repouso absoluto em seu objeto de conhecimento”4. O estado de certeza pode ser atingido a partir da experimentação, da racionalização, da percepção dos sentidos, da dedução lógica; mas nem todo objeto de conhecimento se submete à prova científica. A certeza da fé não se alcança por provas cabais; antes, as provas são produzidas a partir da convicção. Segundo Bavinck, essas crenças não se sustentam pela demonstração científica, não são produtos do entendimento ou da vontade, mas têm raízes na moralidade, nos compromissos do coração, como parte do próprio ser.

A fé vem pelo ouvir, e o ouvir pela Revelação. A certeza da fé é produzida pela Revelação Divina e não pode ser obtida por outros meios artificiais ou autogerados. Mas se a certeza é repousar, essa paz corresponde à condição normal do ser humano, criado para repousar na verdade divina. Nesse sentido, a dúvida se apresenta como um estado decaído, uma doença. Não há valor na dúvida em si. A falsa modéstia das mentes abertas demais para firmar qualquer convicção expõe o vazio em que se fundamenta a sua vida. Não há descanso em uma casa construída sobre a areia, ainda mais quando os ventos de mudança são frequentes e imprevisíveis. Diante de tudo isso, a dúvida permanece um estado possível (e muito frequente) nesse mundo de incertezas. A jornada do discípulo está cheia delas, e o trabalho da apologética e do discipulado envolve colocar a dúvida em seu devido lugar.

Entre revelação e convicção

Para Bavinck, a dúvida é um mal necessário; como uma febre que faz o corpo padecer, mas também cria o ambiente para que as defesas do corpo prosperem sobre a doença. A dúvida não pode ser um estado permanente, um lugar onde habitar, mas pode ser útil para acessar convicções mais profundas. A dúvida pode ser um convite ao conhecimento, a sala de entrada para o lugar de descanso. Um pouco apertada e desconfortável o bastante para não permitir a dormência.

 Nesse sentido, o livro A certeza da fé termina falando sobre o caminho para a certeza. Até chegar nesse estado, haverá dúvida. Não porque a dúvida é natural, mas porque ela faz parte de um mundo caído. Neste mundo caído em que há dúvidas, temos também a Revelação. Bavinck nos desafia a deixar o lugar conhecido da incerteza e adquirirmos convicção, alimentando-nos das promessas encontradas na divina Revelação.

Conclusão

As Escrituras não escondem os pecados, os vacilos e as dúvidas dos servos de Deus. O exemplo mais lembrado é do discípulo Tomé, que duvidou do Cristo ressurreto até ver e tocar o seu corpo glorificado. No entanto, ele não foi o único a duvidar. O evangelho de Marcos relata Maria Madalena contando aos discípulos sobre a ressurreição do Senhor, mas eles não creram. Depois, Jesus apareceu a dois deles no caminho, que relataram aos outros, mas estes também não creram. O verso 14 do capítulo 16 conta a repreensão de Jesus quando apareceu aos onze remanescentes, censurando a incredulidade e a dureza de coração. Todos foram “Tomé”. Apesar disso, foram comissionados e enviados a proclamar esta mensagem a outros que não teriam nada além do seu relato, a Revelação divina.

Abraão e Sara duvidaram da promessa, buscaram vias alternativas para estabelecer o seu legado, riram e tentaram negociar com Deus. No entanto, a sua história não foi marcada pela incredulidade, mas pela crença. Abraão teve dúvidas, mas não esperou o nascimento de Isaque para circuncidar a todos de sua casa. As promessas de Deus o levaram da dúvida à certeza, e assim ele foi justificado pela fé na obra salvadora que haveria de acontecer.

Herman Bavinck descreve a passagem da dúvida vacilante à certeza da salvação:

Enquanto não estivermos seguros e firmes em nossa fé e ainda duvidarmos, continuaremos a experimentar ansiedade e medo, e não teremos ousadia e a confiança como filhos de Deus […] Mas se, em fé, apegarmo-nos imediatamente às promessas de Deus e assumir nosso posicionamento em sua rica graça, então somos seus filhos e recebemos o Espírito de adoção.5

As dúvidas dos jovens não devem ser recebidas como afronta a Deus, ou com a impaciência de quem esperava não precisar mais ensinar. A fé vem pelo ouvir, e ouvir a Palavra de Deus. Aqueles que têm dúvidas precisam ser encharcados da Revelação, a fim de mergulhar nas promessas e na graça divina. Não nos cansemos de compartilhar a Palavra de Deus aos que duvidam; são eles os que precisam da certeza da fé.


1 MAZZINGHY, Áquila. Seis razões por que jovens cristãos abandonam a igreja. Cristãos na Ciência, [S.l.], 13 nov. 2018. Disponível em: https://www.cristaosnaciencia.org.br/seis-razoes-por-que-jovens-cristaos-abandonam-a-igreja/. Acesso em 30.03.2023

2 BAVINCK, Herman. A certeza da fé. Trad. Fabrício Tavares de Moraes. Brasília (DF): Monergismo, 2018, p. 61.

3 Ibid., p. 38-39.

4 Ibid., p. 39.

5 Ibid., p. 100.


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Referências Bibliográficas

BAVINCK, Herman. A certeza da fé. Trad. Fabrício Tavares de Moraes. Brasília (DF): Monergismo, 2018. 124 p.

BAVINCK, Herman. A filosofia da revelação. Trad. Fabrício Tavares de Moraes. Brasília (DF): Monergismo, 2019. 342 p.

BAVINCK, Herman. As maravilhas de Deus: instrução na religião cristã de acordo com a confissão reformada. Trad. David Brum Soares. São Paulo: Pilgrim Serviços e Aplicações; Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021. 736 p.

BAVINCK, Herman. Dogmática reformada: prolegômenos, volume 1. Trad. Vagner Barbosa. São Paulo: Cultura Cristã, 2012. 672 p.

BÍBLIA, Português. A Bíblia Sagrada: Antigo e Novo Testamento. Nova Versão Internacional (NVI). Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2018. 1664 p.

MAZZINGHY, Áquila. Seis razões por que jovens cristãos abandonam a igreja. Cristãos na Ciência, [S.l.], 13 nov. 2018. Disponível em: https://www.cristaosnaciencia.org.br/seis-razoes-por-que-jovens-cristaos-abandonam-a-igreja/. Acesso em 30.03.2023