Escrito por Hudson Araujo, estudante do Programa de Tutoria – Turma Avançada 2021
INTRODUÇÃO
Diante do questionamento sobre a percepção da realidade, Herman Bavinck aponta a dependência de todos os humanos. Por outro lado, vemos no filme “Estou Pensando em Acabar com Tudo” um exemplo do que acontece quando o ser humano busca ser autônomo do próprio pensamento, gerando desumanização.
O PROBLEMA DA PERCEPÇÃO DA REALIDADE
O problema da verdade é uma das questões mais antigas e recorrentes em toda a filosofia. Afinal, como podemos saber o que é real? Como saber os limites de nossa mente? Essa certamente não é uma pergunta fácil de ser respondida. Porém, temos contribuições o suficiente sobre o tema para traçar alguns caminhos. Segundo Herman Bavinck, importante teólogo do século XX, um ponto central para essa questão é a autoconsciência, ou seja, nossa percepção existencial. Ele diz:
“O único caminho que nos capacita a alcançar a realidade é o caminho da autoconsciência. Eis a verdade do idealismo, isto é, que a mente humana (ou, em outras palavras, a sensação e a representação) é a base e princípio de todo conhecimento.” (BAVINCK, 2019, p. 106)
Para o teólogo, quem entendeu essa questão muito bem foi o idealismo alemão, linha filosófica que valoriza o raciocínio e percepção como principal porta de entrada para a realidade. Porém, para o autor: “o idealismo erra quando, a partir desse fato introverso (…) chega à conclusão de que a percepção é um ato puramente imanente, e que, consequentemente, o objeto percebido deve ser, ele mesmo, imanente à mente.” (BAVINCK, 2019 p. 106) Portanto, para o idealismo, a percepção não é apenas porta de entrada para a realidade, mas a própria realidade. Mesmo essa percepção sendo, nas palavras de Bavinck, errada, podemos ver resquícios dessa filosofia na cultura até hoje.
“ESTOU PENSANDO EM ACABAR COM TUDO” E A DEPENDÊNCIA DA MENTE
Lançado em 2020 e dirigido pelo diretor Charlie Kaufman, Estou pensando em acabar com tudo incorpora muito bem o pensamento descrito anteriormente. Em uma sinopse básica, “O filme adapta o romance de estreia do canadense Iain Reid, sobre uma jovem que depois de seis ou sete semanas de relação com Jake já cogita seriamente terminar o namoro, mas ainda assim aceita viajar no meio de uma tempestade de neve para conhecer a fazenda dos sogros” (HESSEL).
Apesar da premissa ter um ponto de partida baseado no comum, o filme pretende ser uma jornada dentro da mente de seus personagens. Em uma das primeiras falas, logo no início, vemos a afirmação: “às vezes, o pensamento está mais perto da verdade, da realidade, do que uma ação.” Fica claro o ponto de partida do filme: a percepção e a mente como construtores da própria realidade. Outro fator muito importante para o posicionamento filosófico do filme é a crítica, ironicamente, sobre o controle e dano que artefatos culturais, como filmes e livros, fazem em nossa percepção da realidade. No filme, podemos ver que “Jake, cujo quarto da infância está repleto de livros, DVDs e outros detritos de sua juventude, absorveu tão completamente a mídia que o cerca que isto parece governar todos os aspectos de sua realidade.” (KOHN). Essa não é apenas uma das principais críticas e afirmações do filme, nossa dependência atual da mídia como um todo, mas também é o que move e constrói toda a história e a maioria de suas cenas.
Curiosamente, isso ecoa e dialoga com a visão de Bavinck sobre a dependência intrínseca do homem. Segundo ele: “O âmago de nossa autoconsciência não é a autonomia (…) mas a dependência.” (BAVINCK, 2019 p. 114). Desta forma, o teólogo entende que nossa autoconsciência, nossa percepção e capacidade de ver o mundo, sempre estará dependente de algo além de nós.
Já para o filme, essa dependência inevitável não fica tão clara. Ele critica o que as mídias da cultura popular fazem com a mente humana, indo de produtos ditos como “artísticos” até para materiais publicitários; todos esses itens moldam nossa percepção e autoconsciência. O filme não nos aponta uma contraproposta para essa realidade, apenas a denuncia. Como o próprio autor do filme, Kaufman, disse para Indiewire: “Este filme trata da experiência de alguém que absorve as coisas que vê e como elas se tornam parte de sua psique.” Porém, qual seria a resposta em uma perspectiva cristã para essa questão? Bavinck pode nos ajudar nisso.
A IMPORTÂNCIA E A CENTRALIDADE DA REVELAÇÃO
Já ficou muito claro que, para Bavinck, a dependência do ser humano para a percepção da realidade é algo óbvio. Qual seria a resposta, então? Transcender nossa capacidade para algum tipo de evolução? Para o autor: “o segredo da mente não é a evolução, mas a revelação” (BAVINCK, 2019, p. 116).
Para Bavinck, se a percepção é a forma de entendermos a realidade e, por causa disso, somos dependentes, só entenderemos a realidade como ela é se aceitarmos nossa dependência de algo maior do que nós. Isso faz com que “nos sentimos dependentes de tudo ao nosso redor; não estamos sozinhos” (BAVINCK, 2019, p. 114).
E isso nos leva a uma revelação, ou seja: alguém que se revela para nós, nos mostrando e afirmando coisas que não saberíamos sozinhos. “A revelação é o desvelamento do (…) mistério de Deus” (BAVINCK, 2019, p. 76).
Mas o que essa percepção se diferencia de um deus distante do Deus que encontramos nas Escrituras? Para fazer essa diferenciação, Bavinck faz algumas distinções importantes de revelação. A primeira delas é a da própria consciência. Ou seja: a autoconsciência só nos é acessível por que nos foi dada (ou revelada) por Deus. Só sabemos quem somos e onde estamos porque Deus nos deu essa possibilidade epistemológica (o saber sobre o próprio saber). Segundo ele: “a realidade do nosso ego é revelada a nós, independente de nossa cooperação e à parte de nossa vontade” (BAVINCK, 2019, p. 116).
Outros dois tipos de revelação muito importantes, são a revelação especial (o evangelho e as Escrituras) e a revelação geral (a natureza e todas as coisas criadas). Então, se percebemos algo da realidade, isso vem da revelação de Deus para nós. “A revelação geral conduz à revelação especial, que, por seu turno, aponta novamente para a primeira” (BAVINCK, 2019, p. 78).
Essa é a percepção de Bavinck: só podemos perceber a realidade através da autoconsciência. Porém, a autoconsciência só nos é dada através da Revelação de Deus, assim como toda a realidade, como a natureza e o próprio evangelho, nos fazendo dependentes.
AS CONSEQUÊNCIAS DA NEGAÇÃO DA REVELAÇÃO
Porém, o que acontece quando buscamos ser autônomos, como a escola filosófica do idealismo? Bavinck responde que “se o homem repudia sua dependência, afastando-se dela, ele não se torna independente, pelo contrário, sua dependência apenas muda de natureza, perdendo seu caráter imortal e racional e tornando-se subserviente de uma simplória mentalidade” (BAVINCK, 2019, p. 124).
Então, segundo o teólogo holandês, uma tentativa de autonomia da mente irá resultar não em uma ascensão do homem (evolução), mas uma queda em suas capacidades humanas mais básicas (bestialidade). “O homem, tornando-se pecador, não ascende, mas cai; não se torna como Deus, mas como os animais.” (BAVINCK, 2019, p.124) Curiosamente, esta é exatamente a imagem que o filme nos traz sobre alguém que decidiu buscar sua autonomia:
“A imagem grotesca de um porco gordo, aparentemente saudável, mas com o ventre roído por vermes se contorcendo, é algo que os personagens do filme mencionam repetidamente. Parece ser um incidente traumatizante da infância do zelador, mas também pode representar seu estado mental decadente.” (PLACIDO)
O personagem que vemos em “Estou Pensando em Acabar com Tudo”, acreditava que seu pensamento era capaz de definir sua própria realidade. O caminho que isso o leva é de que, na jornada da autonomia, o personagem acabou sendo dependente de algo, mesmo negando a revelação. No caso dele, foi a mídia que moldou o seu senso de realidade, o que causou diversas limitações pessoais e o levou a ver a si mesmo na figura de um porco. Ele “passou sua vida sendo lentamente consumido pela depressão, ansiedade e um desespero opressor; ele é aquele porco, aparentemente feliz e saudável, com o ventre podre que ninguém quer ver” (PLACIDO).
Não à toa esta é a percepção bíblica de quem decide seguir seu próprio caminho, sem depender da revelação de Deus. Foi o que aconteceu com Nabucodonosor em Daniel. “Seja mudado o seu coração, para que não seja mais coração de homem, e lhe seja dado coração de animal”. (Daniel 4:16, tradução: Almeida Corrigida Fiel) Esta foi uma ação de Deus para mostrar que este era o estado do Nabucodonosor distante de Deus.
Portanto, o que podemos perceber não é apenas a incapacidade do ser humano de ser autônomo, mas a importância e centralidade da revelação para entender a realidade. Com a revelação de Deus (pessoal, geral e especial), não apenas somos capazes de entender melhor o que é verdadeiro (nós mesmos, nosso ambiente e Deus), como também nos traz a possibilidade de sermos resgatados de nossa condição caída de pecadores através da mensagem do Evangelho, entrando na grande narrativa deixada por nós nas Escrituras.
“Aquilo que nem a natureza, nem a história, nem mente, nem coração, nem ciência nem arte podem nos ensinar, isto nos é dado a conhecer – a vontade fixa e inalterável de Deus em resgatar o mundo e salvar pecadores” (BAVINCK, 2019, p. 76).
CONCLUSÃO
Sobre a questão da autoconsciência, Bavinck se destaca na discussão: através de um argumento bíblico, podemos perceber que a revelação de Deus e o Evangelho é a principal ferramenta para entendermos a realidade como um todo. Somos completamente dependentes de Deus nos níveis mais básicos da existência. Diante disso, nos resta a humildade de aceitar, buscar e nos encantar com a revelação, seja ela a revelação especial, natural ou pessoal.
Acreditamos que o estudo teológico é fundamental para todo cristão, e não apenas para pastores ou líderes. Afinal, a teologia nos ajuda a seguir a Cristo em todos os aspectos da nossa vida!
No Loop, nossa equipe oferece suporte pedagógico e trilhas de estudo personalizadas para seus interesses, permitindo que você aprofunde seu conhecimento teológico e lide de forma segura com as situações do dia a dia.
REFERÊNCIAS
BAVINCK, Herman. A filosofia da revelação, tradução e notas de Fabrício Tavares de Moraes – Brasília, DF, Editora Monergismo 2019.
HESSEL, Marcelo. Estou pensando em acabar com tudo. Charlie Kaufman tateia um olhar feminino no seu mundo de vaidades e noias masculinas. Omelete. Disponível em:https://www.omelete.com.br/netflix/criticas/estou-pensando-em-acabar-com-tudo Acesso em: 27 Mar. 2021.
KOHN, Eric. Charlie Kaufman’s Guide to ‘I’m Thinking of Ending Things’: The Director Explains Its Mysteries. Indiewire. Disponível em:https://www.indiewire.com/2020/09/charlie-kaufman-explains-im-thinking-of-ending-things-1234584492/. Acesso em: 27 Mar. 2021.
PLACIDO, Dani. What Is Netflix’s ‘I’m Thinking Of Ending Things’ Really About? Forbes. Disponível em:
https://www.forbes.com/sites/danidiplacido/2020/09/09/what-is-netflixs-im-thinking-of-ending-things-really-about/?sh=6e2c67741246. Acesso em: 27 Mar. 2021.
1 comment
Lucas+Ferreira+Rodrigues
Hudson Araujo, você me fez ficar com a vontade de assistir de novo esse filme. Que reflexão interessante. Parabéns!