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Ética nos negócios: precisamos de direção normativa

Artigo escrito por Paula Sales, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2023


As empresas têm atuado como agentes econômicos cujo objetivo é vender, lucrar e ampliar a participação no mercado, muitas vezes às custas de prejuízos sociais e ambientais. O rompimento da barragem da Vale em Brumadinho-MG, em 2019, que deixou o Brasil chocado, é um exemplo das consequências da atividade humana que gera emprego, renda e crescimento por um lado, mas causa prejuízos irreparáveis por outro, como a morte de 270 pessoas neste caso (G1, 2023)1. Além das mortes, o rompimento da estrutura lançou na bacia do Rio Paraopeba rejeitos de mineração, ocasionando contaminação e interrupção da pesca de espécies nativas no local. Esse é um tipo de acontecimento que intensifica o debate em torno do desenvolvimento sustentável, dos limites das corporações e do cenário futuro do planeta no caso dos agentes humanos seguirem na direção atual em sua atuação de transformação e exploração do meio ambiente.

A configuração da sociedade de consumo conta com elementos de superprodução de bens, por um lado, e impulsos de acumulação e descarte por outro. As relações humanas tornaram-se secundárias diante do desenvolvimento dos tentáculos da esfera econômica que tocam e reconfiguram todos os outros aspectos da vida: família, religião, política, artes etc. Castillo (et al., 2018) aponta que as pesquisas nas áreas de Design e Sustentabilidade, por exemplo, voltam seus esforços para o desenvolvimento dos processos e produtos industriais, de forma que sejam mais limpos e econômicos. A lógica, nesses casos, mesmo tentando adotar uma postura mais sustentável, continua apontando para o anseio moderno e industrial de produção e consumo. Parece haver aqui algo anterior à própria racionalidade que dirige os esforços da pesquisa e do desenvolvimento visando uma sociedade mais consciente e responsável.

A lógica do consumo e do acúmulo tem como suporte não apenas a agressividade das campanhas publicitárias, que quase sempre levam a culpa pelo comportamento do consumidor. Um elemento constituinte da modernidade que queremos explorar, cuja influência contribuiu para o enraizamento do niilismo como filosofia dominante e para o desencantamento diante dos grandes projetos de sociedade, é a ontologia autônoma moderna. Fazer de si quem se quer ser é uma das promessas do mercado de consumo. Embora essa ideia seja trabalhada sempre de maneira positiva pelas marcas, desde comerciais de carros até campanhas ativistas, a responsabilidade pela própria vida remete à angústia de viver e fazer escolhas, de construir seu projeto existencial, tendo sempre diante de si a morte inevitável, sua finitude e seu caráter indeterminado (SILVA, 2020). O mercado de consumo oferece sentido, significado e uma pitada de eternidade ao vácuo existencial do homem em desespero. Desse modo, a produção de bens e serviços, na configuração atual de mercado, busca, mais do que gerar desejos e satisfazê-los, explorar constante e ininterruptamente o vácuo existencial provocado por uma sociedade que cedeu à esfera econômica o serviço de promover os bens que a esfera da fé, da família e da política deveriam promover.

O início da modernidade, marcado pelas grandes utopias dos projetos sociais e conquistas territoriais, cedeu lugar, na alta modernidade, aos grandes projetos sociais e às conquistas individuais (KUIPER, 2020, n.p.). A alta modernidade é marcada pelo poderio do mercado que faz convergir para si as demais esferas de soberania da sociedade, inclusive, o projeto de identidade humana. Na prática, isto significou que o homem moderno abandonou as expectativas de construir uma sociedade, um futuro, uma realidade e um grande projeto nacional, abandonou as utopias e metanarrativas e adotou o projeto de autoconstrução. Unir-se a outros a fim de construir uma torre que alcance o céu é, para o homem moderno, um projeto sem sentido e pouco atrativo.

Nesse cenário se vê, por um lado, preocupações com o meio ambiente e o desvelamento dos riscos da produção industrial acelerada, com marcos históricos importantes que movimentaram a academia, discussões populares e líderes mundiais falando sobre o tema da sustentabilidade (BEURON et. al, 2023). Por outro lado, as práticas de marketing seguem produzindo e reproduzindo promessas de construção da identidade humana e dos projetos pessoais de sucesso.

Ora, por que grandes desastres provocados por grandes irresponsabilidades humanas, como foi o caso da barragem em Brumadinho-MG, e a vasta produção acadêmica sobre desenvolvimento sustentável que busca conscientizar e gerar propostas de produção e consumo responsáveis, não são capazes de mover o navio da sociedade moderna que continua rumando para os projetos pessoais pelo caminho do consumo?

Em resumo, o que profissionais da Economia, Administração e Engenharias aprendem desde suas formações até sua entrada no mercado de trabalho, a partir do “discipulado” que recebem dos chefes e dos gurus das suas áreas, é que a eficácia e a eficiência são os norteadores das decisões nos negócios. Desse modo, as práticas de mercado operam sujeitas aos acordos que empresas e consumidores estabelecem entre si, tendo como norma o utilitarismo e o pragmatismo. Abordando a produção de alimentos super processados nos Estados Unidos, Kotler (2015) aponta isso da seguinte maneira: “Enquanto acreditarmos na liberdade de produção, não poderemos dizer a essas companhias o que devem produzir” (KOTLER, 2015, n.p.). Ou seja, enquanto princípio norteador de escolhas de produção, as organizações estão sujeitas ao gosto do cliente a fim de produzir seus bens. Na prática, o que se vê em termos de produção de tecnologia, criação de produtos e desenvolvimento de serviços é um pano de fundo empobrecido e reducionista no que diz respeito à realidade, pois os aspectos da ética, da justiça, da estética e do social são todos canibalizados pelos aspectos técnicos e econômicos2.

A teoria dos stakeholders procura identificar e reconhecer os mais variados agentes afetados pelos negócios e aponta para a importância de se compreender e coordenar os interesses de todos eles. Esse movimento parece levar as organizações a um senso mais apurado de responsabilidade com seu entorno, além de contribuir com a perspectiva de que relacionamentos duradouros de confiança tendem a produzir resultados melhores a longo prazo3. De alguma maneira, essa teoria cutuca os agentes econômicos em sua tendência ensimesmada, levando-os a pelo menos considerar outros entes, instituições ou indivíduos direta e indiretamente afetados por suas atividades empresariais. O que parece escapar a essa teoria é justamente o fator direcional e normativo. Tal falta gera alguns problemas de análise e coordenação dos interesses dos stakeholders, como, por exemplo, a exploração de trabalho escravo em regiões pobres ou a exploração de recursos naturais em áreas sem fiscalização. Em ambos os casos, na falta de um Estado forte, a exploração do Mercado tende a acontecer de maneira livre, pois não há interesse de stakeholder algum para coordenar, não há a quem prestar contas. No entanto, havendo um fator normativo claro, as empresas podem trabalhar na transformação da realidade produzindo bens e serviços, fluindo suas decisões e estratégias a partir de um ambiente de reconhecimento da realidade, suas normas e seus núcleos de sentido variados. Estes três últimos fatores são anteriores ao conhecimento dos stakeholders e seus interesses, pois toda coordenação destes será efetuada debaixo da observação das normas. Sem as normas, o equilíbrio das relações e interesses recairá sempre em injustiça, pois os agentes de decisão precisam eleger algum aspecto da realidade como absoluto diante dos demais a fim de exercerem algum juízo. Apenas o reconhecimento da Sabedoria Criadora que está acima da realidade pode pôr todos os elementos da natureza em justa relação uns com os outros, promovendo, assim, a satisfação dos interesses de todos, que é o reconhecimento de cada núcleo próprio de sentido.

É difícil superestimar a importância do estudo da ética. O estilo de vida moderno trouxe novas situações que exigem uma resposta apropriada ao seu próprio tempo. À medida que a sociedade vai ajustando seus modos de vida e recriando seus ritos, modos de operação e de interação social, novos conflitos e dilemas surgem. Eis, por isso, a necessidade de oxigenar a discussão no campo da ética, procurando respostas apropriadas ao tempo presente (KUEPERS et. al., 2023). De maneira nenhuma isso significa que podemos prescindir da fé cristã ou da revelação bíblica na ausência de discussões diretas sobre os mais novos dilemas da humanidade. Para lidar com essa questão, o teólogo Kevin Vanhoozer discute a possibilidade real de agirmos segundo Cristo nos diversos contextos temporais a partir da aplicação criativa e fiel das Escrituras4

Agir no mundo enquanto agentes que operam negócios possui um efeito de mão dupla, pois cada ação sobre a realidade expõe o significado atribuído à própria realidade e constrói seu significado5. Para os tomadores de decisão, principalmente, isso deve saltar aos olhos por se tratar de uma responsabilidade latente que consiste em criar cultura e abrir significados que, antes da ação intencional humana, estavam escondidos na natureza. Essa atividade intencional, quando considera a pluralidade da realidade, seus aspectos modais e direções normativas, age de acordo com a verdade, produz bens que beneficiam a humanidade e ajudam a fazer prosperar a vida humana. Dito de outra maneira, agir no mundo a partir da direção normativa é ter uma prática integral e coerente, pois só é possível produzir benefícios para a realidade quando a criação de cultura é condizente com a Revelação. Conduzir negócios não é um meio de enriquecimento, acúmulo e construção de patrimônio para si, mas é um meio de glorificar a Deus cultivando a criação através de atividades e meios que só podem ser realizados através dos negócios; a arte, a política, a igreja ou a família não podem fazer o que os negócios podem e devem fazer. A distorção dessa modalidade constitui idolatria e causa prejuízos a toda realidade.


1 MANSUR, Rafaela. Quatro anos da tragédia em Brumadinho: 270 mortes, três desaparecidos e nenhuma punição. G1 Minas. Belo Horizonte, MG. 25 jan. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2023/01/25/quatro-anos-da-tragedia-em-brumadinho-270-mortes-tres-desaparecidos-e-nenhuma-punicao.ghtml. Acesso em 30 jan. 2024.

2 Essa percepção é fruto do Fórum 12 com o Prof. Dr. Jonathan Simões Freitas, sobre Tecnologia, no Programa de Tutoria Avançada 2023, pelo Invisible College.

3 BARAKAT, S. R.; SANTOS, N. L. D.; VIGUELES, M. C.. Engajamento de stakeholders em empresas da economia criativa: estratégias para o enfrentamento da crise da COVID-19. Cadernos EBAPE.BR, v. 20, n. 4, p. 436–451, jul. 2022. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cebape/a/bYDvnL9MbV3VTf8nhBWwd6J/?lang=pt#ModalTutors.

4 VANHOOZER K. J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução de Daniel Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016. E-book. 509 p. 

5 Ibid., p. 55.


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Referências

BARAKAT, S. R.; SANTOS, N. L. D.; VIGUELES, M. C.. Engajamento de stakeholders em empresas da economia criativa: estratégias para o enfrentamento da crise da COVID-19. Cadernos EBAPE.BR, v. 20, n. 4, p. 436–451, jul. 2022.

KOTLER, Philip. Capitalismo em confronto: Soluções reais para os problemas de um sistema econômico. Trad. Cláudia Gerpe Duarte. Rio de Janeiro: Bestbusiness. 2015, 298 p.

KUEPERS, W., WASIELESKI, D.M. & SCHUMACHER, G. Temporalidade e ética: atualidade das perspectivas éticas sobre a temporalidade em tempos de crise. J Ética (2023).Disponível em: https://doi.org/10.1007/s10551-023-05508-8

KUIPER, Roel. Capital moral: o poder de conexão da sociedade. Trad. Francis Petra Janssen. Brasília, DF: Monergismo, 2019. 310 p.

MANSUR, Rafaela. Quatro anos da tragédia em Brumadinho: 270 mortes, três desaparecidos e nenhuma punição. G1 Minas. Belo Horizonte, MG. 25 jan. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2023/01/25/quatro-anos-da-tragedia-em-brumadinho-270-mortes-tres-desaparecidos-e-nenhuma-punicao.ghtml. Acesso em 28 ago. 2023.

SILVA, Bruna Coutinho. A busca de sentido como expressão do ser-para-a-morte Sapere Aude – Belo Horizonte, V. 11 – N. 21, P. 317-322, Jan./Jun. 2020 – ISSN: 2177-6342

VANHOOZER K. J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução de Daniel Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016. E-book. 509 p.

VERKERK, Maarten J et. al. Filosofia da tecnologia: uma introdução. Tradução de Rodolfo Amorim Carlos de Souza. Minas Gerais: Ultimato, 2018. 377 p.