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Necessitamos de novos Bavincks

Artigo escrito por Raphaela Fernandes de Barros Telles Ferreira, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2023


2023. Estamos no terceiro ano após a pandemia da covid-19 no Brasil, iniciada no fatídico mês de março. Na cidade do Rio de Janeiro, a prefeitura decretou estado de calamidade pública em ato publicado no Diário Oficial no dia 13 de março de 2020, sexta-feira1. Aulas foram suspensas, com proibições de aglomerações em lugares públicos, regras de isolamento e afastamento em meios de transporte e uma nova ordem assumiu o reinado: estávamos em período de quarentena viral. Sem adentrarmos em questionamentos médicos, virais e vacinais (e muito menos políticos), todos nos encontrávamos em circunstância exageradamente nova, enjaulados em nossas casas. E agora? Como viver? Como manter a esperança? Como manter a fé?

Se corrermos para a Bíblia e todos os livros escritos pelos melhores e mais renomados teólogos, não encontraremos respostas atuais para a mutação de vírus, mutação genética, dizimação de muitos por algo invisível, novos comportamentos e relacionamentos sociais, mídias sociais, máscaras e vacinas.  E agora, como agir? Como atuar a fé cristã quando o assunto é eminentemente novo? Onde encontraremos as respostas? O assunto é eminentemente novo mesmo? Onde achar a certeza do conhecimento em momentos não vividos? “De sorte que a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus”. (Rm 10:17, BA). O desafio da atualidade é conseguir responder a todos os questionamentos modernos com as convicções cristãs.

Herman Bavinck, holandês, membro da Academia das Artes e Ciências dos Países Baixos, foi um importante teólogo reformado que respondeu às questões do seu tempo. Falecido em 1921, produziu conteúdo teológico de extrema profundidade que se mantém vivo até hoje, respondendo questões atuais. Conhecidos por serem o “trio”2 Herman Bavinck,  Herman Dooyeweerd e Abraham Kuyper, calvinistas, ortodoxos, e tradicionais, eles mantiveram seus ensinamentos vivos mesmo com a mudança de século. Seria este um comportamento digno de inspiração e cópia? Ofuscaria o brilho do único Salvador, Cristo, o Senhor?

Não há como negar que todos somos influenciados por pessoas da nossa época e do nosso convívio. Assumir uma posição de que somos isentos de qualquer tipo de influência ou interferência externa configuraria um pensamento infantil e inocente. Por mais que questionemos, somos frutos do meio social em que vivemos, do meio econômico que nos inserimos, impactados por todas as comunidades com as quais convivemos. Atualmente, em pleno século XXI, não aceitar o poder da influência das mídias sociais, influenciadores e produtores de conteúdo seria navegar em um oceano vazio.

Contudo, como ser moderno, atual, dialogal, com problemas e manter a fé convicta? Isto é possível apenas se a nossa fé estiver com bases muito profundas, alicerçada em pontos inabaláveis, fé esta que foi revelada por alguém maior do que o ser humano, um ser supremo, para que o homem não fosse o responsável pela sua própria divindade.

Há séculos o homem busca por essa divindade, transitando em caminhos politeístas e monoteístas, naturais, artificiais, emocionais ou transcendentais. Se o homem fosse o responsável pela criação da divindade, essa apenas cederia aos próprios caprichos e seria fadada ao seu fim desde o começo. Não temos tamanho poder de abstração para criarmos uma divindade alheia aos nossos desejos. Somos falhos por natureza e efetivamente estaríamos adorando a algum outro deus3. Este é o real motivo para que o conhecimento venha de algo exterior. Bavinck deixa claro que todo conhecimento só é possível se vindo de Deus:

Pois segundo o conselho de Sua vontade somos escolhidos, em conformidade a ela somos regenerados, e por meio dela somos santificados. Em virtude do beneplácito dessa vontade tanto as coisas no céu quanto as que há na terra serão reunidas numa única dispensação na plenitude do tempo, tendo Cristo como Cabeça. E, em todo o curso da revelação, tal vontade divina se desvela cada vez mais claramente como o amor de Deus, a graça do Filho e a comunhão do Espírito Santo” (BAVINCK, 2016, n.p.).

Deus, em ato de amor, desejou se revelar ao homem. A revelação de Deus produz em nossos corações a certeza da fé:

Mas quando a religião cristã nos revelou a grandeza do coração de Deus, e no raiar do dia quando do alto Ele nos visitou com sua entranhável misericórdia, lançou-se luz ao mesmo tempo sobre o homem e sobre as riquezas e valores de sua alma. Essa misericórdia transmitiu ao homem uma nova certeza, a certeza da fé, restaurando, com isso, a confiança em si mesmo. E, por meio dessa luz da revelação, Agostinho desceu profundamente em sua própria vida interior; esquecendo a natureza, ele desejou conhecer nada mais, a não ser Deus e a si mesmo” (BAVINCK, 2016, n.p.).

Bavinck continua aprofundando que a revelação ideal ocorre com a busca pelo autoconhecimento. Não há conhecimento fora da autoconsciência humana. E quanto mais nos conhecemos, mais conhecemos a Deus; e quanto mais conhecemos a Deus, mais nos conhecemos4. Esta é uma relação eterna, de busca e início contínuos, em uma dança de pessoas que se espelha na Trindade. Munido da certeza da fé, o cristão encontra o desafio de viver no mundo atual que se encontra. 

Aprouve ao Deus soberano direcionar todo o curso da história, conduzindo as vidas e acontecimentos para espelhar a sua glória5. Nessa narrativa divina, Deus criou o mundo com todas as coisas de forma orgânica, tendo questões novas todos os dias. Assim Ele quis ao criar, com criatividade, seres semelhantes a si para desenvolverem o mundo. Portanto, a certeza da fé faz com que resgatemos o mundo que vivemos para Cristo, atuando nele com propósito de redenção.

Para tanto, o cristão deverá assumir um compromisso com sua vida e atuação que deixem marcas neste mundo. Cabe ao cristão se interessar pelos assuntos cotidianos, laborar a árdua tarefa de redirecionar tudo para Cristo. Bavinck continua sendo um modelo, uma vez que se interessou pelos assuntos de seu tempo, estudando mais e mais conhecimentos que a mente humana produzia. Será que nossas comunidades cristãs estão prontas para estimular e dialogar com temas não teológicos? Será que não fomos levados a achar que a fé é assunto extremamente privado? Seria isso um reducionismo da fé, excluindo-a da atuação pública, em um exercício de dualismo?

Sim, a fé sem atuação é vazia. “Assim também a fé, se não se traduzir em obras, é morta em si mesma”. (Tg 2:17, BA). O cristão é instado a atuar na esfera pública demonstrando e utilizando sua cosmovisão cristã em todos os aspectos da sua vida. Se não dermos corpo vivo à nossa fé praticante, iremos ao extremo oposto – racionalidade teológica fria e distante da vida. Esta é a tarefa do cristão: deixar as marcas de Cristo em sua vida diária. Para tanto, Bavinck serve de modelo ao se deparar com estudos aprofundados sobre diversas matérias, reconectando tudo à revelação divina. Assim, nosso desafio é ressignificar todas as coisas na pessoa de Cristo, e só conseguiremos isso quando entendermos que o mundo fora criado perfeitamente por Deus e temos nossa tarefa em apontarmos todas as coisas para Cristo.

Bavinck destaca que a graça divina restaura a natureza, aperfeiçoa o mundo, redime todas as coisas criadas pelo Deus Supremo Criador em Cristo. Desta forma, não precisamos viver em um mundo fragmentado, dualista, mas temos uma visão integral diante de Deus neste mundo. Entendemos com o autor que a revelação de Deus é maior do que conseguimos entender e que de forma específica (revelação especial), de forma geral (revelação geral) e de forma relacional (subjetiva)6, Deus fez tudo a partir do nada, detalhadamente, belo e perfeito, e alijou o ser humano (criado à sua imagem e semelhança) para participar do desenvolvimento deste todo mundo organicamente criado:

Conforme as Escrituras, a teologia cristã sempre ensinou que o pecado também implica no erro, corrompendo, desse modo, não apenas o coração e vontade, mas também cegando o entendimento. (…) A religião é indubitavelmente uma questão do coração, contudo não pode ser separada de todo conhecimento objetivo de Deus que é dado mediante Sua revelação na natureza e na história, nas Escrituras e na consciência. (…) O homem não é posto no mundo desarmado, antes, é equipado no corpo e na alma com ricos dons e poderes; ele recebe os talentos que ele deve somente empregar e aumentar nos atos de sua vida terrena” (BAVINCK, 2016, n.p.).

Portanto, nossa maior imitação deve consistir sempre na pessoa de Cristo; mas aprouve a Deus deixar homens e mulheres com suas histórias de vida eternizadas em nossas mentes, nos auxiliando na tarefa de adoradores e imitadores de Cristo. Nosso desafio é destacarmos em nossas atuações, dialogando com nosso tempo, de forma firme e constante com as nossas bases da fé cristã. Apenas quando tivermos os fundamentos do coração em Cristo teremos nossas mãos atuantes para Cristo. Que sejamos ortodoxos, firmes, biblicamente fundamentados, mas ousados e atentos aos diálogos atuais.

Ora, isso é completamente realizado no cristianismo, que é puramente um culto a Deus somente, excluindo todas as criaturas. Deus é o conteúdo e o tema, o princípio e o fim, o Alfa e o Ômega da religião, e nada da criatura se imiscui nesse culto. Por outro lado, o homem, em sua integralidade, é levado à comunhão com o único Deus verdadeiro: não apenas seus sentimentos, mas também sua mente e vontade, seu coração e suas afeições, sua alma e seu corpo” (BAVINCK, 2016, n.p.).

Avancemos, Bavincks!

Deus nos abençoe.


1 Decreto 47247 de 2020 da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro.

2 Pedro Dulci, na aula 3.4, A revelação como condição de possibilidade para a certeza da fé, do Programa de Tutoria Avançada do Invisible College, março/2023.

3 Menção à frase de João Calvino na aula do professor Pedro Dulci, A revelação como condição de possibilidade para a certeza da fé, no Programa de Tutoria Avançada do Invisible College, março/2023: “O coração do homem é uma fábrica de ídolos”.

4 Esta ideia foi trabalhada pelo teólogo Agostinho de Hipona, relacionando o conhecimento de Deus com o conhecimento da sua alma – ‘conhece-te a ti mesmo’ (expressão socrática), posteriormente explorada pelo teólogo reformado João Calvino.

5 Toda a ideia de narrativa e condução divina da história é muito bem explorada pelo autor Cornelius Van Til, citado em aula pelo professor Pedro Dulci, em A revelação como condição de possibilidade para a certeza da fé, no Programa de Tutoria Avançada do Invisible College, março/2023.

6 Este tripé será explorado posteriormente pelo autor, filósofo e teólogo norte-americano John Frame, em sua teoria do triperspectivismo.


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Referências bibliográficas

BÍBLIA. Português. Bíblia Anotada. Versão Almeida, Revista e Atualizada, com introdução, esboço, referências laterais e notas por Charles Caldwell Ryrie; Tradução Carlos Oswaldo Cardoso Pinto. São Paulo. Mundo Cristão. 1994, 1835 p. 

BAVINCK, Herman. A filosofia da revelação. Tradução: Fabrício Tavares de Moraes. 1ª edição. São Paulo. Monergismo. 2016. 307 p. E-book

DULCI, Pedro. A revelação como condição de possibilidade para a certeza da fé. Invisible College. Programa de Tutoria Avançada. Goiânia – GO, 2023. Duração 52:19 Disponível em https://hubinvisiblecollege.com.br/course/tutoria-avancada-2023.