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A fidelidade da igreja ao roteiro teodramático: uma esperança para o mundo pós-moderno

Artigo escrito por Brunno Campos de Oliveira, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2024


Em um mundo que está morrendo, a vocação especial do povo de Deus é viver de tal maneira que mostre que Ele está em contato com a realidade, com a plenitude escatológica do real “em Cristo”.

(Vanhoozer)

Introdução

Segundo o teólogo Cornelius Van Til: “Existem duas e apenas duas classes de homens: aqueles que adoram e servem à criatura, e aqueles que adoram e servem o Criador. Existem os que quebram a aliança e os que guardam a aliança”1. Tendo isto em mente, vemos que o mundo contemporâneo adotou para si a multiplicidade de perspectivas, a relatividade cultural e a natureza subjetiva da experiência; ou seja, se trata de uma sociedade em total rebelião ao Criador. A consequência dessa escolha é a constante quebra de leis, valores e princípios estabelecidos por Deus nas Escrituras, embora, como bem disse Agostinho, nas suas Confissões: “O coração do homem [tenha sido] criado para Deus e não pode encontrar descanso sem repousar no coração do seu Pai. […] Todos os homens estão realmente buscando a Deus, […] mas nem todos o buscam da maneira certa nem no lugar correto”2.

A bússola pós-moderna está quebrada. A humanidade perdida caminha por um atalho pavimentado pela mentira, e, como foi com a modernidade, segue para uma factual morte, uma vez que seus ideais não produzirão o fruto que possa nutri-la de fato. Não obstante, a igreja possui a bússola que indica o Caminho, a Verdade e a Vida, a saber, o cânon bíblico. Todavia, não basta apenas ter, é preciso saber usar. Em sua obra O drama da doutrina, Kevin J. Vanhoozer propõe uma nova forma de fazer teologia e de enxergar a história da redenção. Com base em sua proposta, este trabalho abordará a atuação da igreja no teodrama e como ela pode oferecer esperança para o mundo pós-moderno.

A proposta canônico-linguística e o teodrama

Existe uma questão histórica pertinente aos teólogos: a noção da autoridade teológica. Muitos preferem não invocá-la, mas, se a invocam, não sabem se o seu lócus está nos evangelhos, nas Escrituras ou na igreja. Na abordagem canônico-linguística, proposta por Vanhoozer, essa autoridade está no cânon bíblico, entretanto não no uso que a igreja faz dele, mas, sim, no uso que Deus faz através dos Seus atos de fala: “A revelação não é apenas a comunicação de verdades sobre Deus, mas, acima de tudo, a autocomunicação de Deus em atos e palavras” (VANHOOZER, 2016, n.p.). Nesse sentido, a teologia não pode se limitar a um entendimento cognitivo, ela deve extrapolar para a prática. A partir disso, o autor oferece uma brilhante metáfora para a narrativa bíblica, comparando a história da redenção a um drama teatral, o teodrama.

Na economia do teodrama, Deus é, ao mesmo tempo, Dramaturgo e Ator. Ele escreveu o roteiro e dialoga com a humanidade em cenas ao longo da história. Jesus Cristo, o ator principal, encena o clímax do roteiro nos evangelhos. O Espírito Santo é o diretor principal, que usa o cânon bíblico, inspirado por Ele mesmo, para orientar e capacitar os demais atores, a igreja, a encenar de forma fidedigna o que o Dramaturgo concebeu. Desse modo, a postura da igreja em assumir seu lugar no palco, participar proativamente do teodrama, interpretar fielmente o script, é a recompensa da doutrina. “O que dá sentido e substância às doutrinas é a forma da vida e da linguagem da igreja”3, ou seja, as doutrinas se tornam concretas e práticas a partir do momento que a igreja assume seu papel no drama da redenção.

O papel da igreja

Diante disso, um aspecto marcante no mundo pós-moderno, que expõe toda a confusão dessa era, é o quanto se imprime força no ato de descaracterizar a família, o gênero, a etnia, a política, os princípios religiosos e até Deus. Tudo é relativo, fluido, líquido. Esfacela-se o caráter, a essência, a identidade. Contudo, algo muito caro para o cristão é a sua identidade, e quem nos orienta para encontramos nosso verdadeiro eu é justamente a doutrina: “A doutrina nos prepara para uma participação adequada no drama da redenção dizendo-nos quem realmente somos”4

Deste modo, a identidade cristã não está fundamentada em nenhum conceito deste mundo, mas em uma Verdade absoluta: Cristo em nós e nós em Cristo. Nossa identidade em Cristo é tanto um dom – fomos escolhidos para o elenco do drama da redenção – quanto uma tarefa – temos a responsabilidade de aprender nossos papéis, enquanto novas criaturas em Cristo. Somente em Cristo nossa identidade pessoal e nosso papel no drama coincidem5. “No entanto, os cristãos, em última instância, têm uma vocação coletiva, em vez de meramente individual: participamos de modo adequado como indivíduos recriados em Cristo só quando nos tornamos parte do corpo maior ‘de Cristo’”6.

Logo na introdução de O drama da doutrina, uma questão chave é levantada: “O que a igreja tem para dizer e fazer que nenhuma outra instituição humana pode dizer e fazer?”7. Ser um corpo vivo, um corpo que morreu e ressuscitou juntamente com Cristo. Ser um corpo ressuscitado implica em encenar diariamente o evangelho, se entregando de tal forma que não seja possível distinguir atuação e realidade. Esse é o papel da igreja, apontar para Cristo a esperança última de todas as eras. A igreja recebeu o ministério da reconciliação, o fim do teodrama. “Em um sentido importante, a própria igreja é o fim ou objetivo do teodrama: o cumprimento da promessa da aliança divina de fazer um povo para si e de ser Deus desse povo”8.

Desse modo, um dos grandes desafios no decorrer da história do cristianismo é traduzir o evangelho para a sociedade em seu contexto. Na teologia canônico-linguística, proposta por Vanhoozer, esse desafio é denominado transposição: “fazer a transposição teodramática significa encenar o mesmo drama da redenção em uma clave cultural diferente”9. Isso significa que a igreja precisa improvisar em sua atuação. 

Assim sendo, diferente do que se pensa popularmente, a improvisação não denota desleixo, falta de preparo e profissionalismo. Pelo contrário, para um ator improvisar, ele deve estar totalmente imerso no roteiro, de modo que não o descaracterize, faça sentido para a plateia e dê suporte para que outros atores consigam interagir com ele. Da mesma forma, a igreja atua para sua geração não repetindo de forma engessada o que foi feito no passado, mas transpondo a mensagem da cruz: “Todos os dias, continuavam a reunir-se no pátio do templo. Partiam o pão em suas casas, e juntos participavam das refeições, com alegria e sinceridade de coração, louvando a Deus e tendo a simpatia de todo o povo. E o Senhor lhes acrescentava todos os dias os que iam sendo salvos” (Atos 2:46,47).

No texto de Atos, a igreja encenava o drama, contagiava a plateia e o Senhor escolhia novos atores para Sua companhia de teatro. A igreja detém a bússola cujo norte é Cristo, o remidor, reconciliador e esperança da humanidade; e mostra destreza em manuseá-la ao abraçar seu papel no drama escrito por Deus: “Para que a igreja seja verdadeiramente um teatro da reconciliação no presente contexto, ela precisa se guiar pela doutrina da expiação e procurar colocar em prática sua identidade como o único corpo de Jesus Cristo”10.

Conclusão

Concluindo, o mundo pós-moderno também participa de um drama. Um drama escrito pelo individualismo, relativismo e ausência de identidade. Perdido em um falso caminho, ele necessita que lhe coloquem de volta na rota correta, a rota da reconciliação. Somente uma igreja vivificada, que entende e abraça seu papel no grande drama da redenção, assumindo sua verdadeira identidade, que improvise transpondo a mensagem do evangelho, é esperança para esse mundo. “Em última instância, todos os dramas humanos encontram cumprimento no drama encenado por Jesus Cristo”11.


1 CORNELIUS, Van Til. Apologética Cristã. Tradução de Davi Charles Gomes. 2 ed. São Paulo: Cultura Cristã. 2010. E-book, p. 52.

2 AGOSTINHO apud BAVINCK, Herman. As maravilhas de Deus: instrução na religião cristã de acordo com a confissão reformada. Tradução de David Brum Soares. 1ª ed. São Paulo: Pilgrim Serviços e Aplicações; Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021, p. 49.

3 Ibid., p. 23.

4 Ibid., p. 408.

5 Ibid., p. 409.

6 Ibid., p. 413.

7 LEITH, John H. apud VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução de Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016, p. 19.

8 VANHOOZER, op.cit., p. 449.

9 Ibid., p. 270.

10 Ibid., p. 455.

11 Ibid., p. 65.


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BAVINCK, Herman. As maravilhas de Deus: instrução na religião cristã de acordo com a confissão reformada. Tradução de David Brum Soares. 1ª ed. São Paulo: Pilgrim Serviços e Aplicações; Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021. 736 p.

BÍBLIA DE ESTUDO NVI. Nova Versão Internacional. São Paulo. Editora Vida. 2003. 2424 p.

CALVINO, João. Comentário bíblico João Calvino: Novo Testamento. Tradução de Valdenilson Araújo. 2021. Ebook. 6514 p. Disponível em: https://amzn.to/49iz9Go. Acesso em: 31 jan. 2024.

CORNELIUS, Van Til. Apologética Cristã. Tradução de Davi Charles Gomes. 2 ed. São Paulo: Cultura Cristã. 2010. E-book. 231 p. Disponível em: https://amzn.to/3HHKK6f. Acesso em: 31 jan. 2024.

SCHAEFFER, Francis. A morte da razão: uma análise do pensamento moderno. Tradução de João Bentes. 3 ed. São Paulo: ABU; Viçosa: Ultimato, 2023, 112 p.

VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução de Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016, 512 p.