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Fé em busca de entendimento: o Proslógio de Santo Anselmo

Resenha crítica escrita por Eliceli Kátia Bonan, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2023


ALSELMO DE CANTUÁRIA, Santo. Proslógio. Trad. Sérgio de Carvalho Pachá. 1ª ed. Porto Alegre, RS: Concreta, 2016. 124 p.


“Tu, portanto, Senhor, que dás o entendimento da fé, concede-me, na medida em que este conhecimento pode ser-me útil, compreender que tu existes, como o cremos, e que és o que cremos.” 

(Anselmo de Cantuária)

A relação entre fé e razão é tema protagonista em muitas discussões, especialmente as filosóficas. O tema surge, principalmente, devido ao sistema de pensamento racional, especialmente o da filosofia grega, em que não se concebe a fé como suficiente para explicar a realidade. Diante disso, é possível falar em Deus valendo-se apenas da razão? Na busca por conhecimento racional, onde fica a fé? Essas perguntas permearam os debates da Idade Média e, mesmo após a vitória declarada da racionalidade pelo Iluminismo, a busca por entender a relação entre as duas não cessou. 

Nesse sentido, precursor do método escolástico de pensamento crítico e aprendizagem, Santo Anselmo de Cantuária igualmente debruçou-se sobre essas questões, buscando sintetizar o pensamento grego com a fé cristã. Seu livro Proslógio, obra aqui em análise, é de suma importância nesse movimento, pois é onde Anselmo desenvolve seu famoso argumento ontológico da existência de Deus. A presente edição, publicada em 2016 pela editora Concreta, oferece ao leitor o texto de Anselmo em latim, com primorosa tradução à Língua Portuguesa de Sérgio de Carvalho Pachá. A obra é composta por quatro partes, distribuídas em 124 páginas. A primeira parte trata-se de um texto de apresentação de Santo Anselmo e contextualização da época da escrita. Ainda, visa analisar as contribuições de Anselmo para a história do pensamento e da filosofia, bem como criar uma conversa entre o autor e seus principais opositores e apoiadores. 

Em seguida, inicia-se o texto de Proslógio propriamente, com um breve prefácio de Santo Anselmo, cujo objetivo é justificar a obra e explicar como, a partir de “pedidos de alguns irmãos” (p. 39), aplica-se ao exercício de “encontrar um único argumento que a si mesmo bastasse e demonstrasse que em verdade Deus existe e é o Sumo Bem, que não precisa de qualquer outro princípio, e do qual todos os demais seres precisam para existir” (p. 39). Até aquele momento, o esforço intelectual de Anselmo estava concentrado em provar a racionalidade da fé sem contradizer as Escrituras. Vemos isso em sua obra Monológio, por exemplo, que busca o equilíbrio entre fé e razão, e parte da racionalidade para explicar a existência e natureza de Deus, colocando-O a posteriori. Agora, em Proslógio, seu argumento assume Deus a priori, ou seja, Deus existe pela revelação e só é possível conhecê-Lo porque Ele primeiro se revela. 

Em Proslógio, o autor quer encontrar um argumento suficiente para a divindade, no qual se demonstre logicamente (razão) a certeza, dada pela revelação divina (fé), de que Deus existe. É o esforço da própria fé em busca de encontrar a luz da razão. Anselmo constrói seu argumento em 26 breves capítulos (p. 41-81), os quais seguem a mesma estrutura do raciocínio que defende: iniciam com uma aclamação a Deus e um reconhecimento de quem Ele é, seguidos de uma súplica para que a ação divina lhe dê conhecimento, bem como uma posterior apresentação do problema e discussão lógica de cada tema. 

Dos capítulos 1 ao 5 (p. 41-51), Anselmo discorre sobre o “ser acima do qual não se pode pensar o que quer que seja” (p. 47). Para ele, pensar em algo maior que Deus é absurdo e o absurdo é inconcebível na reflexão filosófica. A partir do capítulo 6 (p. 51) até o capítulo 22 (p. 73), mantendo a mesma estrutura de texto, Anselmo discorre sobre os atributos divinos, concluindo que Ele é perfeitíssimo, pois seus atributos são impossíveis de criar ou imaginar pela razão humana.

Aqui, tem-se a essência do pensamento anselmiano, segundo o qual se Deus está na mente humana como ser perfeitíssimo, sobre o qual não se pode conceber nada além, então deve necessariamente admitir-se Deus como existente na realidade. Se não existe, Ele não pode ser perfeitíssimo, tampouco concebido como tal. Portanto, Ele realmente existe e d’Ele “todos os demais seres precisam para existir e bem existir” (p. 73).

Após isso, dos capítulos 23 a 26 (p. 73-81), Anselmo observa a Trindade e conclui que tudo que é afirmado como verdade para uma das pessoas da Trindade é verdade para todas: Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo. Por fim, Anselmo volta a suplicar a Deus para que possa conhecê-Lo e, só assim, alcançar a plenitude da vida (p. 81).

Complementar ao texto, esta edição apresenta logo em seguida a principal objeção ao pensamento de Anselmo, a de seu amigo e monge beneditino Gaunilo (p. 83-93). Para Gaunilo, imaginar que existe uma ilha desconhecida perfeita não dá nenhuma prova da existência dessa ilha, mas apenas prova a capacidade humana de imaginação. O monge entende que existir na inteligência não significa existir na realidade (p. 85). Anselmo responde ao seu crítico (p. 95-117), sustentando a impossibilidade de comparar Deus e Seus atributos com uma ilha desconhecida, matéria humana.

Enquanto exercício metodológico, esta que é uma das principais obras do pensamento escolástico, oferecendo um rigor ao estudo filosófico que não era encontrado em períodos anteriores. Filosofar não é pensar abstrato, mas é exercício rigoroso que possui critério e método. Ainda, Proslógio é uma demonstração da mentalidade medieval de que não era possível separar saberes, pois “saber” é uma caminhada de conhecimento universal. Dentro disso, a obra é totalmente recomendada e introduz uma interessante ideia a ser discutida em dias atuais, em que cada aspecto da existência é observado de forma fragmentada e especializada.

Em toda a sua obra, Anselmo trilha o sólido caminho de Santo Agostinho, de “crer para entender”, e de tratar a fé como instrumento em busca da inteligência e do conhecimento. Ele não vê uma relação antagônica entre fé e razão, mas busca a harmonia e o equilíbrio entre elas. Nesse sentido, seu esforço é de grande valia para leitores que ainda não creem nas possibilidades lógicas da fé. 

Por outro lado, ao leitor moderno e crente, a obra de Anselmo apresenta uma concepção filosófica cristã com a qual deve-se dialogar com reservas. Em sua tentativa de construir um sistema de pensamento filosófico baseado na revelação divina, Anselmo limita-se ao não considerar a revelação como suficiente sem o exercício racional. Ou seja, diante da predominância da filosofia grega em sua época, e dos avanços da racionalidade, ao retomar a fé cristã na filosofia, ele faz um exercício bastante útil, mas insuficiente, pois sintetiza dois sistemas de pensamento que não são, necessariamente, homólogos. 

Entretanto, pode-se dizer que Anselmo é um precursor para sistemas filosóficos posteriores, baseados na revelação divina e com maior integralidade de visão de mundo, tais como a filosofia reformacional de Herman Dooyeweerd, por exemplo. Nesse sentido, pode-se dizer que a mais importante premissa de Anselmo em Proslógio é a de que Deus é conhecido pela revelação, e só está na inteligência humana porque aí se revela e se torna conhecido. Embora de fácil leitura e com caráter bastante poético e devocional, Proslógio é um texto bastante denso e o leitor pode ter grande proveito em uma segunda e terceira leituras. A presente edição, por sua vez, é uma dádiva ao público brasileiro, com um trabalho primoroso de tradução, design e impressão da editora Concreta.