Escrito por Pedro Rendeiro, estudante do Programa de Tutoria — Turma Essencial 2021
Introdução
Ninguém gosta de receber um comando impossível de se cumprir. Um bom exemplo disso está no clássico filme de animação Shrek (2001). Apenas para se livrar da presença do Burro por um momento, a princesa Fiona pede que o animal percorra a floresta em busca de uma flor azul com espinho vermelho, que supostamente teria propriedades de cura. Após algum tempo de busca frustrada, o personagem exclama: “Seria mais fácil se eu enxergasse cores!”
Analogamente, muitos se questionam a respeito da validade da Lei moral que o Deus das Escrituras entrega à humanidade. Existe uma pergunta que é motivo de orgulho para os críticos da Bíblia, e de incômodo para os cristãos dedicados: “por que Deus ordena coisas que o homem não consegue cumprir?”. É sobre esse tema que o presente artigo trata.
Entendendo a Lei
Em primeiro lugar, a própria formulação da pergunta acima indica possível incompreensão sobre o objetivo da Lei dentro da religião cristã. De fato, não há nenhum ser humano — exceto Jesus — que a tenha cumprido plenamente. Entretanto, ela não foi dada para que o homem fosse salvo por meio de seu cumprimento. De modo simples, podemos dizer que os decretos de Deus servem para nos apontar duas coisas: o pecado como nosso maior problema, e Cristo como a única solução1. “De maneira que a lei se tornou nosso guardião para nos conduzir a Cristo, a fim de que fôssemos justificados pela fé” (Gl 3:24, NAA).
Uma vez esclarecido o verdadeiro lugar da Lei, é importante ressaltar outro aspecto básico do cristianismo. Embora o cumprimento de ordens não seja o critério pelo qual somos julgados, Deus requer gratidão daqueles que lhe pertencem (Gl 5:25; Lc 14:27). Tal gratidão, por sua vez, se expressa na obediência. E essa obediência é realmente possível, pois através do sacrifício do Filho, os crentes são capacitados a abandonar o pecado e segui-lo.
“[…] E assim Deus condenou o pecado na carne, a fim de que a exigência da lei se cumprisse em nós, que não vivemos segundo a carne, mas segundo o Espírito. Os que vivem segundo a carne se inclinam para as coisas da carne, mas os que vivem segundo o Espírito se inclinam para as coisas do Espírito” (Rm 8:3-5, NAA).
A igreja precisa encontrar o equilíbrio bíblico entre a suficiência de Cristo na obra de redenção e a seriedade do chamado que Jesus faz aos seus discípulos. É com esse objetivo que o teólogo norte-americano Vern Poythress, em sua obra O senhorio de Cristo (2016), pontua recursos úteis para que os cristãos atendam a esse chamado. Com base no texto de Poythress, destacaremos dois tipos de recursos.
Recursos Essenciais
“Leia a Bíblia e faça oração, se quiser crescer…”
Dentre os primeiros recursos apresentados por Poythress, estão a Bíblia e a oração. Para aqueles que cresceram em um ambiente cristão, isso é ensinado desde a infância na Escola Bíblica Dominical. Nesse contexto, devemos cuidar para que esses princípios não sejam apenas repetidos de maneira mecânica, mas verdadeiramente assimilados pela membresia da igreja.
A importância dessas ferramentas está no fato de que “a santificação vem principalmente por meio da comunhão com Cristo no Espírito” (POYTHRESS, 2016, p. 165). E tal comunhão não será experimentada sem tempo dedicado para meditar na Palavra de Deus em oração.
John Frame, teólogo e amigo de Vern Poythress, lembra que a Bíblia não é apenas um guia ético que nos ensina a discernir entre certo e errado. Muito além disso, ela também é poder, capacitando o leitor a cumprir aquilo que ela apresenta2. Nos momentos de fraqueza e desânimo, recordar essa verdade serve para renovar nossas esperanças de que a leitura da Palavra de Deus não é inútil.
O pastor Timothy Keller, por sua vez, nos ajuda a conectar a importância da Bíblia e a da oração. Em seu livro Oração, ele afirma que orar “é dar continuidade a uma conversa que Deus iniciou por meio de sua Palavra e graça” (KELLER, 2016, p. 58). Deus espera que sua revelação produza resposta no coração do ser humano; portanto, nada mais natural do que expressar essa resposta diante do próprio Deus. Ademais, Keller acredita que essa é “a principal maneira de experimentarmos profunda transformação — a reordenação de nossos afetos” (KELLER, 2016, p. 27). Palavra e oração devem andar de mãos dadas, jamais separadas.
Outros Recursos
Sem dúvida, os recursos apresentados acima são insubstituíveis. Entretanto, eles não são os únicos aos quais temos acesso. Em ambientes eclesiásticos anti-intelectualistas, existe resistência em utilizar literatura extrabíblica como fonte de sabedoria. Afinal, até mesmo pessoas razoáveis poderiam indagar: “se os crentes têm acesso à Bíblia, que é inspirada e infalível, qual a necessidade de qualquer outro recurso?”. A resposta é que as próprias Escrituras nos encorajam a utilizá-los. Acompanhe o raciocínio a seguir.
O livre acesso à Bíblia é um excelente privilégio, uma vez que ela é essencial à nossa comunhão com o Senhor. Apesar disso, nunca foi propósito de Deus que os crentes aprendessem tudo por conta própria, em estudos bíblicos individuais. Pelo contrário, Ele mesmo estabelece mestres na igreja (1Co 12:28), a fim de que instruam todo o corpo segundo a sã doutrina. Portanto, além da comunhão individual com Deus, cabe à membresia ouvir os mestres e aprender por meio deles.
Muitas vezes, esses mestres são chamados não apenas a instruir sua igreja local, mas também a registrar seu ensino e preservá-lo, para que cristãos de outros locais e épocas sejam edificados. Nesse sentido, a literatura é um “braço” do dom de mestre! Foi dessa maneira que a grande tradição cristã se desenvolveu ao longo dos séculos desde a igreja primitiva. Nosso papel hoje é apreciar essa tradição de forma crítica, discernindo os erros e acertos dos homens que Deus usou ao longo da história (e continua usando hoje).
Portanto, seguindo Vern Poythress, indicaremos brevemente três sub-tradições especialmente frutíferas dentro da teologia reformada3. Para começar, o contato com o kuyperianismo. Iniciado por Abraham Kuyper (1837-1920), destaca-se pelo desenvolvimento do conceito de cosmovisão e sua aplicação dentro do cristianismo. Ademais, recomendamos a leitura de Geerhardus Vos (1862-1949), responsável pela consolidação da teologia bíblica como disciplina. Por fim, indicamos a tradição que deu origem à apologética pressuposicional, a qual tem Cornelius Van Til (1895-1987) como pioneiro.
Apesar desses nomes e conceitos soarem estranhos à primeira vista, vale a pena ter contato com essas tradições, pois as ideias ali desenvolvidas nos auxiliam a aumentar nossa fidelidade no serviço a Deus. E acreditamos que o livro O senhorio de Cristo — mencionado anteriormente — seja uma boa porta de entrada para o pensamento dos três autores citados acima.
Conclusão
Aqueles que se lembram bem do enredo de Shrek sabem que, ao final, o Burro é bem-sucedido em sua missão. De maneira inexplicável, ele encontra a flor azul com espinho vermelho que lhe fora pedida. Da mesma forma, o cristão é chamado a confiar no poder de Deus, que atua apesar das limitações da natureza humana. Neste texto, diversos recursos úteis foram apresentados para atendermos fielmente a esse chamado.
Entretanto, também é verdade que nosso desempenho é variável ao longo do cumprimento dessa tarefa. Por isso, quando nos sentirmos fracos, devemos pedir por graça, confiantes de que, ainda hoje, Ele nos purifica do pecado e nos capacita a obedecê-lo; e de que, no Dia do Juízo, nos julgará unicamente com base nos méritos de Cristo. “Dá-me mais graça, Senhor. Dá-me mais graça. Faze-me em Cristo, outra vez, ser mais que vencedor”4.
1. A relação entre a Lei e a Graça é um pouco mais complexa que isso. Para aprofundar no assunto, veja Herman Bavinck, As Maravilhas de Deus (p. 113-128).
2. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=nkH6AYFxjD8&t=245s. Acesso em 02/08/2021.
3. A título de curiosidade, os principais representantes dessas três tradições são de origem holandesa.
4. Grupo Logos, na música “Espinhos” (1985).
Referências
BAVINCK, Herman. As Maravilhas de Deus: instrução na religião cristã de acordo com a confissão reformada. Tradução de David Brum Soares. – 1ª ed. – São Paulo: Pilgrim Serviços e Aplicações; Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021.
KELLER, Timothy. Oração: experimentando intimidade com Deus. Tradução de Jurandy Bravo. – São Paulo: Vida Nova, 2016.
POYTHRESS, Vern S. O senhorio de Cristo: servindo o nosso Senhor o tempo todo, em toda a vida e de todo o nosso coração. Tradução de Marcelo Herberts. – Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019.