Escrito por Pedro Rendeiro, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2023
Mas de onde vem a sabedoria?
E em que lugar estará o entendimento?
Jó 28:20
Introdução
A história da filosofia confunde-se com a história da busca por sabedoria. Insistentemente, o ser humano tem buscado entender a si mesmo, ao outro e ao mundo a seu redor, movido pelo desejo de ser sábio. Nesse sentido, o desenvolvimento tecnológico cumpre um papel importante nessa odisseia. Por meio dele, o homem aumenta seu domínio e potencial de ação no mundo.
Impulsionadas pelo avanço do poder computacional, as tecnologias baseadas em inteligência artificial (IA) têm trazido avanços impressionantes em quase todas as áreas do saber. Em especial, os modelos de aprendizado de máquina e, mais especificamente, de redes neurais profundas têm ganhado atenção da mídia diariamente pelos impressionantes marcos que têm sido conquistados.
Em vista disso, há quem pense que o duradouro anseio humano por sabedoria está perto de ser definitivamente saciado. Todavia, a seguinte indagação precisa ser feita: o desenvolvimento de tecnologias baseadas em inteligência artificial é um caminho em direção à sabedoria? Este ensaio argumenta que não. Por honestidade intelectual, deixamos claro para os leitores que o ponto de vista adotado tem como premissa os princípios da fé cristã ortodoxa¹.
Que sabedoria é essa?
A busca por sabedoria sempre esteve presente na história da humanidade. Por outro lado, tal busca nunca foi homogênea. Como afirma o Padre José Líndez em seu livro Sabedoria e sábios em Israel:
Com o passar do tempo, as circunstâncias que transformam a maneira de ver do homem mudam muito. Do mesmo modo, os pontos de vista matizam a escala de valores a cada momento. Todavia, existem atitudes e valores tão naturais ao homem que a variação entre significado e significante não pode ser muito ampla. Entre esses valores considerados perenes estão a sabedoria e o ser sábio, que ocupam um lugar de honra. (LÍNDEZ, 2014, p. 16).
O conceito de sabedoria varia em função do tempo e do espaço ao longo da história. Todavia, uma definição ampla é dada por Líndez. O autor afirma que a sabedoria
envolve o âmbito do conhecimento experimental e reflexivo do homem, cujo fim é ocupar o lugar que lhe cabe diante de realidades superiores a ele: Deus e o mundo em geral, o domínio absoluto hegemônico de seu meio e a realização de suas aspirações em todas as dimensões de sua vida. (LÍNDEZ, 2014, p. 16)
Perceba o viés humanista da definição. A sabedoria é tida como meio para satisfação de liberdades individuais e domínio sobre a realidade². Nada poderia estar mais distante do entendimento bíblico de sabedoria, que parte do princípio da adequação ao mundo de Deus, em vez do domínio sobre o mesmo.
O teólogo brasileiro Igor Miguel, em seu livro A Escola do Messias, ajuda-nos a enxergar uma abordagem alternativa à sabedoria, mais próxima dos valores bíblicos. Ele afirma que o “Ocidente tende a prezar o conhecimento que fornece os meios de controle racional da realidade. O mundo bíblico busca conhecer com vistas a uma vida sábia.” (MIGUEL, 2021, p. 116). Com base nisso, o autor define sabedoria como “um tipo de capacidade existencial que permite ao sujeito operar e interagir na e com a criação e com o próximo de acordo com a ordem sábia do Criador, de modo que viva bem e de forma plena perante Deus” (MIGUEL, 2021, p. 121).
Como veremos mais adiante, a conceituação precisa da sabedoria é importante para que se saiba como obtê-la. Antes disso, é válido pontuar algumas questões relacionadas à inteligência artificial.
Não tão inteligente assim
Correndo o risco de sermos simplistas, inteligência artificial pode ser entendida como o ramo da computação que utiliza técnicas computacionais para produzir sistemas inteligentes. O próprio nome retrata a ousadia do projeto, pois, tipicamente, inteligência é identificada como uma competência distintamente humana.
Ao longo dos últimos anos, os avanços proporcionados pelo aumento do poder computacional e pela engenhosidade do paradigma da aprendizagem de máquina tem permitido avanços impressionantes nas mais diversas áreas do conhecimento, da agronomia à medicina. Contudo, é importante destacar que os sistemas que temos hoje são conhecidos como IA fraca, em contraste com uma IA forte, que ainda está restrita principalmente à ficção científica – como em Homem de Ferro, com o J.A.R.V.I.S e a F.R.I.D.A.Y.
A inteligência artificial fraca (ou IA débil) se refere a sistemas que são capazes de realizar tarefas específicas, como reconhecimento de voz ou tradução automática, mas não possuem consciência ou inteligência generalizada. A IA fraca é projetada para solucionar problemas específicos e funciona dentro de limites claramente definidos. A inteligência artificial forte (ou IA forte), por outro lado, se refere a sistemas que são capazes de realizar uma ampla gama de tarefas e possuem consciência e inteligência generalizada, semelhante à de um ser humano. A IA forte ainda é uma meta futura e é altamente controversa, com muitos desafios técnicos e éticos a serem resolvidos antes que seja possível alcançá-la. Em resumo, a diferença entre IA fraca e forte é a capacidade de realizar uma ampla gama de tarefas e de possuir consciência ou inteligência generalizada.
O parágrafo anterior é um exemplo de aplicação de IA fraca. Ele foi gerado automaticamente pelo modelo ChatGPT, desenvolvido pela OpenAI, em resposta à pergunta: “qual a diferença entre inteligência artificial fraca e forte?”. Poderíamos até mesmo pedir para que esse modelo escrevesse uma redação completa sobre a relação entre filosofia e inteligência artificial3. Entretanto, deve-se ter em mente que esta é a única especialidade do modelo: gerar texto e “conversar” com seres humanos. Ele não teria um resultado satisfatório em detectar anomalias em tempo real no sistema de veículos autônomos, pois isso exigiria um modelo de IA diferente4.
Embora os desafios técnicos sejam muitos, a ambição humana segue alimentando a busca por uma inteligência artificial geral e financiando projetos de pesquisa que investiguem diferentes possibilidades de alcançá-la. A procura por essa espécie de “superinteligência” possui semelhanças interessantes com a busca perene da humanidade por sabedoria, as quais serão exploradas a seguir.
Sabedoria, superinteligência e redenção
Se a sabedoria for tida meramente como dominação da natureza, então sim: a inteligência artificial é um caminho promissor. Os avanços científicos e o valor comercial que soluções baseadas em IA têm produzido são evidência disso. Todavia, sob uma perspectiva cristã, que insiste em considerar a sabedoria como adequação ao mundo de Deus, faz-se necessária uma análise mais cuidadosa.
Para adequar-se ao mundo de Deus, o matemático e filósofo cristão John Lennox ajuda-nos a suscitar tal discussão, retomando a ideia da “superinteligência”. Em suas palavras:
[…] parece haver pouca, se é que alguma, evidência ou mesmo consenso quanto à crença de que a IA forte será atingida algum dia. Em contraste, há considerável evidência e uma abrangente convicção de que Jesus Cristo é tanto homem quanto Deus (Homo + Deus). […] É uma alegação assumidamente sobrenatural de que o Verbo, que é Deus e nunca veio a ser, tornou-se humano. A incerta busca para permitir que humanos tornem-se deuses empalidece em insignificância com essa verdadeira narrativa que flui na direção oposta — o fato impressionante de que Deus já se tornou humano. (LENNOX, 2020, p. 158)
Perceba como a descrição de Lennox apresenta características religiosas. Lennox associa os esforços em prol da construção de uma IA forte à tentativa de tornar-se como um deus, dono de uma sabedoria que o permite enxergar a si mesmo como soberano sobre a natureza. A confiança última da raça humana é depositada na tecnologia sem que haja garantia de que suas expectativas possam ser satisfeitas. Isso caracteriza uma relação de tipo religioso, baseada na fé, seja ela consciente ou inconsciente.
O cristão, entretanto, tendo como ponto de partida a revelação de Deus, ecoa as palavras de Jó e questiona-se: “Mas de onde vem a sabedoria? E em que lugar estará o entendimento?” (Jó 28:20, NAA). E em seguida responde: “Deus lhe entende o caminho, e ele é quem sabe o seu lugar. […] ‘Eis que o temor do Senhor é a sabedoria’” (Jó 28:23, NAA).
No interior de Israel, a noção de sabedoria se desenvolve organicamente (LÍNDEZ, 2014, n.p.). O que antes era entendido apenas como princípios para boa vida, passa a ser compreendido com maior profundidade conforme o avanço progressivo da revelação, até que o ápice dessa compreensão encontra na pessoa de Jesus Cristo a sabedoria encarnada, em quem estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento (Cl 2:3).
Nesse sentido, o teólogo e filósofo cristão Pedro Dulci defende que todo “amor pela sabedoria” – toda filosofia – é uma busca por Cristo5. Ninguém de sabedoria no sentido de domínio epistêmico sobre o mundo; antes, é necessário um Redentor. A inteligência artificial, vista sob esse aspecto, carece daquilo que buscam aqueles que depositam suas esperanças na tecnologia: redenção.
Conclusão
Fica evidente, portanto, que a resposta à pergunta proposta na introdução depende do entendimento que se tem sobre a sabedoria. Superficialmente, a resposta é sim, pois a IA conduz a um maior domínio do ser humano sobre o mundo. Em um sentido mais profundo, entretanto, partindo de premissas eminentemente cristãs, a verdadeira sabedoria não é encontrada em nenhuma tecnologia, mas unicamente na pessoa de Jesus Cristo, a sabedoria encarnada.
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1 Por fé cristã ortodoxa, referimo-nos àqueles valores centrais do cristianismo, sintetizados no Credo Apostólico.
2 Essa dualidade é característica do motivo base Natureza & Liberdade, dominante no mundo pós-iluminista. Para mais informações a esse respeito, v. Herman Dooyeweerd, No Crepúsculo do Pensamento Ocidental (Brasília, Monergismo, 2018).
3 Isso foi testado e, de fato, funciona. Curiosamente, porém, parece haver um limite de cerca de 350 palavras, que não é rompido mesmo quando pedimos por um texto de 1000 palavras.
4 Para uma lista dos principais tipos de funções que os modelos de IA podem desempenhar, v. https://www.forbes.com/sites/cognitiveworld/2019/09/17/the-seven-patterns-of-ai/?sh=5e3a025012d0. Acesso em: 05 fev. 2023.
5 Retirado de uma aula do curso de tutoria filosófica do Invisible College, em 2023.
Referências bibliográficas
LENNOX, John C. 2084: artificial intelligence and the future of humanity. Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 2020. 242 p.
LÍNDEZ, José V. Sabedoria e Sábios em Israel. Tradução: José Benedito Alves. 2 ed. São Paulo, SP: Edições Loyola Jesuítas, 2014. 272 p.
MIGUEL, Igor. A Escola do Messias: fundamentos bíblico-canônicos para a vida intelectual cristã. 1 ed. Rio de Janeiro, RJ: Thomas Nelson Brasil, 2021. 208 p.