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John Duns Scotus e a estética do indivíduo

Escrito por Pedro dos Anjos, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2022


Introdução

O fim da Idade Média é um momento de intensas inovações filosóficas e teológicas. Após um período de domínio da tradição aristotélica no pensamento medieval, atingindo seu apogeu em Tomás de Aquino, no pensamento escolástico, tão diversificado em suas proposições e ênfases, está pavimentando o caminho para novas possibilidades filosóficas, espalhando as sementes para o pensamento do homem moderno. John Duns Scotus foi um dos nomes mais importantes desse período decisivo na história do pensamento ocidental, desempenhando um papel central na ruptura com o aristotelismo predominante na Baixa Idade Média.

Embora não seja um nome tão popular, se o compararmos com outras figuras mais conhecidas na história da filosofia, as contribuições de Scotus para a filosofia e o desenvolvimento de suas implicações trariam consequências grandiosas e acarretariam transformações marcantes para o nosso pensamento e cultura. A era de uma metafísica das essências chegaria ao seu ocaso. O indivíduo passaria a ganhar preponderância. A estética do organismo, defendida por Tomás de Aquino, seria substituída por uma estética do particular, do indivíduo, com o advento da concepção de hecceidade1, por Scotus. Diante disso, de que maneira a filosofia de John Duns Scotus foi um dos pontos fundadores para a sensibilidade moderna e como, tanto o artista quanto a obra de arte, foram profundamente marcados por essa mudança de paradigma filosófico?

A metafísica da individualidade

No século XIII, Tomás de Aquino havia formulado uma metafísica da essência de ordem aristotélica que havia se estabelecido fortemente na Faculdade de Artes. Tal domínio do aristotelismo seria amplamente questionado em décadas posteriores, na Baixa Idade Média. O filósofo franciscano John Duns Scotus romperia com categorias essenciais para a filosofia tomista, como a predicação por analogia dos entes, e a substituiria pela univocidade dos termos, de modo que um predicado poderia ser aplicado tanto a Deus quanto às criaturas, no mesmo sentido, diferenciando-se simplesmente por modalidade, a intensidade com a qual tal predicado se apresentaria em cada ente. 

Apresentando uma categoria que alteraria o rumo do pensamento filosófico em distintas áreas, Scotus chegou ao conceito de hecceidade. Até então, na concepção aristotélica, dominante na escolástica, era a matéria (não a forma) o princípio de individuação entre objetos distintos. Rompendo com essa tradição, Scotus vê na hecceidade o princípio individuador capaz de preservar a validade de termos universais, e, ao mesmo tempo, o proteger do erro do platonismo, em seu realismo idealista radical (KENNY, 2012).

Scotus, em oposição a Tomás de Aquino — em quem o intelecto não podia apreender as coisas materiais, senão por analogia — indicaria a perfeita possibilidade de o intelecto apreender o individual naquilo que o faz singular, por meio deste princípio inteligível de individualidade. Com tal feito, Scotus inaugurou um novo caminho para a metafísica escolástica, ampliando, assim, o próprio escopo do conhecimento: o objeto próprio do intelecto deixava de ser simplesmente a natureza dos objetos materiais e agora se tornava todas as coisas cognoscíveis no céu e na terra (KENNY, 2012). Além disso, Scotus atribuía ao aspecto sensorial, um papel intelectual que até então ele não possuía. 

Para Tomás de Aquino o objeto do intelecto estava ele mesmo realmente presente, porque era um universal cuja única existência era exatamente tal presença na mente. Scotus, porém, porque crê no conhecimento individual do indivíduo, concebe o conhecimento intelectual segundo o modelo da consciência sensorial. Quando vejo uma parede branca, a brancura da parede exerce um efeito sobre minha visão e minha mente, mas ela mesma não pode estar presente em meu olho ou na minha mente, somente alguma representação dela. (KENNY, 2008, p. 200)

Assim, as possibilidades consequentes desse novo olhar para as coisas abriria novos e permanentes caminhos para a relação do homem moderno com a beleza e a arte. Para Tomás de Aquino, imperava uma estética do organismo, ou seja, a noção de que a beleza estava nas relações de clareza, integridade e proporção discernidas na substância, o composto concreto de forma e matéria (ECO, 2018). Como consequência disso, quando várias formas convergiam para formar um corpo misto (pensemos no exemplo de um edifício, formado por diferentes itens) elas perdiam sua própria forma substancial ao se tornarem um só composto. Uma primeira maneira pela qual Duns Scotus se distanciou do aristotelismo tomista foi no modo como ele acentuou a pluralidade das formas, enfatizando o sentido relacional entre as partes formadoras de um objeto. Nesse arranjo, as partes não cedem suas singularidades formais, mas continuam a existir autonomamente, embora agora num aspecto funcional distinto e submetido ao conjunto final. A estética scotista tem, portanto, uma visão muito mais analítica e menos unitária da beleza (ECO, 2018). Era necessário abrir mão dos conceitos mais complexos e, por meio da decomposição, chegar à simplicidade.

O nascer da sensibilidade moderna

Em Scotus, qualquer entidade individual é, por si mesma, distinta de qualquer outra unidade (ECO, 2018). Há, assim, o surgimento de uma metafísica da individualidade. Como consequência direta para a estética está (1) a exploração do potencial único da obra de arte, bem como (2) a ênfase acentuada sobre a figura do artista, que receberia uma importância inédita, até então, na história da arte. Estes são dois fatores marcantes para a formação da sensibilidade moderna.

Contemporaneamente, uma sensibilidade ao individual aos poucos substitui uma sensibilidade ao típico; abandona-se gradativamente uma estatuária intenta a fixar as imagens típicas da espécie e categorias humanas, para sublinhar os traços individuais das figuras, fixar características irrepetíveis. (ECO, 2018 pos. 245)

Na arquitetura, o gótico do século XIII, num contexto cultural onde os valores individuais estão sendo gradativamente mais valorizados, traz a visão particular em substituição à visão do conjunto da arquitetura gótica de um período anterior que, em Chartres e Amiens, se fixava nas formas típicas. A literatura, em Dante Alighieri (1265-1321), é permeada por um humanismo que se detém na perspectiva particular da alma humana quanto a seu destino escatológico. Até então, a arte medieval propunha-se a considerar como aspectos fundamentais os padrões pictóricos nos quais o todo da composição e o arranjo visual se sobressaíam ao realismo das partes individuais que o formavam. A simplificação da figura humana, a planificação do espaço, a rigidez de suas formas e composições, a ênfase na escrita pictórica… a mente do artista medieval objetivava criar uma composição satisfatória, dispondo de símbolos e histórias sacras, ignorando propositalmente os detalhes e as concepções realistas de proporção e espaço (GOMBRICH, 2018). Sua intenção era fixar aquilo que era típico à essência do homem, da fé, dos sacramentos, da mensagem passada, com economia de formas e, ao mesmo tempo, exuberância no todo pictórico. Os manuscritos medievais, com a riqueza no uso de ilustrações e iluminuras, são claros exemplos dessa concepção estética na qual o organismo composto é o alvo.

Giotto de Bondone (c. 1267-1337) foi um precursor do homem moderno da Renascença, além de ser um artista cuja arte já havia sido diretamente influenciada pelo pensamento teológico de Scotus2. No artista florentino, a arte assume um caráter revolucionário: suas figuras assumem mais que proporções meramente realistas, elas situam-se em um espaço tridimensional que se projeta perante nós, com simetria, estabilidade, com clareza e singularidade de cada elemento representado em imagem, elas assemelham-se a seu público, se tornam reconhecíveis, memoráveis, únicas. Suas narrativas visuais agora trazem pessoas com personalidades, excentricidades e perspectivas próprias, não são apenas símbolos. A importância da originalidade tem sua gênese aqui, bem como a observação analítica e intuitiva das obras. A hecceidade cria possibilidades estéticas que nem o seu proponente poderia conceber. Nas palavras de Gombrich,

Também sob esse aspecto, o pintor florentino Giotto inaugura um capítulo completamente novo na história da arte. Dali por diante, a história da arte, primeiro na Itália e depois também em outros países, passou a ser a história dos grandes artistas (GOMBRICH, 2018, p.152)

Para além das revoluções pictóricas apresentadas por Giotto, em sua figura surge o ideal moderno de artista. Ele tornou-se um artista popular e querido entre seu povo. Seu nome estava sendo falado e preservado para a posterioridade. Giotto surge no momento histórico do estabelecimento de uma estética do indivíduo e sua arte consegue sintetizar o caráter do “gênio” que dominaria a história da arte. Aqui surgem novos ideais estéticos formadores da base para a criação artística ainda hoje. Basta pensarmos em aspectos como: os métodos de estudo do ofício artístico (por exemplo, o desenho de observação), a importância que atribuímos à autoria artística e originalidade da arte, o reflexo da subjetividade do artista em sua obra, as temáticas desenvolvidas cada vez mais debaixo de perspectivas humanistas, as revoluções que viriam no decorrer da história. Todas buscando entender o papel da linguagem, da religião, da história, do pensamento, da política. Ademais, pairando sobre essas problematizações, a questão a respeito do lugar reservado ao homem e a Deus em meio a tudo isso.

Conclusão

Após Duns Scotus, as propostas metafísicas da filosofia de Guilherme de Ockham contribuiriam ainda mais para o desenvolvimento de uma estética moderna. Em sua filosofia, não há nada além de sua forma concreta e absoluta, e a realidade dos universais desaparece no nominalismo, restando-nos somente a obra percebida por intuição intelectual singular (ECO, 2018). As transformações decorrentes dessa ruptura radical introduzida por Ockham seriam sem precedentes. Contudo, é com o interesse pelo particular, introduzido pela hecceidade de Scotus, que todos esses movimentos parecem ter início.

Grande parte dos conceitos que moldam a forma como nossa cultura entende, debate e se interessa pela arte e pela beleza, se origina nesse momento. É necessário entender essas dinâmicas do pensamento filosófico, para nem incorrermos no erro de sobre-exaltar os movimentos artísticos que surgem um após o outro como melhores e mais desenvolvidos que o anterior, nem sermos cínicos e rejeitarmos as boas possibilidades e redescobertas que as novidades estéticas nos apresentam. Compreender a história da filosofia nos possibilita ver as peças no tabuleiro de cada contexto histórico, ver o que estava em jogo, entender as aspirações e devoções de cada um deles, e as nossas próprias. É, ainda, submetendo o espírito de cada uma dessas forças culturais ao Espírito da verdade, que artistas e apreciadores de arte resguardam-se da sutil e enganosa ingenuidade em relação a seu próprio tempo.


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1 Ou “Ecceidade”. É um termo usado por Scotus para “designar aquilo em virtude do que um indivíduo é o indivíduo que é: sua essência individuadora que faz dele este objeto ou esta pessoa.”(BLACKBURN, 1997, p. 111).

2 Uma série de ciclos de afrescos retratando a infância da Virgem Maria foram impulsionados pela defesa que Don Scotus, enquanto teólogo franciscano, havia feito da doutrina da Imaculada Conceição, a tal ponto que essas pinturas se tornaram parte da paisagem visual italiana no séc. XIV. Tal defesa feita pelo filósofo escocês, contribuiu para a proliferação de suas ideias, primeiro na Itália, depois por toda a Europa. Ver “The Immaculate Kiss Beneath the Golden Gate: The Influence of John Duns Scotus on Florentine Painting of the 14th Century” em https://muse.jhu.edu/article/257402.


Referências bibliográficas

BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de filosofia. Tradução: Desidério Murcho…et al. 1ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997. 437 p. 

ECO, Umberto. Arte e beleza na Estética Medieval. Tradução: Mário Sabino. 4. Ed. RJ/SP: Record, 2018. 

ERHARDT, Michelle A. The Immaculate Kiss Beneath the Golden Gate: The Influence of John Duns Scotus on Florentine Painting of the 14th Century. Franciscan Studies, Volume 66, 2008, pp. 269-280 (Article). Disponível em: https://muse.jhu.edu/article/257402 . Acesso em: 02/07/2022.

GOMBRICH, Ernst Hans. A História da Arte. Tradução: Cristina de Assis Serra. 1. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2018. 1046 p. 

HEINTZELMAN, Dr. Matthew. Illustration, Illumination and text: An Ongoing Conversation. Dixon Gallery and Gardens; 2020. 1 vídeo (1:30:32). Disponível em: https://youtu.be/kgFTNNc9Lvw 

KENNY, Anthony.  Uma nova história da filosofia ocidental volume 2: filosofia medieval. Tradução: Edson Bini. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2012. 382 p.