Escrito por Thiago Nonato Souza, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2024
Introdução
A relação entre teoria e prática é um tema que volta e meia aparece em nossas discussões, reflexões e pesquisas. Recorrentemente, somos levados a lidar com a tensão que gira em torno dessa problemática. No meio cristão, não seria diferente, pois não é incomum encontrar incongruências entre doutrinas e o cotidiano vivido. Essa tensão não é privilégio de nosso tempo; temos uma epístola na Bíblia que, de forma incisiva, nos mostra a importância da obediência a Cristo por meio de nossas ações, a saber, a epístola de Tiago, que, inclusive, nos diz que a fé sem obras é morta.
Vanhoozer busca lidar com esse problema em sua obra O drama da doutrina, de 20161, onde propõe uma metodologia teológica para compreendermos e vivermos — fé e obras —, verdadeiramente, as doutrinas bíblicas. Ele nos traz uma perspectiva da necessidade de pensar sobre o tema, afirmando “não haver tarefa mais urgente na igreja do que demonstrar a compreensão da fé por meio de uma vida correta com os outros diante de Deus”2. Em contraponto, há outras teologias pós-liberais, que focam nas proposições bíblicas, ou numa experiência expressivista, e até mesmo a compreensão de George Lindbeck, chamada de abordagem “linguístico-cultural” da religião, onde se entende que as doutrinas são formadas a partir de jogos de linguagem. Kevin J. Vanhoozer sugere uma abordagem canônico-linguística, propondo que “passamos a conhecer a Deus ao levar em conta os usos da linguagem de Deus nas Escrituras”3. Pressupondo que tanto os atos de comunicação de Deus (Escrituras) quanto a teologia (interpretação e aplicação) são dramáticos, o método apresentado por Vanhoozer julga-se o mais abrangente possível.
Crendo que o papel do cristão é buscar o conhecimento de Deus e que essa atitude reflete em nossas relações com o próximo, o presente artigo busca refletir sobre o quão proveitoso pode ser olhar o evangelho como um teodrama, entendendo a teologia como representação dramática das Escrituras para vivermos em obediência a Cristo no nosso dia a dia.
Nossa localização
A afirmação de que a certeza advém da razão, ou seja, é algo que possuímos pela análise de um objeto por meio de um método, é distintivamente moderna e fundamentalmente cartesiana., sendo um pensamento que permanece até hoje. No entanto, “graças às críticas de diversos pós-modernos, agora temos condições de perceber como o projeto de modernidade foi culturalmente relativo, historicamente situado e ideologicamente guiado”4.
Não obstante, as críticas pós-modernas não apagaram as consequências do pensamento moderno, Byung-Chul Han, em sua obra Sociedade do cansaço, comenta: “A perda moderna da fé, que não diz respeito apenas a Deus e ao além, mas à própria realidade, torna a vida humana radicalmente transitória”5. Essa transitoriedade, segundo Han, é reforçada pela “desnarrativização (Entnarrativisierung) geral do mundo”6. A conta chega e essa disposição por remoção de absolutos respinga em aspectos essenciais de uma compreensão verdadeira da realidade.
Em contrapartida, Criação, Queda e Redenção — a Grande Narrativa — são pilares essenciais para um correto entendimento da nossa própria história. Prescindir dessa narrativa é extremamente prejudicial. A falta de uma narrativa, ou desnarrativização, não resulta propriamente num vazio, mas, sim, na substituição da Grande Narrativa por alguma narrativa reducionista. James Smith, em Na estrada com Agostinho, define muito bem como se dá essa busca, ao dizer: “Nosso desejo por uma identidade está ligado à necessidade de encontrar uma história, que pode ser discreta e indireta. Sua trama pode nunca ter sido organizada. No entanto, acabamos adotando um papel, interpretando um roteiro que nos foi dado por alguma narrativa”7.
Esse descrédito à fé, o relativismo, a ênfase na diferença e na fragmentação afastaram excessivamente o homem pós-moderno da fonte da verdade, pois esse homem já não acredita mais que existe uma verdade. No processo de investigação de Santo Agostinho, o livro que finalmente interromperia essa busca por uma história seria a Bíblia8. A pequena história necessita ser acoplada à Grande Narrativa.
Nesse sentido, não se atentar à teologia não significa ausência de ideias sobre Deus, mas, sim, um monte de ideias erradas sobre Ele9. Aproveitando a ajuda recebida pela pós-modernidade, surgiu, na teologia, o que se pode chamar de “virada linguístico-cultural”, que traz a perspectiva de que a Bíblia não seria somente um livro de informações divinamente reveladas — o que tendenciou uma visão de que a Bíblia é um conjunto de proposições divinas a serem seguidas, ou transfere o lócus da revelação divina para uma expressão da experiência individual ou comunitária religiosa — mas uma narrativa de identidade que tanto adquire quanto manifesta sentido na comunidade interpretativa para qual ela funciona como Escritura10. Essa alternativa trouxe o papel da igreja de falar e atuar, porém, faltou lidar com a origem da verdade. Se as práticas da igreja servem como norma, como separar as práticas corretas das incorretas? A doutrina diz respeito ao que Deus diz ou ao que a prática da igreja diz sobre Deus? No fim, o argumento ainda carece de um absoluto.
Teodrama como um caminho a se trilhar
No princípio, Deus disse e nós devemos responder ao discurso e à ação de Deus. Essa perspectiva é necessária para compreendermos e vivermos a fé cristã. Ao sermos enxertados na Grande Narrativa, precisamos de uma referência absoluta da verdade. Cristo é essa referência. No evangelho de João, capítulo 14, versículo 6, Ele se apresenta como “o caminho, a verdade e a vida”11. É esse caminho que devemos trilhar, é essa verdade que devemos seguir e essa vida que devemos buscar.
A mistura com ideologias humanistas sempre é penosa à teologia. Giorgio Agamben, em seu artigo Una Domanda (Uma pergunta), publicado em 2020, adverte que a igreja, “fazendo-se serva da ciência, que agora se tornou a verdadeira religião do nosso tempo, negou radicalmente os seus princípios mais essenciais”12. Essa servidão não só à ciência, mas a qualquer outro pensamento humanista, irá reduzir a teologia a uma esfera que não compreenderá o todo.
Diante disso, a teologia não pode prescindir do cânon bíblico, ao passo que deve buscar a melhor maneira de interpretá-lo. O método proposto por Vanhoozer, a saber, a teologia canônico-linguística, “conjuga a ênfase pós-liberal na teologia como prática da igreja com o conceito de interpretação bíblica como encenação”. Entender as Escrituras como um drama divinamente revelado, em que somos chamados para responder — encenar — em obediência a Deus, recupera a perspectiva de uma vida vivida para glória de Deus da própria Escritura. Vanhoozer afirma: “A teologia pode aprender com a pós-modernidade sem se misturar ou capitular a ela, e a lição mais importante será como prosseguir em direção à sabedoria prática, em vez do mero conhecimento teórico”14.
Conclusão
Diante do exposto, a teologia proposta por Kevin J. Vanhoozer mostra-se aplicável e sofisticada para lidar com a doutrina cristã, de modo que esta se posicione em subserviência a Deus e com foco em um conhecimento prático, demonstrado pelo modo de viver em obediência. Há um grande proveito para a Igreja nesta metodologia, pois ela lida com questões contemporâneas latentes, como falta de sentido da vida ou o sentido existencialista. Contudo, não se reduz a somente responder demandas; antes, é um convite à proatividade em encenar um drama no qual fomos primeiramente chamados por Deus.
1 A edição original foi publicada em 2005, pela Westminter John Knox Press, com o título The drama of doctrine: a canonical-linguistic approach to christian theology. Em 2016, a editora Vida Nova publicou sua versão em português, com o título O drama da doutrina, usada no presente artigo.
2 VANHOOZER, Kevin. J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução de Daniel de Oliveira.— São Paulo: Vida Nova, 2016, p. 12
3 Ibid., p. 38.
4 Ibid., p. 24.
5 HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. 2ª edição ampliada — Petrópolis, RJ : Vozes, 2017, p. 44.
6 Ibid., p. 45.
7 SMITH, James K. A. Na estrada com Agostinho: uma espiritualidade do mundo real para corações inquietos. Tradução de Elissamai Bauleo. — 1ª ed. — Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020, p. 186.
8 Ibid., p. 191.
9 LEWIS, C. S. Cristianismo puro e simples. Tradução de Gabriele Greggersen. 1ª ed. — Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017, p. 205.
10 VANHOOZER, op. cit., p. 23.
11 BÍBLIA LEITURA PERFEITA: EVANGELISMO. Nova Versão Internacional. — 1ª ed.— Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2018, p. 746.
12 AGAMBEN, Giorgio. Una Domanda. In: Giorgio Agamben. Quodlibet. Macerata , Itália, 13 abr. 2020. Disponível em: GIORGIO AGAMBEN, UNA DOMANDA. Acesso em 03 de Fev. 2024.
13 VANHOOZER, op. cit., p. 38.
14 Ibid., p. 43.
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Referências
AGAMBEN, Giorgio. Una Domanda. In: Giorgio Agamben. Quodlibet. Macerata , Itália, 13 abr. 2020. Disponível em: GIORGIO AGAMBEN, UNA DOMANDA. Acesso em 03 de Fev. 2024.
BÍBLIA LEITURA PERFEITA: EVANGELISMO. Nova Versão Internacional — 1ª ed. — Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2018. 864 p.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. 2ª edição ampliada — Petrópolis, RJ : Vozes, 2017. 128 p.
LEWIS, C. S. Cristianismo puro e simples. Tradução de Gabriele Greggersen. 1ª ed. — Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017. 288 p.
VANHOOZER, Kevin. J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução de Daniel de Oliveira. — São Paulo: Vida Nova, 2016. 512 p.
SMITH, James K. A. Na estrada com Agostinho: uma espiritualidade do mundo real para corações inquietos. Tradução de Elissamai Bauleo. — 1ª ed. — Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020. 264 p.