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O apeiron de Anaximandro e o princípio cristão de inteligibilidade

Escrito por Emanoel Ferreira Cardoso, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2023


Introdução

A busca pelo conhecimento da origem de todas as coisas é tão antiga quanto a própria humanidade, pois o homem sempre se inquietou com o anseio de saber como tudo veio a existir. Neste sentido, perseguiu respostas que, em coesão com a realidade apresentada à sua volta, satisfizesse suas indagações. A história da filosofia conta como essas indagações e proposições se desenvolveram ao longo dos séculos. Desde as origens da filosofia antiga, os homens pretenderam resolver os enigmas quanto ao início de tudo. Sem dúvida, homens brilhantes como Tales de Mileto, Heráclito de Éfeso, Sócrates e Aristóteles fazem parte desse panteão que ganha a atenção de leitores ávidos por conhecimento.

Porém, alguns cuidados precisam ser tomados quando, da perspectiva cristã, estuda-se filosofia, pois, ao mergulhar nas águas profundas do conhecimento destes gigantes, o sôfrego estudante cristão pode ser tentado a fazer sínteses e aproximações indevidas entre a fé cristã e as propostas gregas, ao passo que uma interessante afirmação na história da filosofia de Gordon Clark, De Tales a Dewey, salta aos olhos, propondo que 

Essas coisas não são ditas com o propósito de destratar Tales, Platão ou até mesmo Lucrécio, que, com algum esforço poderia ter aprendido dos judeus. O propósito é duplo: pedagógico e lógico. Um contraste entre duas visões radicalmente opostas coloca ambas em realce. E, conquanto um apelo às ideias judeu-cristãs antecipe, anacronicamente, o capítulo sobre a Idade Média, a cultura ocidental de nosso tempo tem sido tão amplamente impregnada com conceitos cristãos que é razoável presumir ao menos alguma familiaridade com os mesmos. O propósito lógico é o de apontar que em qualquer sistema de filosofia os axiomas em métodos usados determinam a natureza das conclusões. Mais de uma vez, de Tales a John Dewey, intrincadas dificuldades serão postas de lado sob a alegação de inconsequência, uma vez que o problema real reside no ponto de partida. A aceitação inquestionável de uma posição original, quer por causa da ignorância das afirmativas, quer por causa da recusa em considerá-las, não apenas conduz a conclusões antecipadas — qualquer conjunto de axiomas tem esse efeito — mas também conduz a aceitação da totalidade de um sistema, sem a devida ponderação das objeções que deveriam ser enfrentadas (CLARK, 2012, p. 23).

Então, nos suscita o questionamento: Qual o confiável princípio de inteligibilidade sobre o qual o cristão pode edificar suas crenças? Se a síntese falhou, sobre qual fundamento devemos apoiar nossos pés? Essa é a proposta do texto a seguir: perceber o perigo das sínteses e discernir um sólido princípio para o estudante cristão de filosofia estabelecer suas bases solidamente.

A precipitada relação entre o apeiron e o Deus cristão

Ao debruçar sobre essa história da filosofia ocidental, ao longo de séculos, conhecemos homens admiráveis que, movidos por esse frenesi, inquiriram e propuseram suas conclusões. Por vezes, limitados por seu tempo, suas ferramentas, avanço científico e social, mas, ainda assim, incansáveis em suas investigações.  

Um filósofo em particular, Anaximandro, que viveu em Mileto, no sexto século A.D., período pré-socrático, ousada e confiadamente afirmou que não seria possível encontrar a origem das coisas, o arqué, em nada que fosse imanente, como seus predecessores Tales, que acreditava ser a água, e Anaxímenes que acreditava ser o ar a origem de todas as coisas. Anaximandro, porém, percebeu ser impossível que algo puramente natural pudesse ser a causa das coisas. Anthony Kenny, profícuo historiador inglês, em sua primeira obra de um compêndio sobre história da filosofia, Uma nova história da filosofia ocidental: Filosofia Antiga, afirma que “(…) ele julga ser um erro relacionar o elemento primeiro do universo com quaisquer dos elementos que podemos ver a nosso redor no mundo atual, como a água e o fogo. O princípio fundamental das coisas, ele afirma, deve ser limitado ou indefinido (apeíron)” (KENNY, 2011, p. 31).

Diferentemente de seus conterrâneos, a proposição de Anaximandro é surpreendente e parece até sugerir a ideia de um deus infinito que deu vida e ordenou todas as coisas no princípio, o que levou muitos cristãos a buscarem uma síntese de pensamento entre as propostas gregas e a revelação cristã encontrada nas Escrituras. Assim, cristãos entenderam que filósofos gregos chegaram muito perto da verdade revelada em Jesus Cristo e, mesmo mirando em algo diferente, acertaram, meio que por acidente, aquilo que pretende a revelação bíblica. 

Contudo, o transcendente buscado por Anaximandro no apeiron, assim como o constante devir de Heráclito e outras expressões pretendidas pelos gregos em geral na busca pelo princípio que deu origem e mantém todas as coisas, era apenas a noção de deus, uma força sobrenatural indefinida. Gordon H. Clark, téologo e filósofo calvinista citado acima, afirma que 

Na Grécia, a expressão “sem limite” ou “ilimitado” é aplicada a coisas que não têm divisão, sem princípio e sem fim. Uma aliança de ouro, por exemplo, não sofre solução de continuidade; da mesma maneira, um círculo de mulheres ao redor de um altar, uma túnica sem costura e uma esfera, são todos ilimitados. Nesses casos, não há sugestão de um ser infinito em extensão. Assim, o “sem limite”, de Anaximandro, não sendo infinito em quantidade, ainda poderá ser a fonte inexaurível do cosmos, porque é uma fonte suficiente para todas as coisas. Assim como um reservatório, ele poderá ser esvaziado a cada emergência de uma coisa, mas será também preenchido a cada vez que uma coisa se dissolva nele novamente. Assim, ele seria infinito no tempo, ainda que não necessariamente infinito no espaço (CLARK, 2012, p. 20).

O erro crasso que acomete tantos cristãos que tentam condensar as ideias gregas quanto ao princípio de todas as coisas e a revelação bíblica é forçar uma acomodação descabida. Não somente por ser uma sintetização anacrônica, mas, principalmente, por ser indevida, pois, embora possamos encontrar vestígios de um deus transcendental que foi a causa de todas as coisas no pensamento grego, há também profusas distinções da revelação de um Deus pessoal, como no cristianismo, que precisam ser suprimidas e adaptadas para a permanência de tal súmula. Kenny novamente nos ajuda relatando que

Por fim, Anaximandro oferece um relato da origem do mundo atual, e explica quais forças agiram para trazê-lo à existência, investigando, como diria Aristóteles, tanto a causa eficiente quanto a causa material. Ele veria o universo como um campo de contrários em competição: quente e frio, úmido e seco. Algumas vezes um desses pares de opostos é dominante, outras vezes o outro; eles avançam um sobre o outro e depois recuam, intercâmbio que é governado pelo princípio da reciprocidade. Como definido de forma poética por Anaximandro em seu único fragmento preservado, “eles concedem justiça e deferência uns aos outros pela injustiça, segundo a ordenação do tempo” (DK 12 B1). Assim, pode-se alegar, no inverno o quente e o seco oferecem compensação ao frio e ao úmido pela agressão que cometeram no verão. O calor e o frio foram os primeiros contrários a surgir, separando-se de um ovo cósmico primevo contendo algo indeterminado e eterno. A partir deles se desenvolveram o fogo e a terra, que, como vimos, estavam na origem de nosso presente cosmos (KENNY, 2011, p. 31 e 32).

A revelação de Cristo Jesus como princípio de inteligibilidade

O aluno cristão precisa estabelecer inabalavelmente que a ideia de um deus pessoal, que criou e governa todas as coisas, jamais foi uma ideia grega como apresentada pelo cristianismo. Gordon Clark mais uma vez nos ajuda ao asseverar contundentemente que

Mesmo aqueles, dentre os seus sucessores (dos pré-socráticos), que chegaram à noção de uma realidade incorpórea, jamais pensaram em reduzir a multiplicidade do universo ao ato criativo de um Deus pessoal e Todo-Poderoso. Esse conceito judaico foi introduzido, primeiramente, na civilização greco-romana, por meio da expansão do cristianismo. É claro que os deuses pensaram sobre deuses; de fato, Tales é citado como tendo dito que todas as coisas estariam cheia de deuses. Mas tais deuses, algumas vezes, científica, mas não historicamente interpretados como personificação de poderes naturais, eram esses seres corpóreos que, tal como outros hilozoístas, teriam vindo à existência, mediante processos naturais. Não seriam eternos, mas teriam nascido; poderiam ser sobrepujados e, possivelmente, destruídos. A ideia de um Deus Todo-Poderoso era completamente estranha aos gregos, quanto mais o conceito da criação. A ideia de um Deus Todo-Poderoso que pudesse chamar o mundo à existência não era uma tese que os gregos rejeitassem: era algo que jamais haviam pensado. Criação é uma ideia encontrada somente no pensamento hebraico (CLARK, 2012, p. 22).

Assim, o ponto sólido que nos permite considerar e discernir a verdade é a revelação. Como nos afirma Lesslie Newbigin: “Nenhum pensamento é possível sem pressuposições. O que se requer do pensamento honesto é que seja o mais explícito possível sobre o que são essas pressuposições. A pressuposição de todo pensamento cristão válido e coerente é a de que Deus tem agido para revelar e cumprir seu propósito para o mundo da maneira que nos é revelada na Bíblia” (NEWBIGIN, 2016, p. 21).

É precisamente nessa certeza que caminhamos, vivemos e propomos ao mundo o princípio de inteligibilidade cristã, Jesus Cristo. Kevin Vanhoozer caminha nesta direção ao afirmar que “a Bíblia é a palavra “de Deus” em dois sentidos: primeiro o seu testemunho é sobre Deus; segundo, ela, no final das contas, é o testemunho que o próprio Deus dá de si mesmo” (VANHOOZER, 2016, p. 63).

Conclusão

Assim, concluímos que a síntese entre a fé cristã e a filosofia grega, com seus inevitáveis axiomas, compromete os resultados da busca pelo conhecimento da verdade. Em contrapartida, a revelação bíblica nos permite tratar os pensamentos e seus respectivos pressupostos com honestidade. Nesse sentido, tomar Cristo Jesus como princípio de inteligibilidade não só nos possibilita responder perguntas relacionadas à origem de todas as coisas, mas também nos impede de fazer uma colcha de retalhos entre pensamentos com seu ponto de partida na revelação de Deus em Cristo Jesus e ideias que jamais pretenderam apresentar tal premissa. 


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Referências Bibliográficas

CLARK, Gordon H. De Tales a Dewey: uma história da filosofia. Tradução: Wadislau Gomes. São Paulo, SP: Cultura Cristã, 2012. 480 p.

KENNY, Anthony. Uma nova história da filosofia ocidental, volume I:  Filosofia Antiga. Tradução: Carlos Alberto Bárbaro. São Paulo: Edições Loyola Jesuítas, 2011. 395 p.   

NEWBIGIN, Lesslie. O Evangelho em uma sociedade pluralista. Tradução: Valéria Lamim Delgado Fernandes. Viçosa, MG: Ultimato, 2016. 312 p.

VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução: Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016. 512 p.